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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

 

"A MORTE DE VIRGÍLIO", HERMANN BROCH (XV)

 

Hermann Broch (1886-1951) nasceu em Viena, no momento que ele próprio definiu de um “Apocalipse alegre”, no seio de uma família judaica de industriais do setor têxtil. A sua formação foi orientada no sentido de assumir responsabilidades nos negócios da família em Teesdorf na manufatura têxtil, fiação e tecelagem, mas nunca escondeu a sua inclinação literária e até filosófica. Relacionou-se com a intelectualidade vienense do seu tempo, em especial com Robert Musil, Rainer Maria Rilke ou Elias Canetti. Em 1927 vendeu a fábrica têxtil e decidiu estudar matemática, psicologia e filosofia na Universidade de Viena. A sua carreira literária iniciou-se, assim, aos quarenta anos, tendo publicado «Os Sonâmbulos», em três volumes, onde se analisam três momentos da história contemporânea, caracterizados pelo “vazio de valores” e pela existência humana dividida entre a o sonho e a realidade. As três datas são: 1888 e a dissolução romântica do mundo antigo; 1905 e a confusão anárquica que prenuncia a guerra; e 1918 quando o niilismo se torna presente e ativo. «Os Sonâmbulos» de Broch procuram, a todo o momento, libertar-se da ética do passado, protagonizando situações contraditórias de racionalidade e irracionalidade. E assim caminham para o abismo. Com o Anschluss (1938), depois de ter escrito sobre Hofmannsthal (num ensaio que retomará em 1948) e quando já está a escrever «A Morte de Virgílio» é preso, mas um movimento de amigos, entre os quais James Joyce, consegue a sua libertação e a partida para o Reino Unido e depois para os Estados Unidos, graças ao visto obtido por Albert Einstein e Thomas Mann. Além da escrita, empenha-se intensamente no apoio aos refugiados alemães e franceses em fuga à barbárie nazi. «A Morte de Virgílio» é uma obra fundamental, que o autor não qualifica como romance, mas como um poema sinfónico, com o que Hannah Arendt concorda. Cada uma das quatro secções tem um elemento central - a água, o fogo, a terra e o éter – e há um ritmo musical assumido - andante, adagio, maestoso. E a morte do poeta é analisada através da repetição, que procura compreender o absurdo. O quadro da obra corresponde às últimas dezoito horas da vida de Virgílio. Na «Chegada», o poeta de “Eneida” toma consciência da dispersão da sua vida e da insatisfação que sente. E inicia-se um pensamento em ritmo febril, pleno de contradições e paradoxos, contrastes e dúvidas. Na «Descida», as memórias ganham unidade, dando-se o poeta conta, com trágico espanto, de que a sua vida e a sua obra, se foram fazendo no esquecimento de uma parte importante da existência. As memórias mais antigas correspondem a uma realidade heterogénea, depois vem uma visão lírica interior, surpreendentemente noturna. A terceira parte, «A Expectativa», recapitula as discussões de Virgílio com os amigos – e no «Regresso a Casa», todos estes elementos conflituais se resolvem numa visão sublime e unitária, no momento em que Virgílio deixa o mundo dos vivos. Como afirma Maria João Cantinho: «Há uma nobreza incomparável na sua teoria sobre a liberdade e no modo como define a responsabilidade humana». Eis como a literatura deveria considerar a prevalência da atenção e do cuidado relativamente ao outro. Nesse ponto encontramos paralelo em Jaspers e em Lévinas. Hermann Broch morreu em 1951 em New Haven, Conneticut – e é indiscutivelmente um dos grandes autores do século XX.

 

Agostinho de Morais

CARTA

 

É sim querida Inês, tens razão, e digo-te;

 

Existe um tempo em que não se sendo feliz, não se perdendo a vontade de estar atento a outro lugar, é-se feliz com o que se vive, e, tolera-se tudo com a tolerância que esconde a procura de outro caminho. Nesse tempo se apoia uma esperança secreta de descobrir um outro ser feliz excluído de obediências e de estranhos estares, e guarda-se fundo os secretos intuíres de que uma música entrou no nosso pensar e vamos procurar-lhe a fonte e fugir por aí. Fugir de ser feliz daquele modo de então.

