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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

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“LIVRO DO DESASSOSSEGO” (XXXI)

 

“O Livro do Desassossego” foi o resultado da descoberta e do estudo da célebre “arca pessoana”. A publicação é de 1982 e Jacinto do Prado Coelho, Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha são os artífices. É um conjunto de fragmentos, uma espécie de diário, pensamentos, reflexões, da autoria de Fernando Pessoa (1888-1935), um quase ortónimo, uma vez que o poeta lhe dá nome próprio, Bernardo Soares, ainda que a primeira parte seja atribuída a Vicente Guedes ou quiçá ao próprio Pessoa.

Como tem sido afirmado, há como que uma autorrepresentação do próprio através de um artifício criativo. No fundo, é o próprio poeta que encontramos, com a multiplicidade de temas e de desígnios. Ou seja, para além dos heterónimos principais de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, encontramos em Bernardo Soares uma chave que nos permite ligar a heterogeneidade da heteronomia à identidade de quem reúne essa diversidade.

Bernardo trabalha num escritório na Baixa de Lisboa, como o próprio Pessoa. Seguimos os seus passos. Podemos sentir a sua solidão, os receios, o sentido e não sentido da vida, os temores, a morte, o amor e vários outros temas sobre a existência. A ideia de desassossego significa inconformismo, criatividade, intranquilidade, angústia, dúvida, aceitação e recusa. Se muitos referem o pessimismo de Pessoa, a verdade é que, em toda a sua obra, percebemos que a consciência certa do valor próprio. É verdade que Pessoa apenas publicou em vida um livro, “Mensagem” (1934), mas quando estudamos o conteúdo da “arca”, percebemos que o poeta foi escrevendo para a posteridade. “Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar”. E quando começa por apresentar o quase heterónimo, diz: «Bernardo Soares, distinguindo-se de mim por suas ideias, seus sentimentos, seus modos de ver e de compreender, não se distingue de mim pelo estilo de expor. Dou a personalidade diferente através do estilo que me é natural, não havendo mais que a distinção inevitável do tom especial que a própria especialidade das emoções necessariamente projeta”.

O mestre Caeiro prenuncia, Campos afirma-se por si, até demarcando-se de Pessoa, mas não deixa de procurar enriquecê-lo e de torná-lo relevante. “Cada um tem a sua vaidade, e a minha vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas…” “Tudo me interessa e nada me prende. (…) Tenho fome da extensão do tempo e quero ser eu sem condições”.

Foi Jorge de Sena quem primeiro deu importância à coerência dos fragmentos de Pessoa, ao seu carácter autobiográfico e ao facto de estarmos perante uma espécie de outro autor que, no entanto, tinha tudo a ver diretamente com Pessoa, ele mesmo. Mas Sena, ao partir para o Brasil, foi deixando Fernando Pessoa, para se render ao génio multiforme de Camões.

Bernardo Soares faz parte do universo Pessoa, que ele procura analisar fora de si. “Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava — parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito…”

“O Livro do Desassossego” é um livro póstumo, autobiográfico, publicado quase cinquenta anos depois da morte do autor, e funciona como o conjunto de reflexões relativamente ao permanente enigma que Fernando Pessoa representa…

Agostinho de Morais

O CINE-TEATRO ANTÓNIO PINHEIRO, UM ANO DEPOIS

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Fazemos nova e breve referência ao Cine Teatro António Pinheiro, em Tavira, praticamente um ano depois do texto que, em 3 de setembro de 2018 aqui foi publicado. Tivemos efetivamente ensejo muito recentemente de outra vez o observar. E sem entrar em repetições, há que assinalar dois aspetos contrastantes, ligados ao velho edifício.

Por um lado, as obras de recuperação do Cine Teatro. Quanto a isso, o que podemos confirmar é uma certa intervenção, atribuível à recuperação em si, dado que a Câmara Municipal adquiriu o Cine Teatro em 2001 e durante um largo período antevê-o em atividade. Depois as obras na prática estagnaram.

O que vemos agora é efetivamente uma vasta intervenção externa, que pode ou não conduzir à recuperação do velho Cine Teatro, ou o aproveitamento do que resta em funções ligadas à atividade cultural e de espetáculo – ou não!...   Sendo certo que este período estival não facilita os contactos...

E no entanto, assinala-se novamente a homenagem que, pelo menos desde 1917, a cidade de Tavira prestou a António Pinheiro, lá nascido em 1867, e que na sua brilhante carreira de ator e ainda na sua atuação como docente do então Conservatório Nacional, tanto marcou a cultura e a atividade cénica e pedagógica da época.

O certo é que António Pinheiro morre em 1943. E tal como já referimos, a sua carreira de comediante marcou não só o Teatro Nacional, onde tatas vezes atuou, como participou em iniciativas de renovação do teatro português: e nesse aspeto, temos aqui referido designadamente o Teatro Livre em 1904/5 e o Teatro Moderno em 1911.

O prestígio da época merece então destaque. E basta citar Sousa Bastos, que em 1908 não hesita: “É um dos atores portugueses mais inteligentes e instruídos”, nada menos!... Não admira que Tavira o consagre!

Vamos ver o que resulta das obras no local do velho Teatro.

DUARTE IVO CRUZ

TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

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“MONADOLOGIA” de G.W. LEIBNIZ (XXX)

 

É impressionante a pertinência e a atualidade deste que é um dos autores mais surpreendentes e ricos da história do pensamento de sempre. Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) é um dos mais influentes criadores da modernidade.

Muitos dos seus contemporâneos não compreenderam, porém, a complexidade da sua força inovadora – e daí que tenha prevalecido uma certa leitura caricatural, de que o paradigma é o Dr. Pangloss no Cândido de Voltaire. No entanto, a modernidade veio a demonstrar que essa figura não se adequava ao suposto modelo.

Leibniz deu importantes contribuições para a física e para a tecnologia e antecipou noções que surgiram muito mais tarde como a teoria das probabilidades e o cálculo infinitesimal, sem esquecer os seus estudos sobre filosofia, política, direito, ética, teologia, história e filologia. Leibniz também contribuiu para o campo da biblioteconomia.

