Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Albert Camus (1913-1960), Prémio Nobel da Literatura de 1957, representa uma das referências fundamentais do existencialismo. Com uma obra rica e multifacetada, o escritor franco-argelino foi, pela liberdade de espírito e pela orientação libertária, aquele que, na sua geração, melhor pôde corresponder à superação do espírito do tempo. Foi profundamente criticado, quando publicou “O Homem Revoltado” (1951), por não se ter eximido a criticar o que alguns consideravam tabu, no contexto da guerra fria, mas o tempo veio a confirmar plenamente a compreensão que teve em relação ao risco da tentação totalitária, que existia e poderia aparecer onde menos se esperaria…
Camus disse que o império dos homens pode desvirtuar os objetivos justos, pela cegueira do poder. Todavia, a culpa dos crimes feitos em nome desse império não é da revolta, mas sim a fuga e o esquecimento relativamente às razões da rebelião. A evolução da história contemporânea demonstrou que Camus estava na razão, tendo compreendido os riscos da ilusão sobre a infalibilidade da justiça.
O “Arquipélago de Gulag” e sobretudo o que se lhe seguiu vieram dar razão a Camus, não porque ele nos tivesse dado uma chave de interpretação, mas porque abriu, pela liberdade crítica, perspetivas para uma análise objetiva dos acontecimentos.
No ensaio “O Mito de Sísifo” (1942), escrito em plena grande guerra, o tema central é o absurdo, considerando o homem em busca de sentido num mundo ininteligível, na linha do pensamento de Nietzsche. Será que o absurdo conduz ao suicídio? “Não” - responde o escritor - “Obriga à revolta”. E compara o absurdo da vida do homem à situação de Sísifo, figura condenada a repetir eternamente a tarefa de empurrar uma pedra até o cimo de uma montanha, sendo que, uma vez alcançando o topo, a pedra rolava montanha abaixo até ao ponto de partida pela força irresistível da gravidade, destruindo todo o esforço despendido. Sísifo (como acontecera a Prometeu) desafiou os deuses e foi condenado para toda eternidade, a empurrar a pedra até o topo; e a ter de começar tudo de novo, vezes sem conta. Sísifo é, assim, o ser que assume a vida no máximo das suas possibilidades, odeia a morte e, por isso, é condenado a uma tarefa sem sentido, como herói absurdo. Camus apresenta, assim, a grande metáfora da vida moderna, em que “o operário de hoje trabalha todos os dias na sua vida, repetindo as mesmas tarefas. Esse destino não é menos absurdo, mas é trágico porque só em raros momentos se torna consciente".
Contudo, para Camus, também há o absurdo criador ou do artista. E o absurdo da arte encontra-se com a experiência do mundo e com a existência de cada um de nós. “Se o mundo fosse claro, a arte não existiria”. E Camus lembra Dostoiévski e “Os Irmãos Karamazov”, no qual os protagonistas se encontram, ao explorar os limites da existência, num caminho de esperança e fé, que os leva a não serem criações totalmente absurdas. Camus sentiu-o quando, em plena guerra da Argélia, invocou os riscos sofridos por sua mãe quando a violência tomou conta do quotidiano da vida, apesar da justeza da luta. O seu compromisso pela Resistência, a sua opção pela liberdade, não impediram que fosse incompreendido e acusado em nome de uma lógica abstrata e cega.
Também no ano de 1942, Camus publicou “O Estrangeiro”, protagonizado por Mersault, que assassina um homem e é condenado à morte, mas vive a permanente indiferença em relação a todos os valores morais. Não aceita as regras do jogo. Contudo está disposto a ir até o fim na defesa da verdade em que acredita. Mersault desmascara a hipocrisia alimentada pela sociedade e por cada um – o homem abandona quem ama, mas também é abandonado, e é impotente perante as desgraças que presencia, e que finge não ver. “O Estrangeiro” disseca o que está errado, abre-nos os olhos para a limitação das falsas regras morais.
Camus morreu em janeiro de 1960 num brutal acidente de automóvel. O seu amigo e editor Michel Gallimard também perdeu a vida. Conduzia um Facel Veja e insistira para que o escritor aceitasse a boleia, ainda que tivesse já comprado os bilhetes para viajar de comboio com René Char. Consigo tinha o manuscrito de “O Primeiro Homem”, romance autobiográfico, que deveria sempre ficar inacabado. Como escritor, filósofo, romancista, dramaturgo, jornalista e ensaísta, Albert Camus tornou-se o verdadeiro exemplo de quem sofreu na pele as angústias e incompreensões decorrentes da lógica do absurdo, sem nunca deixar o apego necessário à liberdade.
«Abécédaire de Raymond Aron» (Éditions de l’Observatoire, 2019) acaba de ser publicado por Dominique Schnapper e Fabrice Gardel. Trata-se de pequeno volume em forma de Dicionário que faz uma seleção de fragmentos importantes da obra do autor francês.