 

Necessariamente vem sempre à memória o primeiro beijo de amor incondicional: o Zezinho do lado – o menino da casa do lado – veio propor irmos brincar às escondidas, tínhamos ambos 5 anos, e eu respondi ternurenta e triste:

 

«A minha mãe não me deixa ir brincar. Estou de castigo. Pintei os lábios com verniz das unhas.»

 

E o Zezinho com uma lágrima a escapar, deu-me um beijo na testa e fugiu a correr para a casa dele, para chorar tudo o que havia a chorar por não brincar comigo, e por eu estar tão triste, e assim enrolado no cobertor da sua cama a soluçar, deixou-se ficar naquela tarde.

 

Meu Deus este sim, que tempo de felicidade e que existirão outros é seguro, quando, depois de bem crescidos pensarmos na sua conquista.

 

Contudo, vai-se sabendo com os anos que passam, que falta a mãe para proibir ou dar autorização seja ao que for, e que esta realidade é condição indispensável da felicidade. Falta o aconchego de existir a avó que ralha e dá mimo infinito e o tio-avô que oferece uma caixa de alumínio pintada com fadas e flores e com os melhores caramelos do mundo; as criadas que dão torradas com manteiga e açúcar ao lanche; a bisavó que dá ordem para que seja dada a gemada: o irmão que nos olha cúmplice e rosado de tanto afecto, e, ainda às escondidas, a avó que vai fazendo caramelos com a nata do leite e manda que se escondam para serem dados no dia seguinte, enrolados em pratas de cores de sonho. Sim, o dia seguinte era preparado na segurança do dia anterior. Depois, chega o pai, e tem no bolso do sobretudo um cachorrinho mínimo que vai ganindo aos nossos beijinhos encantados. Dormirá connosco enrolado numa mantinha, dentro de uma caixinha de cartão.

 

E é de tudo isto feita a felicidade que se procura recusando a que nos coube forçadamente optar quando a casa desmorona e as pessoas desaparecem para locais indefinidos e definitivamente ocultos do nosso olhar.

 

Agora e afinal já estamos na terceira ou quarta ou quinta busca da felicidade, e, como me dizia o Alçada é muito difícil caminhar para o amor e ele sempre e naturalmente à nossa frente, potencialmente a poder afastar-se sem ruído e de jeito definitivo, e também a esconder-se num precipício de onde se atirará seguro das imensas mãos que o ampararão estonteadas, por desconhecerem o seu poder de voar.

 

Aí, ou vamos com ele, como agarrados a uma cria nossa, ou, verdes de folhagem de tantas lágrimas quando os olhos já não choram, arriscamos na mesma; a chave, carcereira do ar afadiga-se a dar a volta, e, é incrível como os candeeiros das ruínas se acendem cheios de esperança quando compreendemos enfim que a admiração é branca, a febre é insónia, a felicidade é vingativa, a dor é focinho vermelho, os ossos, um trabalho de cinzas e o porão da vida, cobaia dos nossos sentires, consome-se, enquanto a minha abelha leva até ti o mel e numa noite abandonada de jeito a poder dormir tranquila, assim fui partindo  herdeira do musgo que forra os palácios, afinal cheios do odor bruto de tantas manhãs.

 

E para enfrentar todo este grande e último desafio, o amor preparou-me as armas do duelo. As dores contaram os passos. A felicidade virou-se tranquila, quando tudo se imolou e não houve fim no fim.

 

Se for possível, doce Inês, não apanhes tu um comboio exausto, segura sim, um coto de vela e acende-a: é tua, infinitamente e não faz perguntas.

 

Tua amiga

 

Isa

 

PS Queria dizer-te que soube que estiveste com o Alçada. Também a mim nada me disse da Teresa. Sei que para ele a Teresa é uma inconformidade com o limite – já o  escreveu -  e tem nela um espanto de ternura muito dele. Talvez telefonares para a mãe dela não seja má ideia. A Teresa é muito só e mais ainda quando desaparece para o meio da gente que não sabe fazer viagem. Como calculas então o seu itinerário é o de seguir as suas próprias pegadas e não regressa de lá até ser borboleta. Assim a conheço.

 

Teresa Bracinha Vieira