Enquanto servia como superintendente da biblioteca Wolfenbüttel na Alemanha, desenvolveu um sistema de catalogação que serviria de guia para muitas das maiores bibliotecas da Europa. As contribuições de Leibniz para esta vasta gama de assuntos foram espalhadas em várias revistas científicas, em dezenas de milhares de cartas e em manuscritos inéditos. Escreveu em várias línguas, sobretudo em latim, francês e alemão.

Leia-se Martinho de Mendonça de Pina e Proença (1693-1743), o primeiro autor português a referir-se ao pensador alemão entre nós. A sua apreciação é animada pelo espírito do tempo, no entanto será o oratoriano Teodoro de Almeida (1722-1804) a proceder a uma análise detida e informada sobre a obra de Leibniz.

Em Recreação Filosófica falou do princípio da razão suficiente e da teoria da harmonia pré-estabelecida. Importa, contudo, ter presente que, ao longo da obra, fica nítido como a harmonia para Leibniz significa “a diversidade compensada pela identidade”. Não estamos diante de uma identidade homogénea, mas de uma realidade que se desdobra infinitamente. E assim a “razão suficiente” leva-nos ao limite da cadeia de razões, já que não se trata de encontrar a razão da harmonia, mas de chegar à complexidade das motivações e dos caminhos.

Nesta compreensão, será Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) o primeiro português a tratar a obra de Leibniz de um modo aprofundado – falando de um sistema pluralista de substâncias. E Antero de Quental declarava a Jaime Batalha Reis ser a sua filosofia “uma fusão do hegelianismo com a monadologia de Leibniz” (1885), dizendo a Wilhelm Stork que “a monadologia de Leibniz, convenientemente reformada, presta-se perfeitamente à interpretação do mundo, ao mesmo tempo naturalista e espiritualista”. E acrescentava: “o espírito é que é o tipo da realidade; a natureza não é mais do que uma longínqua imitação, um vago arremedo, um símbolo obscuro e imperfeito do espírito” (1887). Assim, a monadologia anteriana era de feição pluralista, distinguindo três regiões no mundo real – matéria, vida e espírito – ordenadas hierarquicamente, tendo cada uma por base a anterior. E foi o entendimento do “espírito” que ocupou essencialmente Antero, enquanto força consciente, energia simples, autónoma e espontânea – como modo de explicar “todo o sistema de forças em que consiste a natureza, bem como o sentido da evolução, como ascensão dos seres à liberdade, como criação de uma ordem racional, como desdobramento incessante energia moral, uma ação contínua da vontade impulsionada pelo ideal, a realização final do bem”. Pode dizer-se que Antero de Quental foi, entre nós, dos que melhor compreenderam as virtualidades do pensamento de Leibniz, aplicando-o numa perspetiva dinâmica à evolução das sociedades humanas. E Leonardo Coimbra foi o nosso pensador que mais intensamente refletiu sobre a lição de Leibniz.

O que caracteriza a monadologia é o acréscimo da vida moral e a tradução da liberdade em amor – ou seja, quando uma alma se excede, crescendo em liberdade, adquire maior capacidade de harmonia e beleza. Em suma, o “labirinto imenso” de Leibniz não nos pode ser indiferente. 

 

Agostinho de Morais    

 

 

TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

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«ENSAIOS» DE MICHEL DE MONTAIGNE (XXIX)

 

Na célebre Torre de Montaigne, quando subimos à sala onde o pensador escrevia, olhando os campos de Bordéus, há uma pergunta fundamental, a que Michel Eyquem, Senhor de Montaigne (1533-1592), procurou responder, ao longo da vida: “Que sais-je?”. É essa a pergunta a que não podemos fugir – e que tem de estar presente em toda a nossa vida. Se quisermos simplificar, podemos dizer que Montaigne foi um dos escritores que inaugurou a modernidade do pensamento, ao refletir na primeira pessoa, como “eu”.

Francis Bacon (1561-1626) seguiu-lhe as passadas, e pode dizer-se que consolidou o “ensaísmo”, criado por Montaigne. António Sérgio, Sílvio Lima e Eduardo Lourenço seguem esse caminho fecundo, no caso português. E, falando de Bordéus, temos de lembrar, num rico roteiro intelectual, Charles de Secondat, Senhor de Montesquieu (1689-1755), autêntico criador da democracia moderna. Edgar Morin não se tem cansado de recordar a afirmação de Montaigne de que mais vale uma cabeça bem feita do que uma cabeça bem cheia, por isso o mestre bordalês criticou a educação livresca e formalista, propondo uma educação orientada para a experiência e para a ação (o “saber de experiências feito” que Duarte Pacheco Pereira defendeu ainda no século XV). Mais do que uma instrução livresca, importaria ligar as pessoas à vida vivida e aos seus assuntos urgentes, sem prejuízo da compreensão do tempo e da reflexão, bases do sentido crítico. A educação visa o julgamento crítico, a atenção e o cuidado.

Pelo lado da Mãe, Montaigne descendia de judeus portugueses. O latim foi quase a sua língua materna, uma vez que seu Pai lhe deu como tutor um alemão que apenas falava latim com o discípulo – e que despertou no jovem um espírito vigilante, atento e metódico, aberto à novidade. Estudou no célebre Colégio de Guienne, cujo diretor foi André de Gouveia. Formou-se em Direito e foi magistrado em Périgueux e Bordéus, onde se tornou amigo de Étienne de La Boétie (1530-1563), o autor do “Discurso sobre a Servição Voluntária”. É inesquecível o que Montaigne disse de seu amigo, quando ele morreu: “parce que c’était lui, parce que c’était moi”… E pode dizer-se que o conhecimento que temos da obra de La Boétie, deve-se ao empenhamento de Montaigne na sua divulgação. Viajou pela Suíça, Alemanha e Itália durante dois anos (1580-1581) e elaborou um diário de viagem, publicado no século XVIII. Apesar de dividir o seu tempo entre a administração da herança de seu pai, o desempenho de funções públicas na Câmara de Bordéus e a procura de condições de paz para os conflitos religiosos, nunca abandonou a reflexão pessoal, que constitui um testemunho fundamental para a compreensão do seu tempo.

