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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

 

«A MONTANHA MÁGICA» (III)

 

“A Montanha Mágica” é um dos grandes romances europeus de sempre. Thomas Mann (1875-1955) escreveu-o, dando-nos uma extraordinária metáfora sobre o seu (e o nosso) tempo. Filho de uma brasileira de origem portuguesa (Júlia Silva-Bruhns), natural da hanseática Lübeck, Mann dá os primeiros passos literários em Munique e publica em 1901 uma saga admirável de recorte autobiográfico – “Os Buddenbrook”. E pode dizer-se que aí se encontra a força e a vitalidade de uma cultura alemã livre e aberta. Em 1913 dá à estampa “A Morte em Veneza” (celebrizada no cinema, graças a Visconti) e começara a escrever no ano anterior um outro livro que deveria ser sobre a sedução da doença e da morte, a partir da estada com sua mulher Katharina (1883-1980) no sanatório de Davos para curar uma tuberculose. É “A Montanha Mágica”. Mas o romance fugirá ao tema, porque a metáfora da vida se torna mais forte. Em 1929 Mann vence o Prémio Nobel da Literatura e, num período de grandes dúvidas, pelos tempos funestos que se anunciam, torna-se uma das consciências morais do seu tempo, num momento em que a Alemanha vai cair na “banalização do mal”, de que falará Hannah Arendt. Estamos perante um romance filosófico, que desenha um tempo de imensas tragédias. A história é antiga. Hans Castorp protagoniza uma experiência iniciática nos dias agitados e revoltos de antes da guerra de 14. Psicologicamente, sente-se que o perigo espreita em todos os pormenores. De Hamburgo até Davos, Hans faz uma viagem para passar três semanas com o seu primo Joachim Ziemssen, em tratamento no sanatório. Mas, depois de chegar, sofre uma estranha atração por aquele lugar inquietante e mágico. Se programara uma estada curta, o certo é que vai ficar sete anos (como se fossem sete dias). Estaremos perante a metáfora dos dias da criação?

 

A montanha e o que aí acontece funcionam como fontes de uma luz intensa que ilumina a realidade do mundo, como panorama aparentemente inútil e trágico. Hans não usa relógio nem calendários. O tempo quase deixa de contar. Prevalece o universo febril e sensual do sanatório. A mente e a consciência é que comandam, enquanto em torno daquele lugar se vão acumulando as nuvens negras de uma tempestade inaudita. Ludovico Settembrini e Leo Naphta, com quem Castrop dialoga, simbolizam as duas faces da História – a civilização latina, humanitária e jurídica e a cultura mística e dominadora. Um simpático carbonário dialoga com um obstinado místico da virtude. Sobretudo defrontam-se dois inimigos inseparáveis – vida e morte, progresso e tradição, guerra e paz, ciência e fé, democracia e teocracia… Hans sente-se atraído por aqueles dois lados da humanidade (como Thomas Mann em confronto com seu irmão Heinrich por causa da posição alemã na primeira guerra). Mas ainda há a Senhora Clawdia Chauchat, a russa sensual e hedonista, que acende a paixão em Hans. E Castorp acaba por considerar Settembrini e Naphta apenas tagarelas, incapazes de viver um sem o outro (como os teólogos do célebre conto de Borges). E recusa as duas vias. O valor das ideias é relativo, o fundamental está no valor das pessoas e na sua complexidade – razão e sentimento, sobriedade e paixão, como o demonstram Peeperkorn e Clawdia... A liberdade de espírito vale mais do que a morte, mas a piedade do coração prevalece sobre a vida… E inesperadamente despedimo-nos de Hans no teatro absurdo da guerra. O absolutismo das ideias acaba no campo de batalha. De uma festa de morte, elevar-se-á o amor um dia? Sabemos que o final do romance foi difícil para Thomas Mann. Hans torna-se um anónimo na terrível massa da guerra. E, passada essa experiência tremenda, o romancista vai rever a sua a posição, reconhecendo razão a seu irmão Heinrich contra a loucura nazi.    

 

Agostinho de Morais

EVOCAÇÃO DOS 70 ANOS DA INAUGURAÇÃO DO CINEMA E TEATRO SÃO JORGE

 

Completam-se dentro de meses os 70 anos da inauguração do Cinema (e Teatro) São Jorge de Lisboa. E se o referimos desta forma, é porque, precisamente, o grande edifício, vocacionado para cinema desde a fundação, previu a potencialidade de espetáculos de teatro, e não foram poucas as vezes que tal sucedeu, mesmo tendo em vista a descontinuidade histórica - já o podemos assim dizer - da exploração junto do público e da natureza e qualidade dos espetáculos respetivos.

 

E isto apesar da vocação dominante expressa no projeto do arquiteto Fernando Silva, depois, aliás, profundamente alterado no interior das salas de espetáculo.

 

A função cultural de espetáculo do São Jorge transcendia de inicio a exploração cinematográfica, ela própria de exigente qualidade, vocacionada sobretudo para a filmografia inglesa, pois essa era a origem da direção do Cine-Teatro, chamemos-lhe assim: mas desde já se recordam os verdadeiros concertos de órgão eletrónico, efetuados no intervalo das sessões, a que ainda assistimos, aqui recordamos, e que marcavam a qualidade cultural dos espetáculos.

 

Evoca-os designadamente José Augusto França, situando o São Jorge no plano do desenvolvimento urbano de Lisboa com evocação muito elogiosa do projeto original de Fenando Silva, “que venceu um concurso, com correção britânica por identidade dos empresários, e contando com um magnífico espaço interior, superior a todos em Lisboa, que a massa finalmente construída não chegou a acompanhar”...

 

E mais acrescenta José Augusto França que, “apesar da novidade do seu órgão elétrico que tocava nos intervalos, o São Jorge nunca se integrou nos hábitos da capital, disputando dificilmente a clientela da melhor classe mundana do Tivoli e do São Luís, afeitas a um quadro mais tradicional”. Estávamos no início dos anos 50...  (J.A. França “Lisboa, História Física e Moral” ed. Livros Horizonte 2008 pág. 716).

 

Mas isto não obstou a que, durante décadas, o São Jorge tenha mantido uma atividade de espetáculos com qualidade e prestígio de público. 

 

Em 1981 o São Jorge encerrou para obras e reabriu cerca de um ano depois. Prosseguiu a exploração sobretudo cinematográfica, com alternativas que se revelaram difíceis, a ponto de se colocar novamente a certa altura a hipótese da demolição. 

 

Até que em 2001 a Câmara Municipal de Lisboa adquire o edifício.  Não se falou mais em demolição.

 

E até hoje, o São Jorge mantém atividade cultural, com uma programação interna e  internacional que transcende os próprios espetáculos.

 

DUARTE IVO CRUZ