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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

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«ENSAIOS» DE MICHEL DE MONTAIGNE (XXIX)

 

Na célebre Torre de Montaigne, quando subimos à sala onde o pensador escrevia, olhando os campos de Bordéus, há uma pergunta fundamental, a que Michel Eyquem, Senhor de Montaigne (1533-1592), procurou responder, ao longo da vida: “Que sais-je?”. É essa a pergunta a que não podemos fugir – e que tem de estar presente em toda a nossa vida. Se quisermos simplificar, podemos dizer que Montaigne foi um dos escritores que inaugurou a modernidade do pensamento, ao refletir na primeira pessoa, como “eu”.

Francis Bacon (1561-1626) seguiu-lhe as passadas, e pode dizer-se que consolidou o “ensaísmo”, criado por Montaigne. António Sérgio, Sílvio Lima e Eduardo Lourenço seguem esse caminho fecundo, no caso português. E, falando de Bordéus, temos de lembrar, num rico roteiro intelectual, Charles de Secondat, Senhor de Montesquieu (1689-1755), autêntico criador da democracia moderna. Edgar Morin não se tem cansado de recordar a afirmação de Montaigne de que mais vale uma cabeça bem feita do que uma cabeça bem cheia, por isso o mestre bordalês criticou a educação livresca e formalista, propondo uma educação orientada para a experiência e para a ação (o “saber de experiências feito” que Duarte Pacheco Pereira defendeu ainda no século XV). Mais do que uma instrução livresca, importaria ligar as pessoas à vida vivida e aos seus assuntos urgentes, sem prejuízo da compreensão do tempo e da reflexão, bases do sentido crítico. A educação visa o julgamento crítico, a atenção e o cuidado.

Pelo lado da Mãe, Montaigne descendia de judeus portugueses. O latim foi quase a sua língua materna, uma vez que seu Pai lhe deu como tutor um alemão que apenas falava latim com o discípulo – e que despertou no jovem um espírito vigilante, atento e metódico, aberto à novidade. Estudou no célebre Colégio de Guienne, cujo diretor foi André de Gouveia. Formou-se em Direito e foi magistrado em Périgueux e Bordéus, onde se tornou amigo de Étienne de La Boétie (1530-1563), o autor do “Discurso sobre a Servição Voluntária”. É inesquecível o que Montaigne disse de seu amigo, quando ele morreu: “parce que c’était lui, parce que c’était moi”… E pode dizer-se que o conhecimento que temos da obra de La Boétie, deve-se ao empenhamento de Montaigne na sua divulgação. Viajou pela Suíça, Alemanha e Itália durante dois anos (1580-1581) e elaborou um diário de viagem, publicado no século XVIII. Apesar de dividir o seu tempo entre a administração da herança de seu pai, o desempenho de funções públicas na Câmara de Bordéus e a procura de condições de paz para os conflitos religiosos, nunca abandonou a reflexão pessoal, que constitui um testemunho fundamental para a compreensão do seu tempo.

Os “Ensaios” abrangem três volumes, os dois primeiros publicados em 1580 e 1588, compreendendo este o terceiro volume. Em 1595, publica-se uma edição póstuma destes três livros com novos acrescentos. São autorretratos introspetivos de um homem, mais do que de um filósofo. É a singularidade que Montaigne procura. É assim um pensador sobre a humanidade, sobre a sua diversidade e complexidade – seguindo o curso livre do seu pensamento e das circunstâncias que o rodeiam. Nota-se a sua formação clássica e o conhecimento das condições reais da vida política e económica. As máximas e reflexões dos autores clássicos vão-no ajudando na reflexão e na compreensão de si próprio e dos outros. Sem cair no relativismo, mas compreendendo a importância da subjetividade, Montaigne, através do ensaísmo, não assume um sistema, mas um método, segundo o qual a verdade absoluta deixa de estar ao alcance do homem, sendo doravante, possível tão-somente uma verdade por aproximações. O ensaio significa exatamente a possibilidade de considerar o sentido ético, o carácter e a dignidade como intimamente ligados à ligação entre a singularidade e o sentido comunitário. E Montaigne considera que o mundo inteiro está em constante movimento, mesmo quando há permanência, que significa a suspensão momentânea do movimento. E assim o próprio conceito de “ser” traduz-se na inconstância e numa pluralidade de estados e comportamentos. A sucessão dos ciclos, a falta de continuidade, as dúvidas de coerência, correspondem, assim, à própria complexidade humana.

 

 Agostinho de Morais

 

 

SE SEI VIVER SÓ

 

Se sei viver só?

Quem sabe?

Nessa imagem revelada pelas montras

Passeia-se a rua interior

De mão dada com cada um

Ou não fossemos a primeira e última

Trincheira

Unida a outra e a mais outra

Corredores sem fim e labirínticos

Por entre as mensagens como flechas

Chegadas ao nosso, meu coração rebentado.

Se sei viver só?

Quem sabe?

Cada um compõe a alegria obrigando-se a voltar

Eu a ti e às tuas pálpebras regresso

Para que me ampares o terror experimentado

Na aberta realidade aquela que arboriza a solidão

Sem água

Rosa dos muros, cama das poeiras, orçamento que vela

O nada escrito no pleno dos vazios

Quando se renova a procura de nós

E a rota que turista se passeou à nossa janela

Quando o amor e só ele era o acreditar.

E de novo

Se sei viver só?

Quem sabe?

O parapeito é sempre cais

De onde os sonhos quantas vezes partem confundidos

Por histórias banais que nos ficam na memória

Entrada nela por navios e a ti neles regresso

E afinal a inocência é muita

E por ela a morte passa

Na preocupação de fechar segredos.

E eu quero tanto aquele morango, aquela cereja

Porque a minha obra, se o for tem um fundo vermelho

De sangue e flor futura e cega

E foi minha a andorinha e os xailes esgaçados de tão rotos.

Se sei viver só?

Quem sabe?

A semente é feita de carne humana

Poeta, não grites, não!

Poeta, não deixes fugir as pombas

Ou escuta os astros

E por lá deixa teus olhos

Definitivamente muito definitivamente.

E de todos

Ai anjo que de nós foge

E que me procura há quanto?

Pasmo, quebro-me e vou-me dando

Só paro em deltas

Abraçada ao teu olhar

Porque assim os oceanos

Embrulham-me num musgo, naquele mesmo que foi

Manta de alma enquanto vivi

Enquanto espreito

 

Se sei viver só? 

 

Teresa Bracinha Vieira