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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

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«A INVENÇÃO DE MOREL» de BIOY CASARES (XXVI)

 

“A Invenção de Morel” (1940) é uma obra que ombreia com os grandes clássicos que temos vindo a analisar, com uma característica muito singular, a de ligar dois geniais autores. Tendo sido escrita por Adolfo Bioy Casares (1914-1999), um dos grandes nomes da literatura argentina, associa outro nome fundamental, que é Jorge Luís Borges (1899-1986), companheiro fraterno de Casares, a quem não podemos deixar de associar as duas irmãs Ocampo, Victória (1890-1979) e Silvina (1903-1993), ligadas a ambos (Silvina era mulher de Bioy) e grandes animadoras da revista “Sur”. Borges tantas vezes lembrou a simbiose entre dois grandes autores britânicos, Chesterton e Belloc, e podemos dizer que há uma semelhante relação entre Casares e Borges e até inventaram um pseudónimo comum: Bustos Domecq.

Para eles, o romance tinha tudo de prazer, de jogo, de enigma, de labirinto e de caleidoscópio. Leia-se «Aleph» (1949) de J. L. Borges, compreenda-se o diálogo dos teólogos com Deus ou o significado do labirinto do deserto, para o qual nenhum Teseu poderia encontrar um fio de Ariadne… Eis por que associamos os dois – explicando o sentido destas trinta obras-primas das letras, que, todas elas, faziam parte da Biblioteca de Buenos Aires, de que Borges era guardião, e que Umberto Eco retratou em “O Nome da Rosa”, que poderia ter sido integrada nesta biblioteca mágica. E também explicamos que os textos que apresentamos não constituem resumos, contra os quais vimos combatendo com denodo. Há apenas pistas, pontos em branco, para que o leitor se possa aventurar, como Borges e Casares sempre desejaram.

O que é a Biblioteca senão a representação do mundo? Que é um livro senão um caminho que tem de ser trilhado. Oiçamos Borges sobre o livro de Casares: "Discuti com o autor os pormenores do enredo, reli-o; não me pareceu uma imprecisão ou uma hipérbole classificá-lo de perfeito (…). Casares desdobra uma odisseia de prodígio, que não parece admitir outra chave senão a alucinação ou o símbolo, e acaba por os decifrar completamente por meio de um único postulado, fantástico mas não sobrenatural". E Bioy Casares disse: "Sempre tentei fugir do fantástico, mas ele agarrava-me de imediato". Mais do que a literatura mágica, o que encontramos aqui é paradoxo e ironia, dando à literatura a força de se tornar mais real que a própria vida.

É uma história de amor destituída de personagens. É uma história de amor numa ilha supostamente deserta, que corresponde à construção alucinada de uma figura feminina, mitificada num jogo de espelhos, uma paixão inatingível e ao mesmo tempo uma história de aventuras que se situa na fronteira da realidade. O fantástico corresponde à definição da própria vida e do concreto que nos cerca. Vem à lembrança Chesterton, a dizer-nos que os fantasmas dos castelos da Escócia desapareceram quando morreram as pessoas que com eles conviviam.

Um fugitivo condenado na Venezuela chega a uma ilha aparentemente deserta do Pacífico (porventura Tuvalu) e sente-se invisível. A ilha parece estar afetada por uma perigosa e doentia radiação. Morel é um cientista e jogador de ténis que fala com uma mulher bela, a que chama Faustine, que se parece tremendamente com Louise Brooks, heroína do cinema mudo. O fugitivo apaixona-se por essa mulher fatal que todos os dias olha o pôr-do-sol na costa oeste da ilha. Entretanto, descobre que Morel inventou uma máquina capaz de reproduzir a realidade, e aí está a explicação para o mistério com que o fugitivo se confronta. Dalmácio Ombrellieri, Alec, Dora, Irene, a Senhora Idosa, Haynes ou Stoever povoam um mundo dividido entre a ilusão e a realidade, o mundo é duplicado. E aos poucos, descobre-se a verdade sobre essas estranhas personagens que têm a ver com os náufragos do navio fantasma descoberto perto da ilha e cujos espíritos são reanimados pela máquina de Morel. Mas à imagem falta a consciência, e é essa a limitação da invenção de Morel. E ouvimos o fugitivo: «A minha alma ainda não passou para a imagem senão eu teria morrido, teria porventura deixado de ver Faustine, numa visão que ninguém recolherá». E há o apelo a quem inventar uma máquina capaz de reunir imagem e consciência: «Procure-nos, a Faustine e mim, faça-me penetrar no céu da consciência dela. Seria um ato piedoso!»…