Os “Ensaios” abrangem três volumes, os dois primeiros publicados em 1580 e 1588, compreendendo este o terceiro volume. Em 1595, publica-se uma edição póstuma destes três livros com novos acrescentos. São autorretratos introspetivos de um homem, mais do que de um filósofo. É a singularidade que Montaigne procura. É assim um pensador sobre a humanidade, sobre a sua diversidade e complexidade – seguindo o curso livre do seu pensamento e das circunstâncias que o rodeiam. Nota-se a sua formação clássica e o conhecimento das condições reais da vida política e económica. As máximas e reflexões dos autores clássicos vão-no ajudando na reflexão e na compreensão de si próprio e dos outros. Sem cair no relativismo, mas compreendendo a importância da subjetividade, Montaigne, através do ensaísmo, não assume um sistema, mas um método, segundo o qual a verdade absoluta deixa de estar ao alcance do homem, sendo doravante, possível tão-somente uma verdade por aproximações. O ensaio significa exatamente a possibilidade de considerar o sentido ético, o carácter e a dignidade como intimamente ligados à ligação entre a singularidade e o sentido comunitário. E Montaigne considera que o mundo inteiro está em constante movimento, mesmo quando há permanência, que significa a suspensão momentânea do movimento. E assim o próprio conceito de “ser” traduz-se na inconstância e numa pluralidade de estados e comportamentos. A sucessão dos ciclos, a falta de continuidade, as dúvidas de coerência, correspondem, assim, à própria complexidade humana.

 

 Agostinho de Morais

 

 

SE SEI VIVER SÓ

 

Se sei viver só?

Quem sabe?

Nessa imagem revelada pelas montras

Passeia-se a rua interior

De mão dada com cada um

Ou não fossemos a primeira e última

Trincheira

Unida a outra e a mais outra

Corredores sem fim e labirínticos

Por entre as mensagens como flechas

Chegadas ao nosso, meu coração rebentado.

Se sei viver só?

Quem sabe?

Cada um compõe a alegria obrigando-se a voltar

Eu a ti e às tuas pálpebras regresso

Para que me ampares o terror experimentado

Na aberta realidade aquela que arboriza a solidão

Sem água

Rosa dos muros, cama das poeiras, orçamento que vela

O nada escrito no pleno dos vazios

Quando se renova a procura de nós

E a rota que turista se passeou à nossa janela

Quando o amor e só ele era o acreditar.

E de novo

Se sei viver só?

Quem sabe?

O parapeito é sempre cais

De onde os sonhos quantas vezes partem confundidos

Por histórias banais que nos ficam na memória

Entrada nela por navios e a ti neles regresso

E afinal a inocência é muita

E por ela a morte passa

Na preocupação de fechar segredos.

E eu quero tanto aquele morango, aquela cereja

Porque a minha obra, se o for tem um fundo vermelho

De sangue e flor futura e cega

E foi minha a andorinha e os xailes esgaçados de tão rotos.

Se sei viver só?

Quem sabe?

A semente é feita de carne humana

Poeta, não grites, não!

Poeta, não deixes fugir as pombas

Ou escuta os astros

E por lá deixa teus olhos

Definitivamente muito definitivamente.

E de todos

Ai anjo que de nós foge

E que me procura há quanto?

Pasmo, quebro-me e vou-me dando

Só paro em deltas

Abraçada ao teu olhar

Porque assim os oceanos

Embrulham-me num musgo, naquele mesmo que foi

Manta de alma enquanto vivi

Enquanto espreito

 

Se sei viver só? 

 

Teresa Bracinha Vieira

TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

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"ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS" de LEWIS CARROLL (XXVIII)


“As Aventuras de Alice no País das Maravilhas” é uma novela de 1865 escrita por Charles Lutwidge Dogson (1832-1898), sob o pseudónimo de Lewis Carroll. Apesar do autor sempre tê-lo negado, a personagem parece identificar-se com Alice Pleasance Lidell (1852-1934), jovem que o autor largamente retratou, filha do Decano de Christ Church da Universidade de Oxford, Henry Lidell.

Trata-se de uma narrativa fantasiosa, com figuras antropomórficas, em que prevalece o raciocínio lógico e a sua crítica, típicos de um professor de matemática. Nesse sentido, a popularidade do livro, nas suas duas partes (“País das Maravilhas” e “Do Outro Lado do Espelho”) deveu-se ao alcance multifacetado dos episódios que relata, que podem ser apreendidos por crianças e adultos, já que o humor pode ser visto na simplicidade infantil ou na apresentação de paradoxos lógicos só compreensíveis por leitores maduros. Trata-se, porém, de um exemplo que reúne o “non-sense”, a fantasia, o absurdo, o cómico e os jogos da lógica, ao alcance de todos… Lewis Carroll foi diácono anglicano, professor, fotógrafo, matemático e escritor, tendo-se celebrizado sobretudo pelo romance de Alice, mas igualmente pelas suas descobertas no campo da lógica matemática.

