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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

 

D. QUIXOTE DE LA MANCHA (I)

 

Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616) é o genial autor de “O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha” (1605), a que se seguiu uma segunda parte intitulada “O Engenhoso Cavaleiro D. Quixote de la Mancha” (1615). Estamos perante um extraordinário conjunto de acontecimentos inverosímeis, a começar na jamais sonhada aventura do valoroso cavaleiro com os moinhos de vento, acompanhado do seu fiel escudeiro – sob a invocação de leituras como as de Palmeirim de Inglaterra e Amadis de Gaula. Poderemos dizer que, com o nosso Fernão Mendes Pinto, se trata da criação do romance moderno, em que a vida se torna presente na narrativa, para além da edificação moral ou de uma perspetiva distanciada da singularidade. E assim o picaresco surge como poderosa arma crítica – marca indelével das letras peninsulares. Cervantes usou, de facto, a ironia para fazer a crítica severa de quantos se deixaram prender pelo passado, em vez de assumirem os desafios do novo tempo. Como disse Emilio Castelar: «os livros de cavalaria são o protesto contra o feudalismo e Cervantes a grande estátua que coroa o Renascimento». É a luta entre o Médio Evo e a Renascença. Sancho Pança, Dulcineia de Toboso, Rocinante ocupam este universo que misteriosamente nos fascina, apercebendo-nos, a cada passo, que é um novo mundo que se perfila no horizonte, depois de novas descobertas na ciência e na geografia, nas artes e nos povos…    

 

E lembramo-nos do surpreendente desenlace da obra-prima de Cervantes: «Senhores, mais devagar! (…) – O que lá vai, lá vai. Ontem fui louco, hoje estou são de juízo. Fui D. Quixote de la Mancha e sou agora, repito, Alonso Quijano, o Bom. Possam Vossas Mercês perante o meu arrependimento e verdade restituir-me à estima que lhes merecia e o senhor tabelião tenha a bondade de continuar…». D. Quixote procura, assim, renegar a ponta de loucura que dominara a sua movimentação. Mas os seus companheiros irão desejar que tudo continue na mesma, como se de um sonho se tratasse que deveria continuar… A verdade é que, se Cervantes faz a crítica, certeira, rigorosa e indesmentível, dos males do seu tempo, de que a doentia presença dos romances de cavalaria (pelo menos de alguns) seria sintoma, o cavaleiro da triste figura é a real personificação da representação de quem se deixara arrastar por aventuras fantasiosas retiradas de uma mistura fantasmática da imaginação e da realidade. O certo é que estamos perante uma outra atitude que tem a ver com a realidade de que fazemos parte. O quixotismo é o enfrentamento da realidade com sonho e sentido utópico. Sancho Pança procura, de certo modo, reconduzir as coisas ao concreto e ao senso comum. Mas não deixa de assumir o paradoxo, bem evidente no referido epílogo, entre a recusa de continuar a loucura e o desejo de que tudo se mantenha…

 

Não por acaso, Miguel de Unamuno disse que a filosofia em Espanha se apresentava na «alma» do seu povo como «a expressão de uma tragédia íntima análoga à tragédia da alma de D. Quixote, como expressão de uma luta entre o que o mundo é, tal como no-lo mostra a razão da ciência, e o que queremos que seja, segundo o que nos diz a fé da nossa religião. E nesta filosofia reside o segredo do que nos é apontado, mas que estamos longe de saber o que é». Miguel de Cervantes e o seu talvez alter ego Alonso Quijano ou D. Quixote fazem-nos o relato e a vivência das desventuras de quem, a um tempo, nos fala do passado, sonhando com conquistas inverosímeis, mas não esquece com estranheza o presente e os seus problemas tão diversos e necessários…

 

Agostinho de Morais

CRÓNICA DA CULTURA

 

Os amoladores, os sinaleiros, os ardinas

 

Um tema antigo.

Esquecimento.

Era uma vez.

 

Sempre que o meu pai parava o carro por ordem do sinaleiro e baixava o vidro, todos os dias por aquela hora, o ardina – que já o conhecia – entregava-lhe o jornal pela janela do automóvel a troco da moeda. Corria de um lado para o outro, no meio do trafego, para vender o maior número de jornais possível e também aliviar o peso da cinzenta sacola de pano que transportava e o fazia coxear de tão pedra. Depois logo que vazia a sacola, corria a enchê-la. Quantas vezes os vi a correr, Rua da Rosa acima.

 

E eram homens estes ardinas e eram meninos também que brincavam a descortinar a buzina dos carros que os chamavam, e com um saco de jornais quase maior que o seu tamanho, lá vendiam mais um jornal, a sorrir, como se brincar fosse assim e só assim àquela hora em que os carros passavam perto dos seus pés podendo pisá-los.

 

Ninguém se lhes referia como crianças em trabalho adulto. Esquecimento?

 

Era uma vez

 

Um cabeça de giz, como chamávamos aos sinaleiros devido ao formato do capacete que usavam, um cabeça de giz que elegantemente comandava o trânsito em gestos de braços e mãos de bailarino clássico. Nunca se cansava. Fazia piruetas nas voltas do corpo com uma tal eloquência que, por vezes, os carros não arrancavam logo a seu mando, pois os condutores pensavam ou diziam para os restantes companheiros de viatura

 

Olhem, lá esta ele, parece que dança sem se cansar horas a fio. Parece que controla o ar. É giro este fulano!

 

Ninguém celebrava a passagem por este sinaleiro com um agradecimento. Nem mesmo nos dias de maiores melancolias. Esquecimento?

 

Era uma vez

 

Um amolador que passava lá na rua de Alvalade, tocando uma gaita-de-beiços em timbre conhecido, e a avó dizia logo que o escutava: «pronto lá vem chuva». As criadas corriam com as facas e as tesouras e alguma cafeteira na mão, antes que o amolador da bicicleta se fosse. Creio ter visto, um dia, que a cozinheira levava também na mão um desgravidado chapéu-de-chuva para concertar as hastes. Eu corria de mão dada com as criadas e ficava a ouvir os piropos que o amolador lhes atirava enquanto concertava os haveres entregues. Aquele era danado, diziam elas. Enfim, eu achava bonito ouvi-lo dizer: «dás-me um beijo e caso-me contigo.». Elas riam e provocavam-no. Ele olhava-as com prazer. Era um namoro único. Esperado. Esquecimento?

 

Era uma vez

 

Sempre que escrevo o que bate em mim como alguém que se procura e se pensa e se desenvolve e se aniquila, e depois renasce, porque é com palavras de uma ideia que o esquecimento se faz pensar.

 

Teresa Bracinha Vieira