Agostinho de Morais

 

A VIDA DOS LIVROS

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  De 26 de agosto a 1 de setembro de 2019

 

Victória Ocampo (1890-1979) fundou em Buenos Aires a revista “Sur” (1931-1971), referência fundamental de uma cultura humanista no mundo ibero-americano, centrada no diálogo entre diferentes identidades e numa perspetiva democrática baseada nas sociedades abertas e na salvaguarda da emancipação humana centrada na liberdade e no respeito dos direitos fundamentais.

 

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LUGAR DE CULTURA

Villa Ocampo está localizada na calle Elortondo 1837, en Beccar, na zona de Santo Isídro, em Buenos Aires. Foi construída em 1891 num terreno de dez hectares junto do Rio de la Plata. O terreno pertencia a Francisca de Ocampo, tía de Manuel Ocampo, pai de Victória, conhecida como tia Pancha, que cedeu a propriedade para a construção do que hoje é a Villa Ocampo. O projeto corresponde a uma típica villa italiana, onde toda la família passaria os seus verões de novembro a março… Francisca Ocampo deixou estabelecido que, por sua morte, deveria ser sua sobrinha Victória a herdar a propriedade, devendo partilhá-la com suas irmãs. Victória Ocampo disse no primeiro volume da sua autobiografia, El Archipiélago: «Tudo começou antes do meu nascimento em 1890. O meu Pai foi o arquiteto da casa e desenhou o parque, grande para esse tempo. A casa e o parque encontram-se nas “barrancas” de Santo Isidro, cerca de Punta Chica, a 20 quilómetros da capital. Hoje, já fazem parte da Grande Buenos Aires. A propriedade pertencia a uma das minhas tias avós, Francisca Ocampo de Ocampo, e só no verão a família ia para lá. A família compunha-se das minhas tias avós, com quem vivemos sempre, os meus pais, as minhas irmãs (cinco) à medida que iam chegando ao mundo e, no princípio, o meu bisavô. Morreu com muita idade. Eu diria que a história da quinta começa com ele, ainda que tenha tido pouco tempo para desfrutá-la. Este bisavô era grande amigo de Sarmiento (Presidente da Argentina, 1868-74) e administrava os seus escassos bens. Sarmiento não se ocupava deles e o meu bisavô obstinava-se em endireitar as suas finanças caseiras. Depois de herdar a Villa, Victória Ocampo usou-a como residência de Verão durante onze anos, até que se mudou definitivamente para lá, deixando a casa inspirada em Le Corbusier encomendada ao arquiteto Bustillos. A Villa Ocampo é rica na presença de grandes memórias da cultura do mundo. Rabindranath Tagore (1861-1941) esteve em Santo Isidro dois meses. Foram semanas muito agitadas, em que vinha muita gente ver o sábio e poeta, sendo necessário protegê-lo para impedir que fosse importunado nos seus quase oitenta anos. Depois, partiu num navio italiano e Victória Ocampo nunca esqueceu a importância do místico e poeta. Depois, foi a vez do pintor uruguaio Pedro Figari (1861-1938) e de Gabriela Mistral (1889-1957), prémio Nobel da Literatura de 1945, que foi cônsul do Chile em Lisboa entre 1935 e 1937. Na Villa Ocampo viveram ainda Albert Camus e Graham Greene (este, por três vezes), Roger Callois, A.W. Lawrence (irmão do célebre Lawrence da Arábia), Etiemble, Waldo Frank, Maria de Maeztu. Frederico Onis, além de Igor Stravinski, Alfonso Reyes, Denis de Rougemont, St. John Perse (Aléxis Léger), Christopher Isherwood ou a modelo Peregrina Pastorino (Péle) – a que se refere Bioy Casares em “A Invenção de Morel”… E a lista de visitantes é igualmente impressionante: Le Corbusier, Gropius, Ortega y Gasset, Pablo Neruda, Drieu de la Rochelle, Jacques Maritain, a cantora Jane Bathori, André Malraux e Indira Gandhi.  

