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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

 

«O PROCESSO» DE FRANZ KAFKA (VIII)

 

Esta fotografia de Franz Kafka (1883-1924) e de Milena Jesenská (1896-1944) é uma montagem, mas merece atenção. De facto, as cartas de Kafka a Milena são uma obra fundamental sobre a personalidade do escritor. Infelizmente, as cartas de Milena para Franz perderam-se. O amor entre os dois nunca foi resolvido, mas devemos a Milena não apenas um extraordinário obituário de Franz, mas também um percurso heroico, desde o casamento com o judeu Ernst Polak até ser presa e enviada para o campo de concentração de Ravensbrück, onde morreu em 1944, aos 47 anos. Traduziu para checo parte da obra de Kafka e foi uma militante em prol dos perseguidos. A epistolografia foi um modo privilegiado de comunicação para o Kafka. Escreveu centenas de cartas para a família e amigos, incluindo seu pai, sua noiva Felice Bauer e sua irmã mais nova. Apenas algumas das suas obras foram publicadas e, vida: as coleções de contos “Considerações” e “Um Médico Rural” e textos como “A Metamorfose” em revistas literárias. Tendo cursado Direito na Universidade Alemã de Praga, conheceu Max Brod (1884-1968), de quem se tornou grande amigo e que depressa se apercebeu da grande qualidade intelectual do companheiro. Terminado o curso, Kafka foi contratado em 1907 pela Assicurazioni Generali, uma companhia de seguros italiana, onde trabalhou durante quase um ano. Insatisfeito, demitiu-se em 1908 e iniciou funções no Instituto de Seguros de Acidentes de Trabalho da Boémia. No seu dizer, precisava do seu ganha-pão, que exercia com competência mas sem entusiasmo, queixando-se amargamente por não poder dedicar-se mais à literatura. A vida de Kafka foi muito atribulada, com uma grande instabilidade afetiva, até ao momento em que é vítima da tuberculose laríngea.

 

«O Processo» é um romance de 1914, perturbador, sufocante, mas tragicamente verosímil: «Alguém devia ter caluniado Josef K., visto que uma manhã o prenderam, embora não tivesse feito qualquer mal. A cozinheira da sua senhoria, a senhora Grubach, que todos os dias, pelas 8 horas da manhã, lhe trazia o pequeno-almoço, desta vez não apareceu. Tal coisa jamais acontecera. K. ainda se deixou ficar um instante à espera. Entretanto, deitado, com a cabeça reclinada na almofada, observou a velha do prédio em frente que o contemplava com uma curiosidade fora do vulgar; depois, intrigado e cheio de fome, tocou a campainha. Nesse momento bateram à porta, e um homem, que K. jamais vira na casa da senhora Grubach, entrou no quarto»... O texto, deixado incompleto, conta a história de um bancário que é processado sem saber o motivo. Josef K é perseguido e condenado, desconhecendo as causas da acusação. Apenas sabe, estupefacto, que há um processo judicial contra ele, mas não pode consultá-lo. É obrigado, assim, a percorrer os labirintos da burocracia e da administração, a seguir ritos inconsequentes, a comparecer em tribunais absurdos, a submeter-se a ordens contraditórias e desconexas. Em dado passo, a realidade transforma-se em confusos pesadelos. Foi Max Brod, o editor amigo de Franz Kafka, quem revelou postumamente ao público, em 1925, «O Processo», pertencendo-lhe a escolha e a sistematização dos textos, reeditados com acrescentos em 1935 e 1946. Isto, apesar das orientações deixadas pelo autor no sentido de deverem ser queimados os inéditos. Explica Jorge Luís Borges: «Kafka não quis publicar muito em vida e pediu que destruíssem sua obra, o que me lembra o caso de Virgílio, que também encarregou seus amigos de destruírem a não concluída “Eneida”. A desobediência destes fez com que, felizmente para nós, a obra se conservasse. Eu acho que nem Virgílio nem Kafka queriam, na realidade, que os seus trabalhos fossem destruídos. Senão eles mesmos ter-se-iam encarregado do trabalho. Se eu atribuo a tarefa a um amigo, é um modo de dizer que não me responsabilizo». E Max Brod esclarece: «Em Junho de 1920, fiquei com o manuscrito de “O Processo” e pu-lo imediatamente em ordem. Não tinha título, mas Kafka em conversa intitulara-o sempre “O Processo”. A divisão em capítulos e os títulos são do próprio. A ordem é do meu critério. Contudo, como o meu amigo me havia lido uma grande parte do romance, pôde o meu sentimento apoiar-se, na colocação em ordem dos papéis, na lembrança da leitura. Franz Kafka considerava o romance inacabado. Antes do capítulo final deveria ainda descrever algumas fases do misterioso processo. Mas como este, segundo o autor, jamais devia atingir a suprema instância, o romance era, em certo sentido, inacabável, isto é, infinitamente prolongável».

 

Agostinho de Morais

CRÓNICA DA CULTURA

 

O silêncio é de oiro

 

Ó menina não me faça perguntas, tire lá daqui o microfone, não insista. E lá volta ela

 

O que é que eu sou? Sou um homem sem opiniões daquelas que a menina gosta de ouvir e depois passa na televisão e foi o seu programa ou lá o que seja. Não é?

Se não tenho opinião sobre nada? Pronto, então vamos lá a ver: até tenho. Olhe tenho-as fresquinhas todos os dias pois troco-as com as minhas vacas quando as levo ao monte ou a dar-lhes de beber ou a levá-las a dormir ou quando as acordo. Quer saber? Não quer saber? Mas eu digo

 

A minha opinião de hoje - aquela fresquinha que troquei com a Eulália, esta vaca que aqui vê e que me dá grandes alegrias pelo leite que faz meu pão - foi a seguinte

 

A minha vaca não quer ser europeia e eu também não quero que ela seja. Está no seu direito, ou não? E eu também, ou não? Ela é corajosa mesmo quase calada. É tão corajosa como eu quando digo com firmeza à menina que é precisa coragem para não ter opiniões. A menina consegue? Ah! pois é, até fica muda. Mas olhe, que se conseguir não ter opiniões, ou, tê-las frescas como a minha Eulália me ensina, olhe que no seu caso, se for capaz, ainda vai parar a um cargo bom. Aqui ou na Europa. Sou eu que lho digo. Mas olhe que é preciso que esteja muito tempo caladinha e não pergunte o que não quer ouvir.

 

Ainda há uns dias voltei a lembrar-me que o silêncio é de oiro. Ora veja o preço dele aqui em Ponte de Lima. Mas viu, viu, como já lhe respondi, já não consigo ser rico proximamente. Temos que falar para dentro e por isso eu não lhe queria dizer nada, já que, acredite, a maioria das vezes não tenho opinião e acho que até é bom para o país que não exista mais um palavroso. Entende? E muito menos que fale também em nome de outro, neste caso outra, como foi o caso da minha Eulália. Prometi-lhe e agora descaí-me com a opinião dela também.

 

Pois com licença, cá vou à vida que já pequei e que a sua já está feita, ao menos por hoje.

 

Eulália? Tens a certeza que tens sede? Ou é só para conversar? Pronto a tua mãe vai connosco também. O que é um rumo? Olha é eu andar ao teu passo e aguardar há anos consulta para a dor nas cruzes. Pensa bem, tens opinião sobre quem quer ser um de nós?

 

Pois. Eu também fui sempre assim, como sabes. Seria bom que, por uma vez…

 

Pois.

 

Teresa Bracinha Vieira