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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

 

"PEREGRINAÇÃO", FERNÃO MENDES PINTO (XIV)

 

Estamos perante uma obra pioneira na literatura mundial e europeia. Mais do que um livro de viagens, trata-se de um modo inteiramente novo e original de fazer uma narrativa. Como se disse relativamente a Cervantes, pode afirmar-se que, noutro registo, a “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto (c. 1510-1583) põe-nos perante uma verdadeira personagem romanesca, que assume diferentes acontecimentos e até personalidades, mas que descreve de um modo notabilíssimo, o que era a vida de um português no Oriente – mercador, missionário, soldado, corsário, marinheiro... O próprio título com que a obra foi publicada dá-nos bem conta da riqueza e complexidade do relato. "Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouvio no reyno da China, no da Tartaria, no de Sornau, que vulgarmente se chama de Sião, no de Calaminhan, no do Pegù, no de Martauão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhua noticia. E também da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras muytas pessoas. E no fim della trata brevemente de alguas cousas, & da morte do Santo Padre Francisco Xavier, unica luz & resplandor daquellas partes do Oriente, & reitor nellas universal da Companhia de Iesus". Ao ler a obra, houve quem duvidasse da verdade dos relatos, respeitantes aos vinte e um anos em que andou pela Ásia, tendo sido, na sua própria expressão, “treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e muitas outras províncias daquele Ocidental arquipélago dos confins da Ásia”. A escrita começou uma vez regressado o autor a Portugal, em 1557, só sendo publicada trinta e um anos depois da sua morte (1614), por Pedro Craesbeek, com tardia autorização do Santo Ofício. Aos que duvidaram da veracidade dos relatos, o autor respondeu significativamente: “a gente que viu pouco mundo, como viu pouco também costuma dar pouco crédito ao muito que os outros viram”. É memorável, por exemplo, o encontro de Fernão Mendes Pinto com António de Faria, o célebre corsário, numa situação, em que quiseram saber novidades de Liampó, "porque se soava então pela terra que era lá ida uma armada de quatrocentos juncos em que iam cem mil homens por mandado de El-Rei da China a prender os nossos que lá iam de assento, a queimar-lhes as naus e as povoações, porque os não queria em sua terra, por ser informado novamente que não eram eles gente tão fiel e pacífica como antes lhes tinham dito", mas afinal era engano, pois essa armada tinha ido, afinal, socorrer um Sultão nas ilhas de Goto. É inesquecível a perseguição ao corsário mouro Coja Acém, que se dizia "derramador e bebedor do sangue português" e a quem Faria jurara vingança, por lhe ter roubado as fazendas e morto os companheiros na batalha mais violenta da “Peregrinação”. "E arremetendo com este fervor e zelo da fé ao Coja Acém como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu, com uma espada que trazia, de ambas as mãos, uma tão grande cutilada pela cabeça que, cortando-lhe um barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão...” Hoje sabemos da verosimilhança de tudo quanto nos relatou. Pode até ter acontecido que não fora ele o real protagonista de tudo, mas percebemos que tudo ocorreu de facto. E os estudiosos desse tempo são os primeiros a considerar que não é possível compreender o que João de Barros ou Diogo do Couto nos relatam sem ler Fernão Mendes Pinto.

 

Agostinho de Morais

ELOGIO DO INÚTIL

                                                          

1. Vivemos num tempo com algumas características deletérias. Por exemplo, não penso que seja muito favorável assistirmos em restaurantes a famílias inteiras a dedar num smartfone: o pai, a mãe, os filhos..., que quase se esquecem de comer e sem palavra uns com os outros. É bom estar informado, mas neste dedar constante perde-se o contacto autêntico da e com a família, esse estar presente aos outros mais próximos. E, com o tsunami das informações, incluindo as fake news, fica-se sujeito ao engano, à confusão, e corre-se o risco de se estar a criar personalidades fragmentadas, alienadas, interiormente desestruturadas. E, ao contrário do que se pensa, dentro da conexão universal através das redes sociais, sofrendo uma imensa solidão.

 

A nossa sociedade é também avassalada pelo ruído e pela pressa. Toda a gente corre, sempre com  a vertigem da pressa — para onde?, poder-se-ia perguntar. Para longe de si. Quando é que alguém está autenticamente consigo, sem narcisismo, evidentemente? E o ruído atordoador? Quem é que ainda consegue ouvir o silêncio e aquilo que só no silêncio se pode ouvir? A voz da consciência, a orientação para o sentido da vida, Deus? Quem se lembra do dito famoso de Calderón de la Barca, que escreveu que “o idioma de Deus é o silêncio”?

 

Parece que esta situação vem de longe. O dramaturgo E. Ionesco, já em 1961, se lhe referiu numa conferência, com estas palavras: “Vejam como as pessoas correm atarefadas pelas ruas. Não olham para a direita nem para a esquerda, preocupadas, de olhos fixos no chão, como cães. Caminham a direito, mas sempre sem olhar em frente, pois seguem maquinalmente um percurso já bem conhecido. Em todas as grandes cidades do mundo, é assim que acontece. O homem moderno, universal, é o homem atarefado, que não tem tempo, que é escravo da necessidade, que não compreende que uma coisa possa não ser útil; que não compreende sequer que, na realidade, o útil pode ser um peso inútil, opressivo. Se não se compreende a utilidade do inútil e a inutilidade do útil, não se compreende a arte; e um país onde não se compreende a arte é um país de escravos ou de autómatos, um país de pessoas infelizes, de pessoas que não riem nem sorriem, um país sem espírito; onde não há humor, não há riso, há raiva e ódio.” No mesmo sentido, chamando a atenção para “as ameaças que pesam sobre uma humanidade que não tem tempo para reflectir”, Ítalo Calvino escreveu: “Essas pessoas atarefadas, ansiosas, que perseguem um objectivo que não é um objectivo humano ou que é apenas uma miragem, podem de repente, ao ouvir o som de uma qualquer trombeta ou o chamamento de algum louco ou demónio, deixar-se arrastar por um fanatismo populista.”