Alice, num passeio em 4 de julho de 1862, começa por seguir um estranho coelho branco de colete e relógio de bolso para a sua toca e cai num poço cheio de prateleiras com objetos estranhos e livros. No fundo, descobre uma chave dourada sobre uma mesa de vidro, que abre uma porta que dá para um belo jardim, demasiado pequena para que Alice possa entrar. Encontra uma pequena garrafa com uma etiqueta “Bebe-me”. Alice cumpre o pedido, diminui de tamanho e consegue entrar. Mas esquece-se de trazer consigo a chave e o que a salva é um bolo, que a convida a comê-lo, o que lhe permite crescer. O encadeamento das peripécias não pára. Alice chora porque cresceu de mais e cria um lago de lágrimas. O coelho deixa cair as luvas e o leque e Alice consegue diminuir de tamanho ao refrescar-se com o leque, mas cai no lago cheio pelas suas próprias lágrimas, mas um rato ajuda-a a não se afogar e a atravessar o lago… Tudo é, porém, demasiado complicado. Um bizarro dodô (caricatura do autor, Dogson) promove uma corrida eleitoral, em que todos ganham. Alice volta a crescer desmesuradamente. Há os conselhos da lagarta-azul. O Gato Chessire revela o seu misterioso sorriso. E os números matemáticos podem ser vistos como são: duas ou três maçãs ou os algarismos 2 e 3, considerados em abstrato, da mesma maneira que o sorriso do gato, que a certa altura, deixa de fazer parte dele… E chegamos ao Chá dos Loucos, com a Lebre de Março e o Chapeleiro, condenado a beber sempre chá porque o seu relógio ficou parado nas seis horas, “post meridium”. E Carroll tem razão ao falar da loucura como doença profissional dos chapeleiros – pela inalação dos gases do mercúrio, indispensáveis na fabricação dos chapéus de feltro. E nesse mundo perturbado, encontramos referência à mais assisada das lições de Lógica: «afinal, podemos dizer "Vejo o que como", ou de outro modo, "Como o que vejo"!» Cuidamos assim de uma relação inversa… Por sua vez, a Rainha de Copas revela-se irrascível e intolerável. Uma tartaruga falsa (alusão à sopa assim chamada, feita com carne e caldo verde; daí a cabeça de bezerro da ilustração), a quadrilha da lagosta, o julgamento do valete de copas (pelo “terrível” roubo de uma torta), o decisivo depoimento de Alice – e a final demonstração de que a rainha de copas nada pode, para além do mundo da fantasia contra Alice, regressada à realidade… A aparente loucura, que perpassa em todo o sonho, corresponde, afinal, a uma mistura de paradoxos lógicos, de doenças reais, como a do chapeleiro, e de pequenas referências a hábitos e costumes britânicos. E assim, ainda hoje, a obra de Lewis Carroll continua a revelar muitos enigmas, a que a maior parte dos leitores continua indiferente…

 

Agostinho de Morais

 

 

RELIGIÃO E ESPIRITUALIDADE

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1. Não haja dúvidas. A religião, concretamente na Europa, também entre nós, está em queda. O número de agnósticos e ateus aumenta, para não falar na chamada “prática religiosa”, que desce a olhos vistos. O padre José Antonio Pagola escreveu recentemente um texto subordinado ao título: “Depois de séculos de ‘imperialismo cristão’, os discípulos de Jesus têm de aprender a viver em minoria.”

Significa isto o triunfo do materialismo crasso ou o que está em causa é mesmo a religião institucional, mas não a espiritualidade? O que é facto é que tenho encontrado cada vez mais grupos interessados na espiritualidade e no aprofundamento da vida interior. Multiplicam-se esses grupos e também a bibliografia sobre o tema. Por exemplo, com sucesso escreveu recentemente o teólogo Francesc Torralba uma obra: La interioridad habitada, onde se pode ler: “A educação da interioridade não é, em caso algum, um luxo nem uma questão menor, pois tem como objectivo final o cuidar de si mesmo, e, para isso, desenvolver todas as potencialidades latentes no ser humano, como a memória, a imaginação, a vontade, a inteligência e a emotividade, mas também o fundo último do seu ser: a espiritualidade, admitindo que esta pode adquirir formas, expressões e modos muito diversos em virtude dos contextos educativos e dos momentos históricos. No modelo da interioridade habitada reconhecem-se dois magistérios: o exercício do mestre humano que fala e actua a partir de fora e o do Mestre interior que habita lá no íntimo.”

 

2. Hoje, quero referir-me concretamente a Pablo D’Ors, padre e escritor. Numa recente entrevista a José Manuel Vidal, Director de Religión Digital, disse: “As formas tradicionais da Igreja não respondem à sensibilidade e à linguagem contemporâneas”. Numa outra entrevista, a “La Razón”, declarou: “Boa parte do descrédito da Igreja deve-se a ela sucumbir ao ritualismo”. Pablo D’Ors publicou um livro célebre do qual se venderam já mais de 150.000 exemplares, com o título Biografia do Silêncio. E é o fundador da associação “Amigos do Deserto”, que conta com uma rede de meditadores com mais de 500 membros, porque, como afirmou: “Há uma ânsia espiritual muito grande nesta sociedade secularizada.” Deixo aí, a partir destas duas entrevistas, pensamentos que julgo ser urgente meditar.

Porque é que o livro teve tanto sucesso? “Uma das razões do êxito é precisamente a sua oportunidade. Surgiu num momento em que aumentava claramente o interesse pela meditação. O seu prestígio construiu-se sobre o desprestígio da religião. O facto de muitas pessoas terem abandonado as formas religiosas não quer dizer que a sua sede espiritual esteja saciada ou se tenha anulado. Persiste e é preciso procurar novas formas de alimentá-la. A meditação é uma delas. Costumo dizer que a religião é o copo e a espiritualidade é o vinho, e o que nos sacia verdadeiramente é o vinho. A religião tem de estar ao serviço de suscitar a experiência espiritual, e nós, os cristãos, contentámo-nos com o copo. As formas, para ir ao fundo da questão, deixaram de ser formas para o conteúdo e encerraram-se em si mesmas. O mal não está no rito, mas no ritualismo. As pessoas não sentem que isso as alimente. A isto junta-se que a linguagem tanto verbal como gestual do cristianismo não responde à sensibilidade nem à cultura contemporâneas.” Não podemos esquecer que tão importantes como o património que recebemos, o Evangelho, são o homem e a mulher de hoje. Por isso, “a nossa fidelidade não é só ao Evangelho, é a este homem e a esta mulher de hoje. Se estivermos longe deles, dificilmente entramos em relação.” Impõe-se que se perceba que “as formas têm que estar ao serviço do fundo, e muitas vezes as formas perdem-nos, pois ficamos no formalismo e privamo-nos de ir ao núcleo da questão. Qual é a urgência fundamental para a Igreja de hoje? Uma renovação espiritual; que estejamos verdadeiramente no nosso centro.”