 

A REVISTA “SUR”

Falando da revista “Sur”, o primeiro número foi publicado em 1931 e integrou um conselho internacional, de que faziam parte Ernest Ansermet, Drieu La Rochelle, Leo Ferrero, Waldo Frank, Pedro Henriquez Ureña, Alfonso Reyes, Jules Supervielle e José Ortega y Gasset; além de um conselho de redação composto por Jorge Luís Borges, Eduardo J. Bullrich, Oliverio Girondo, Alfredo González, Eduardo Mallea, Maria Rosa Oliver e Guillermo La Torre. Para Victória Ocampo, a revista era “dos que vieram para a América, dos que pensam na América e dos que são da América. Dos que têm a vontade de compreender-nos e que tanto nos ajudam a compreendermo-nos melhor”. Desde os inícios, a revista “Sur” teve muitos colaboradores argentinos e estrangeiros, além dos citados: Adolfo Bioy Casares, José Bianco, Walter Gropius, Octávio Paz, Ramón Gomez de la Serna, Ernesto Sábato, Federico Garcia Lorca, Gabriel Garcia Marquez, Gabriela Mistral, Silvina Ocampo, ou Pablo Neruda… Entre os secretários da redação, estiveram Raimundo Lida, Ernesto Sabato, Maria Luísa Bombal, Nicolás Barrios Lynch e Enrique Pezzoni… Foi o pensamento e a mundividência de Victória que deram originalidade à revista, como referência mundial. Se a revista deixou de se publicar com periodicidade em 1971 por decisão da sua diretora, foram sendo publicados até 1992 números temáticos. E a aritmética é a seguinte, de 1931 a 1966 editaram-se 305 números e nos seguintes vinte seis anos 67 números –antologias, temas e autores. “Sur” foi um espaço de reflexão e debate, tantas vezes de polémica, sobre a sociedade argentina e sobre a evolução do mundo. Apesar da amizade com Drieu, Victória foi severa opositora dos totalitarismos, tendo sido apoiante da resistência europeia, designadamente francesa, e tendo participado nos julgamentos de Nuremberga. A proximidade com Jorge Luís Borges e Bioy Casares, seu cunhado (casado com Silvina), correspondeu a uma projeção universal e a uma independência de espírito que não passaram despercebidos. A fortuna pessoal de Victória e de suas irmãs e o apoio constante a intelectuais, pensadores e artistas contribuiu para uma marca especial de modernidade, numa Argentina dividida entre o populismo peronista, que Ocampo recusou, e um pensamento democrático e pluralista de que a revista foi porta-voz, contra ventos e marés. Mais do que a revista, importa ainda referir a Editora, que publicou obras de Federico Garcia Lorca, Eduardo Mallea, Juan Carlos Onetti, Alfonso Reyes, Horácio Quiroga, Adolfo Bioy Casares, Aldous Huxley, Carl Gustav Jung, Virgínia Woolf, Vladimir Nabokov, Jean-Paul Sartre e Albert Camus. A queda de Peron em 1955 foi saudada pela revista, recordando-se que o símbolo de “Sur”, uma seta orientada de norte para sul, apontava uma modernidade vinda da Europa e do hemisfério norte e recriada pela força inovadora do Sul. A polémica entre as revistas “Sur” e “Contorno” (de Ismael Viñas), correspondeu a uma crítica do peronismo e do marxismo pelo grupo de “Sur”. A revolução cubana, contra a qual Ocampo levantou a sua voz, perturbou a vida da revista nos anos sessenta, com o afastamento de José Bianco. O sentido inovador e polémico de Victória Ocampo determinou significativas perdas financeiras, mas um corajoso combate político pela liberdade. A Villa Ocampo, onde viveu a mulher de cultura, é hoje um centro da UNESCO.

 

Guilherme d'Oliveira Martins