 

2. Chegámos, deste modo, cavando mais fundo, à raiz da desorientação deste nosso tempo. Ela encontra-se na mercantilização de tudo, em função do lucro, na subordinação à lógica dos mercados. Afinal, como observou agudamente o filósofo Giorgio Agamben, “Deus não morreu. Tornou-se Dinheiro”. E Jesus já tinha prevenido: “Não podeis servir a Deus e a Dinheiro” (com maiúscula, como se fosse um nome próprio, um deus, Mammôn, em aramaico, a língua materna de Jesus). Como escreveu Nuccio Ordine, com a lógica do lucro, grande parte da Humanidade perdeu o direito de ter direitos, multidões morrem de fome; “transformando os homens em mercadoria e em dinheiro, este perverso mecanismo económico gerou um monstro, sem pátria e sem piedade, que acabará por negar também às gerações futuras qualquer forma de esperança”.

 

A citação recebo-a emprestada de Nuccio Ordine no seu livro A Utilidade do Inútil, um manifesto a favor do “inútil”. De facto, com a mercantilização de tudo e quando só vale o útil, o que serve na lógica do lucro, o que é eficaz e produtivo, a razão técnica e calculadora, tem sentido perguntar: o que vale a poesia, a grande literatura, a música, o saber pelo saber, as Humanidades? É claro que neste universo utilitarista, “um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave inglesa mais do que um quadro, porque é fácil perceber a eficácia de um utensílio e cada vez mais difícil compreender para que servem a música, a literatura, a arte.”

 

Com a financeirização especulativa da economia, só ficam as leis cínicas do mercado e a aparente omnipotência do dinheiro. E a própria política fica reduzida a negócio (s). Já Rousseau tinha observado no seu tempo: “Os antigos políticos falavam sem descanso de costumes e de virtudes; os nossos não falam senão de comércio e de dinheiro”, como se tudo o que não dá lucro fosse  supérfluo ou até perigoso. Mas, então, no quadro da lógica economicista do lucro, tem sentido perguntar: Porque é que nos queixamos da teia infindável da corrupção?

 

Martin Heidegger chamou vigorosamente a atenção para os perigos do monopólio da razão técnica, instrumental. Porque a técnica não pensa, apenas calcula. E aí temos nós a razão que apenas se interessa pelo que se mede e calcula, pela quantidade, ignorando a qualidade. Mas, então, quem somos e o que é que somos, na abertura constitutiva à Transcendência? Pensando apenas nas “finalidades técnicas” e no “para que serve?”, pergunta-se: onde está a beleza de um pôr do sol, para que serve a ternura de um beijo, o florir de um sorriso de criança, a honra, a dignidade, o pensamento crítico, a gratuidade, a filosofia, o estudo das Humanidades, o mistério do Ser e de se ser? Tudo isso é inútil? No entanto, como disse o biofísico e filósofo Pierre Lecomte du Noüy, “na escala dos seres, só o Homem executa actos inúteis”, acrescentando dois psicoterapeutas, Miguel Benasayag e Gérard Schmidt, que “a utilidade do inútil é a utilidade da vida, da criação, do amor.” No seu livro A Cerimónia do Chá (1906), o japonês Kakuzo Okakura intuiu que a passagem do bruto ao humano se deu com a descoberta do inútil: “O homem primitivo superou a sua condição de bruto ao oferecer a primeira grinalda à sua namorada. Elevando-se acima das necessidades naturais primitivas, tornou-se humano. Quando percebeu o uso que se podia fazer do inútil, o homem fez a sua entrada no reino da arte.” Kant apresentou o belo como o que agrada desinteressadamente; o belo tem  a sua finalidade em si mesmo, não é para outra coisa, é “uma finalidade sem fim”.

 

Frente à desertificação galopante do espírito, impõe-se voltar à aparente inutilidade do “inútil”, ao “fascinante esplendor do inútil”, na expressão de George Steiner, que tem a ver com os valores irrenunciáveis da cultura e da educação livre, da grande música, da arte, do estudo dos clássicos e da filosofia, da dignidade livre e da liberdade na dignidade, do pensar crítico.

 

Concluo, com Nuccio Ordine: “Se deixarmos morrer o gratuito, se renunciarmos à força geradora do inútil, se ouvirmos unicamente este canto das sereias que nos impele a procurar o lucro, só seremos capazes de produzir uma colectividade enferma e desmemoriada que, confusa, acabará por perder o sentido de si mesma e da vida.” E uma previsão que dá que pensar: cerca de um terço dos portugueses pode vir a ter perturbações de ansiedade. Um facto: está a aumentar o consumo de ansiolítcos, antidepressivos... Sem pôr em questão a imensa dívida para com a razão tecnocientífica, impõe-se interrogarmo-nos sobre se não acabámos por criar uma civilização contra nós.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 11 AGO 2019