Para Pablo D’Ors, o silenciamento interior é uma necessidade de primeira ordem. “A meditação é uma prática de silenciamento e quietude. É um trabalho que se faz com o corpo e com a mente e cujo propósito fundamental é o autoconhecimento.” Quando muitas coisas exteriores se foram afundando, ele descobriu a aventura interior, que é um processo de higiene da mente e do coração: “Normalmente temos uma grande confusão intelectual e sentimental. Criámos uma cultura da exterioridade, representada fundamentalmente pelo telemóvel. Quanto maior conexão fora, menor conexão dentro. Perde-se a dimensão interior, porque a nossa cultura nos impulsiona e estimula para estar sempre fora.” Então, nas crises existenciais, as pessoas ficam desamparadas por dentro, pois nem sequer sabem se há “um dentro”. Por isso, “boa parte do êxito de muitas escolas de meditação radica nesta busca. Hoje, não falamos tanto de espiritualidade como de interioridade, que é o modo laico de dizer o mesmo.” 

Precisamos de arrumar o nosso interior, para que haja mais espaço, pois, desse modo, distinguimos melhor. É como quando numa casa repleta de coisas começas a tirar o não necessário e começas a ver. Daí surge, paradoxalmente, o segundo fruto: a humildade. “Saber quem és, ter uma visão realista de ti mesmo, essa humildade, esse saber qual é o teu lugar, isso é o que te dá a paz interior.”

Pergunta-se se não há o perigo de estas correntes de espiritualidade serem um pouco individualistas, egocêntricas, ignorando a transformação do mundo. Responde: “Creio que a meditação autêntica não se afasta de Deus. Mesmo que isso se não verbalize de maneira explícita. Quem verdadeiramente se conhece a si mesmo, mais cedo ou mais tarde, aponta para o mistério. Esse mistério poderá chamá-lo Deus ou não, mas Ele está lá. Em ti gerou-se uma atitude espiritual.” Quanto à denúncia e ao compromisso com a mudança das estruturas: Sim, há o perigo de grupos espirituais caírem num espiritualismo desencarnado, mas a questão é de prioridades: “A justiça social, a denúncia, tudo isso, vem por acréscimo, é o fruto de estarmos centrados. Primeiro, vamos transformando a nossa própria vida. A oração, o nosso próprio espírito transforma-nos e, simultaneamente, vai transformando a vida à nossa volta, a vida familiar, a vida social, a vida do bairro. A vida da Nação.”

Deve-se prescindir das religiões? De modo algum. “O ‘mindfulness’ não é puramente laico, mesmo que os termos e as práticas se apresentem numa linguagem puramente secular. Isto é o que, modestamente, os “Amigos do Deserto” e eu queremos fazer com o cristianismo. Que seja uma tradução secular, para o mundo de hoje, da mensagem cristã. Para o Ocidente, a figura de Cristo é muito mais próxima do que a de Buda, e por isso o salto cultural que é preciso dar para ser meditador cristão é muito menor. Julgo que prescindir das religiões é um suicídio, porque isso significaria prescindir do nosso passado. Ora, quem prescinde do seu passado não sabe qual é o seu presente.” Não, não há o perigo de obsessão pelo “aqui e agora”. Porque “o sublinhado no presente não deveria fazer-nos perder de vista a importância do passado e do futuro. Recordar é passar a história pelo coração e ajuda-nos a compreender quem somos. Uma árvore sem raiz não se aguenta, o passado é a nossa raiz e é preciso cuidar dela. O mesmo digo do futuro. O homem não é sem projecção e projecto de si. A espiritualidade cristã sempre sublinhou o futuro, o horizonte, e a budista, o presente. Penso que estamos num tempo de síntese.”

A propósito, como se relacionam em Pablo D’Ors “o ego do escritor e o ‘não-ego’ do meditador?” “Devo dizer que para mim silêncio e palavra são duas faces da mesma moeda. O segredo da palavra é o silêncio e o do silêncio, a palavra. Uma palavra nasce matinal no coração do leitor na medida em que foi preparada no silêncio. Para que a palavra seja fecunda, tem de nascer do silêncio. Com o tempo, fui descobrindo que a minha dupla vocação, sacerdotal e literária, é a mesma.”

Então, não existe realmente o perigo maior, que consiste em ficar encerrado em si mesmo, no egocentrismo? “O ego (o eu), que não é outra coisa senão a tendência para auto-afirmar-se, é necessário para viver. Não se trata de matar o ego, mas de colocá-lo no seu lugar.” Por isso, quanto a escutar-se a si mesmo ou escutar o outro, “é como perguntar o que é que é mais complicado: amar-se a si mesmo ou aos outros. É exactamente a mesma coisa. Por isso digo que a meditação é uma escola de escuta. Se aprenderes a escutar-te a ti mesmo poderás escutar os outros. Ninguém pode dar o que não tem.” Quanto ao egocentrismo: “Eu vejo-me agora a mim mesmo menos egocêntrico do que há uns anos. Mais magnânimo, com a alma maior. O critério para verificar que um caminho de meditação é autêntico é se te torna mais compassivo, mais justo e caritativo. Se o outro tem um papel mais importante na tua vida. A meditação corre o risco de perverter-te, se esquece a dimensão transcendente e se fica pela busca utilitarista de benefícios pessoais.”