TEMPOS OBSCUROS Na apresentação do livro, é recordada uma carta de Romain Gary (1914-1980), três dias antes de se suicidar, onde faz uma apreciação justa e atual sobre a importância de Aron no pensamento democrático europeu: “Caro Raymond Aron, o seu espírito sublinha tão bem estes tempos obscuros, que somos levados por vezes a crer, quando o lemos, na possibilidade de uma saída e da existência de um caminho. Raros são os casos em que um pensamento encontra um carácter”. Nos dias de hoje a apreciação ganha evidente sentido – numa Europa descrente de valores, onde a violência, o ódio, o medo do outro parecem vencer, torna-se necessário pensar caminhos novos que impeçam o desastre. O insulto substitui o diálogo democrático. Em vez de tempo e de reflexão preferem-se mensagens de poucas palavras e suposto efeito imediato. E no entanto a democracia obriga à ponderação da liberdade individual, à consideração do pluralismo e da diversidade, à complexidade e à aceitação da imperfeição humana e da exigência de tirar lições dos erros. Daí a importância de Montesquieu e de Tocqueville, que não apresentam soluções fechadas e definitivas e apelam constantemente à ponderação das diversas legitimidades. Que são as redes sociais hoje senão circuitos fechados, que não criam compromissos de abertura? Daí a obsessão de Aron pelo gosto da verdade, pela detestação das notícias falsas (fake news) e das meias verdades, e pelo apego às instituições democráticas (o pior dos regimes à exceção de todos os outros). Recentemente, entre nós, Carlos Gaspar em Raymond Aron e a Guerra Fria (Alêtheia, 2018) e Álvaro Vasconcelos em 25 de Abril no Futuro da Democracia (Estratégias Criativas, 2019) deram-nos retratos impressivos de Raymond Aron e da sua reflexão, demonstrando como o tempo deu razão ao pensador, a ponto de hoje merecer especial atenção o modo como analisou a construção da democracia e a defesa dos direitos humanos, num contexto de equilíbrio de forças e de influências, de institucionalização de uma cidadania ativa e de criação de mediações eficientes no sentido de uma cultura de paz.
RESPEITAR AS INSTITUIÇÕES Dominique Schnapper é filha de Raymond Aron e recorda, nos dias de hoje, como a democracia representativa mantém atualidade, contra todas as formas que se traduzem numa verdadeira contradição nos termos, a que se chama “democracia iliberal”. É preciso, de facto, dizer com todas as letras que essa realidade não é senão um regime autoritário. “Ser democrata é respeitar as instituições democráticas. E a crise que se manifesta sob formas diversas em alguns países europeus reflete o questionamento da legitimidade do voto e das instituições” (El Pais, 21.7.19). Mas não se pense que a “democracia representativa” é uma realidade fechada – é, sim, um modo aberto de organização política, que tem de ser completado com mediação, com melhor participação, com legitimidade de exercício, com partilha de responsabilidades e com subsidiariedade. Uma democracia abstrata e absoluta não pode existir, pelo contrário quando procura afirmar-se destrói a democracia concreta, como temos visto. Veja-se o caso dos referendos: “os referendos contínuos fazem com que os países complexos se tornem totalmente ingovernáveis. Significa que num momento de emoção toma-se uma decisão”. E o que acontece? Ela é imponderada, imediatista e esquece os fatores essenciais. E Dominique Schnapper lembra o exemplo do “Brexit”. O referendo dividiu a sociedade britânica a meio, e esse impasse não oferece soluções, capazes de salvaguardar o interesse geral. E note-se que, feito o mal inicial, não há possibilidades de encontrar uma solução que não continue a manter a sociedade dividida e fragmentada. É uma ilusão pensar-se que o povo, como abstração, governa – quem governa são os cidadãos organizados. Se a representação não é respeitada entramos no caos. Se, por absurdo, criássemos um sistema de decisão eletrónica imediata e instantânea, criaríamos uma monumental máquina de condicionamento, ou seja, a tirania do número, centrada no condicionamento pavloviano. As decisões fundamentais exigem ponderação, tempo, reflexão. Daí a importância das legitimidades do voto e do exercício. A sociedade complexa obriga à partilha de responsabilidades e de soberanias.
DEMOCRACIA CONTRA O CAOS “Temo que em nome da democracia se instaure um caos, e um caos sempre acaba com governos autoritários ou totalitários” – diz-nos ainda D. Schnapper. Não significa isto que não devamos ter a ambição de aperfeiçoar o sistema. Chantal Mouffe fala de um novo populismo. Leia-se com atenção o que nos diz. É preciso evitar todas as armadilhas que a ausência de “checks and balances” pode conter. É preciso dar resposta aos cidadãos, recusando, no entanto, o tudo, para todos, ao mesmo tempo e já, que significa o caos acima referido. A chave está na criação de mediações eficazes, quando o Estado se tornou grande e pequeno de mais. O Estado-nação está vivo e não pode ser ignorado, mas nem tudo depende dele. Voltando ao caso britânico, veja-se que os efeitos do “Brexit” podem pôr fim ao Reino Unido – e isso será sempre mau para todos. E o mundo de “polaridades difusas” não pode funcionar segundo o método do “salve-se quem puder”. A ordem internacional definida em 1945 deveu-se à grande tragédia suscitada pelos erros de Versalhes em 1919. E o certo é que, por falta de memória, estamos a regressar à lógica da humilhação e do medo das diferenças que libertou todos os fantasmas dos anos trinta… Tragicamente, “a ideia de que todo o mundo aceitará a democracia, que é uma questão de tempo e que não há outra ideia que se lhe oponha acabou. Os chineses contrapõem outra ideia, Orbán tem outra”… Raymond Aron no seu Essai sur les libertés (1965), onde se encontram as conferências proferidas em Berkeley, pôs a tónica na síntese necessária de duas formas de liberdade: o domínio da autonomia deixado aos indivíduos e os meios que o Estado dá aos mais frágeis económica e socialmente, a fim de que possam exercer os direitos que lhes são reconhecidos. “E as democracias modernas não ignoram nem a liberdade de escolha, nem a liberdade-capacidade, uma assegurada pela limitação do Estado, a outra pelas leis sociais. Nos seus melhores momentos, as sociedades ocidentais parecem concretizar esse compromisso exemplar”. Percebemos que é esta síntese que alguns põem em causa e que não pode ser esquecida. As duas formas de liberdade são incindíveis – o que nos obriga a concordar com a liberdade igual e a igualdade livre, contra o igualitarismo, e a compreender que o pensamento político é versátil, mas nunca deve esquecer o primado da dignidade humana…