O jornalista: “Chama-me a atenção que diga que é mais importante ser si mesmo do que alguém ‘bom’.” Pablo D’Ors: “Refiro-me a que o essencial é o indicativo da graça e não o imperativo moral. O decisivo para a construção de uma pessoa é experienciar o que é, e, na medida em que o fizer, comportar-se-á de uma maneira ou outra. Não temos de estar tão preocupados em ser bons, pela dimensão moral, como pela metafísica do ser. Sermos quem estamos chamados a ser. Se o formos, se na verdade fores tu, serás bom.” Objecção: “Haverá gente que seja ela mesma e seja egoísta.” Resposta: “Isso baseia-se numa visão do mundo, que é a minha, segundo a qual a luta entre a luz e a sombra não é paritária. O que há fundamentalmente é luz. Este ponto de partida não é subjectivo, é contrastável. Por exemplo, se contares quantos comboios descarrilaram hoje no mundo e quantos chegaram ao destino verás que a imensa maioria chegou bem. Se fizermos o mesmo com tudo, vemos que o bem é significativamente mais. O que acontece é que os meios de comunicação social fazem-nos crer que o que existe é o mal, quando é o contrário. É como o céu e as nuvens: as nuvens podem tapar o céu, mas o que na realidade há é um céu. Estamos bem feitos.” Neste contexto, sobre a sua vocação: “Aos 18 anos. É como quando alguém se enamora e sabe que é a pessoa adequada quando a conhece. Foi uma experiência de encontro com o mistério, com a graça de Jesus Cristo. É uma sedução, um fascínio, um sentir que é o eixo vertebrador da tua vida, que lhe dá sentido, força. Foi a experiência do entusiasmo. Estar habitado pelos deuses, pelo espírito. A experiência de que havia algo substancial que tudo sustenta. Dessa experiência, a mais decisiva da minha vida, nunca duvidei.”

Qual é então o sentido da vida? “Redimir o mundo. Colocar luz onde há trevas, amor onde há desamor, esperança onde há inesperança e desespero, claridade na dúvida. Na medida em que fizermos isso, estamos bem e semeamos o bem.

 

3. Está aí, bem à vista, a chave para entender a crise da religião e perceber a conversão de que a Igreja urgentemente precisa para ser o que Jesus quer. Ele passava noites na montanha a rezar e fez a experiência inexcedível do mistério de Deus como Abbá, Papá, querida Mamã. A consequência: amou a todos, por palavras e obras, a começar por aqueles e aquelas que ninguém ama, porque Deus é o sentido último da existência, não caminhamos para o nada, porque Deus é Amor. Tomás Muro disse-o, numa síntese perfeita: “O fundamento da religião é o medo. O fundamento do cristianismo é o amor”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 25 AGO 2019

 

TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

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"O PODER E A GLÓRIA" de GRAHAM GREENE (XXVII)

 

"O Poder e a Glória” foi publicado em 1940 e constitui uma reflexão muito séria sobre o compromisso cristão.

No final dos anos trinta, Graham Greene (1904-1991), então jornalista, foi enviado ao México para avaliar naquele país a situação das perseguições religiosas na região central, derivadas da “guerra cristera”, especialmente nos estados de Tabasco e de Chiapas e em Laredo. Dessa viagem resultou um relato intitulado “The Lawless Road” e depois este extraordinário romance. Aqui se narra a perseguição a um padre fugitivo feita por um tenente fanático que deseja capturá-lo sob a pressão do governador da província.

O relato remete-nos para a lembrança das perseguições dos primeiros cristãos e tem como paradigma nas suas duas faces a figura de Paulo de Tarso, como perseguidor e como perseguido, na Estrada de Damasco. O perseguidor, o tenente, qual fariseu intolerante, consegue a autorização para matar o padre que protagoniza o romance. Finalmente preso, após percorrer fazendas e povoados, o sacerdote é executado para a satisfação do tenente. Mas este clérigo é um pobre homem que vive dominado pelo álcool e que tem um filho para cuidar. Ele tenta fugir, mas o dever e a misericórdia chamam-no sempre que alguém pede o seu auxílio.

Como afirmou François Mauriac, que não poupou elogios ao romance, que considerou ser uma obra-prima: “mesmo quando crê que a sua ajuda é vã, e não ignora que é de uma emboscada que se trata e que aquele que o chama já o traiu, este padre bêbedo, impuro, que treme perante a morte, dá a sua vida sem perder em nenhum momento o sentimento da sua baixeza e da sua vergonha”. O drama de “O Poder e a Glória” corresponde, assim, a um relato dramático em que a Graça e o Pecado se encontram e desencontram – uma vez que o romancista britânico nos diz que é na situação limite e no afrontamento do mal que a Graça se manifesta. Muitos não o compreenderam, porém, mas o tempo veio a revelar que o livro se tornou uma referência do nosso tempo – colocando-nos no centro da dúvida e da fé.

De que vale ficarmo-nos apenas na comum normalidade? É preciso interrogarmo-nos sobre a essência das coisas, o que obriga a ir até às fronteiras onde os sentimentos, as virtudes e o pecado se encontram. A samaritana surpreende-se por encontrar Cristo àquela hora na fonte. Muitos se escandalizam… Tal como no drama do México, perante a perseguição e a incerteza, devemos lembrar, por exemplo, o caso de “Thérèse Desqueiroux”, em que François Mauriac também afronta a humanidade pelo lado da presença constante de um confronto de resultado incerto entre o bem e o mal. A Graça e a liberdade encontram-se e não se anulam. Como disse Paul Henri Simon: «Mauriac engendra um outro trágico, mais complexo e mais moderno, do homem que age e que luta, suspenso entre duas eternidades, do nada e da salvação, entre o infinito deserto e a plenitude infinita do amor, sem que saibamos por que lado se deixará levar…».

Greene sentiu a atração emocional pelo catolicismo no México, perante uma Igreja proscrita com os seus crentes perseguidos. “Vi os índios descerem das montanhas e entrarem nas igrejas, onde tentavam recordar os velhos ritos”. Além do culto do paradoxo, é a recusa do tédio que o levou a escrever, do mesmo modo que as injustiças lhe trouxeram os temas. “As injustiças de que me apercebo não me encolerizam (repetia tantas vezes); antes melhoram os meus poderes de observação. A distância é um dos requisitos da boa literatura”. E é a melhor literatura que encontramos neste romance muito intenso e duro, imortalizado por Henry Fonda em “The Fugitive”, de John Ford (1947), que transpôs para a tela o extraordinário romance de Graham Greene. Se nos lembrarmos de novo de Steinbeck e de “As Vinhas da Ira”, é um outro lado da paixão bíblica que encontramos…

 

Agostinho de Morais

 

 

TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

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«A INVENÇÃO DE MOREL» de BIOY CASARES (XXVI)

 

“A Invenção de Morel” (1940) é uma obra que ombreia com os grandes clássicos que temos vindo a analisar, com uma característica muito singular, a de ligar dois geniais autores. Tendo sido escrita por Adolfo Bioy Casares (1914-1999), um dos grandes nomes da literatura argentina, associa outro nome fundamental, que é Jorge Luís Borges (1899-1986), companheiro fraterno de Casares, a quem não podemos deixar de associar as duas irmãs Ocampo, Victória (1890-1979) e Silvina (1903-1993), ligadas a ambos (Silvina era mulher de Bioy) e grandes animadoras da revista “Sur”. Borges tantas vezes lembrou a simbiose entre dois grandes autores britânicos, Chesterton e Belloc, e podemos dizer que há uma semelhante relação entre Casares e Borges e até inventaram um pseudónimo comum: Bustos Domecq.

Para eles, o romance tinha tudo de prazer, de jogo, de enigma, de labirinto e de caleidoscópio. Leia-se «Aleph» (1949) de J. L. Borges, compreenda-se o diálogo dos teólogos com Deus ou o significado do labirinto do deserto, para o qual nenhum Teseu poderia encontrar um fio de Ariadne… Eis por que associamos os dois – explicando o sentido destas trinta obras-primas das letras, que, todas elas, faziam parte da Biblioteca de Buenos Aires, de que Borges era guardião, e que Umberto Eco retratou em “O Nome da Rosa”, que poderia ter sido integrada nesta biblioteca mágica. E também explicamos que os textos que apresentamos não constituem resumos, contra os quais vimos combatendo com denodo. Há apenas pistas, pontos em branco, para que o leitor se possa aventurar, como Borges e Casares sempre desejaram.

O que é a Biblioteca senão a representação do mundo? Que é um livro senão um caminho que tem de ser trilhado. Oiçamos Borges sobre o livro de Casares: "Discuti com o autor os pormenores do enredo, reli-o; não me pareceu uma imprecisão ou uma hipérbole classificá-lo de perfeito (…). Casares desdobra uma odisseia de prodígio, que não parece admitir outra chave senão a alucinação ou o símbolo, e acaba por os decifrar completamente por meio de um único postulado, fantástico mas não sobrenatural". E Bioy Casares disse: "Sempre tentei fugir do fantástico, mas ele agarrava-me de imediato". Mais do que a literatura mágica, o que encontramos aqui é paradoxo e ironia, dando à literatura a força de se tornar mais real que a própria vida.

É uma história de amor destituída de personagens. É uma história de amor numa ilha supostamente deserta, que corresponde à construção alucinada de uma figura feminina, mitificada num jogo de espelhos, uma paixão inatingível e ao mesmo tempo uma história de aventuras que se situa na fronteira da realidade. O fantástico corresponde à definição da própria vida e do concreto que nos cerca. Vem à lembrança Chesterton, a dizer-nos que os fantasmas dos castelos da Escócia desapareceram quando morreram as pessoas que com eles conviviam.

Um fugitivo condenado na Venezuela chega a uma ilha aparentemente deserta do Pacífico (porventura Tuvalu) e sente-se invisível. A ilha parece estar afetada por uma perigosa e doentia radiação. Morel é um cientista e jogador de ténis que fala com uma mulher bela, a que chama Faustine, que se parece tremendamente com Louise Brooks, heroína do cinema mudo. O fugitivo apaixona-se por essa mulher fatal que todos os dias olha o pôr-do-sol na costa oeste da ilha. Entretanto, descobre que Morel inventou uma máquina capaz de reproduzir a realidade, e aí está a explicação para o mistério com que o fugitivo se confronta. Dalmácio Ombrellieri, Alec, Dora, Irene, a Senhora Idosa, Haynes ou Stoever povoam um mundo dividido entre a ilusão e a realidade, o mundo é duplicado. E aos poucos, descobre-se a verdade sobre essas estranhas personagens que têm a ver com os náufragos do navio fantasma descoberto perto da ilha e cujos espíritos são reanimados pela máquina de Morel. Mas à imagem falta a consciência, e é essa a limitação da invenção de Morel. E ouvimos o fugitivo: «A minha alma ainda não passou para a imagem senão eu teria morrido, teria porventura deixado de ver Faustine, numa visão que ninguém recolherá». E há o apelo a quem inventar uma máquina capaz de reunir imagem e consciência: «Procure-nos, a Faustine e mim, faça-me penetrar no céu da consciência dela. Seria um ato piedoso!»…

Agostinho de Morais

 

A VIDA DOS LIVROS

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  De 26 de agosto a 1 de setembro de 2019

 

Victória Ocampo (1890-1979) fundou em Buenos Aires a revista “Sur” (1931-1971), referência fundamental de uma cultura humanista no mundo ibero-americano, centrada no diálogo entre diferentes identidades e numa perspetiva democrática baseada nas sociedades abertas e na salvaguarda da emancipação humana centrada na liberdade e no respeito dos direitos fundamentais.

 

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LUGAR DE CULTURA

Villa Ocampo está localizada na calle Elortondo 1837, en Beccar, na zona de Santo Isídro, em Buenos Aires. Foi construída em 1891 num terreno de dez hectares junto do Rio de la Plata. O terreno pertencia a Francisca de Ocampo, tía de Manuel Ocampo, pai de Victória, conhecida como tia Pancha, que cedeu a propriedade para a construção do que hoje é a Villa Ocampo. O projeto corresponde a uma típica villa italiana, onde toda la família passaria os seus verões de novembro a março… Francisca Ocampo deixou estabelecido que, por sua morte, deveria ser sua sobrinha Victória a herdar a propriedade, devendo partilhá-la com suas irmãs. Victória Ocampo disse no primeiro volume da sua autobiografia, El Archipiélago: «Tudo começou antes do meu nascimento em 1890. O meu Pai foi o arquiteto da casa e desenhou o parque, grande para esse tempo. A casa e o parque encontram-se nas “barrancas” de Santo Isidro, cerca de Punta Chica, a 20 quilómetros da capital. Hoje, já fazem parte da Grande Buenos Aires. A propriedade pertencia a uma das minhas tias avós, Francisca Ocampo de Ocampo, e só no verão a família ia para lá. A família compunha-se das minhas tias avós, com quem vivemos sempre, os meus pais, as minhas irmãs (cinco) à medida que iam chegando ao mundo e, no princípio, o meu bisavô. Morreu com muita idade. Eu diria que a história da quinta começa com ele, ainda que tenha tido pouco tempo para desfrutá-la. Este bisavô era grande amigo de Sarmiento (Presidente da Argentina, 1868-74) e administrava os seus escassos bens. Sarmiento não se ocupava deles e o meu bisavô obstinava-se em endireitar as suas finanças caseiras. Depois de herdar a Villa, Victória Ocampo usou-a como residência de Verão durante onze anos, até que se mudou definitivamente para lá, deixando a casa inspirada em Le Corbusier encomendada ao arquiteto Bustillos. A Villa Ocampo é rica na presença de grandes memórias da cultura do mundo. Rabindranath Tagore (1861-1941) esteve em Santo Isidro dois meses. Foram semanas muito agitadas, em que vinha muita gente ver o sábio e poeta, sendo necessário protegê-lo para impedir que fosse importunado nos seus quase oitenta anos. Depois, partiu num navio italiano e Victória Ocampo nunca esqueceu a importância do místico e poeta. Depois, foi a vez do pintor uruguaio Pedro Figari (1861-1938) e de Gabriela Mistral (1889-1957), prémio Nobel da Literatura de 1945, que foi cônsul do Chile em Lisboa entre 1935 e 1937. Na Villa Ocampo viveram ainda Albert Camus e Graham Greene (este, por três vezes), Roger Callois, A.W. Lawrence (irmão do célebre Lawrence da Arábia), Etiemble, Waldo Frank, Maria de Maeztu. Frederico Onis, além de Igor Stravinski, Alfonso Reyes, Denis de Rougemont, St. John Perse (Aléxis Léger), Christopher Isherwood ou a modelo Peregrina Pastorino (Péle) – a que se refere Bioy Casares em “A Invenção de Morel”… E a lista de visitantes é igualmente impressionante: Le Corbusier, Gropius, Ortega y Gasset, Pablo Neruda, Drieu de la Rochelle, Jacques Maritain, a cantora Jane Bathori, André Malraux e Indira Gandhi.  

 

A REVISTA “SUR”

Falando da revista “Sur”, o primeiro número foi publicado em 1931 e integrou um conselho internacional, de que faziam parte Ernest Ansermet, Drieu La Rochelle, Leo Ferrero, Waldo Frank, Pedro Henriquez Ureña, Alfonso Reyes, Jules Supervielle e José Ortega y Gasset; além de um conselho de redação composto por Jorge Luís Borges, Eduardo J. Bullrich, Oliverio Girondo, Alfredo González, Eduardo Mallea, Maria Rosa Oliver e Guillermo La Torre. Para Victória Ocampo, a revista era “dos que vieram para a América, dos que pensam na América e dos que são da América. Dos que têm a vontade de compreender-nos e que tanto nos ajudam a compreendermo-nos melhor”. Desde os inícios, a revista “Sur” teve muitos colaboradores argentinos e estrangeiros, além dos citados: Adolfo Bioy Casares, José Bianco, Walter Gropius, Octávio Paz, Ramón Gomez de la Serna, Ernesto Sábato, Federico Garcia Lorca, Gabriel Garcia Marquez, Gabriela Mistral, Silvina Ocampo, ou Pablo Neruda… Entre os secretários da redação, estiveram Raimundo Lida, Ernesto Sabato, Maria Luísa Bombal, Nicolás Barrios Lynch e Enrique Pezzoni… Foi o pensamento e a mundividência de Victória que deram originalidade à revista, como referência mundial. Se a revista deixou de se publicar com periodicidade em 1971 por decisão da sua diretora, foram sendo publicados até 1992 números temáticos. E a aritmética é a seguinte, de 1931 a 1966 editaram-se 305 números e nos seguintes vinte seis anos 67 números –antologias, temas e autores. “Sur” foi um espaço de reflexão e debate, tantas vezes de polémica, sobre a sociedade argentina e sobre a evolução do mundo. Apesar da amizade com Drieu, Victória foi severa opositora dos totalitarismos, tendo sido apoiante da resistência europeia, designadamente francesa, e tendo participado nos julgamentos de Nuremberga. A proximidade com Jorge Luís Borges e Bioy Casares, seu cunhado (casado com Silvina), correspondeu a uma projeção universal e a uma independência de espírito que não passaram despercebidos. A fortuna pessoal de Victória e de suas irmãs e o apoio constante a intelectuais, pensadores e artistas contribuiu para uma marca especial de modernidade, numa Argentina dividida entre o populismo peronista, que Ocampo recusou, e um pensamento democrático e pluralista de que a revista foi porta-voz, contra ventos e marés. Mais do que a revista, importa ainda referir a Editora, que publicou obras de Federico Garcia Lorca, Eduardo Mallea, Juan Carlos Onetti, Alfonso Reyes, Horácio Quiroga, Adolfo Bioy Casares, Aldous Huxley, Carl Gustav Jung, Virgínia Woolf, Vladimir Nabokov, Jean-Paul Sartre e Albert Camus. A queda de Peron em 1955 foi saudada pela revista, recordando-se que o símbolo de “Sur”, uma seta orientada de norte para sul, apontava uma modernidade vinda da Europa e do hemisfério norte e recriada pela força inovadora do Sul. A polémica entre as revistas “Sur” e “Contorno” (de Ismael Viñas), correspondeu a uma crítica do peronismo e do marxismo pelo grupo de “Sur”. A revolução cubana, contra a qual Ocampo levantou a sua voz, perturbou a vida da revista nos anos sessenta, com o afastamento de José Bianco. O sentido inovador e polémico de Victória Ocampo determinou significativas perdas financeiras, mas um corajoso combate político pela liberdade. A Villa Ocampo, onde viveu a mulher de cultura, é hoje um centro da UNESCO.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

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