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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

De 30 de setembro a 6 de outubro de 2019

 

André Gonçalves Pereira (1936-2019) foi um mestre de Direito Internacional Público e um humanista que há pouco nos deixou e que recordamos.

 

ADVOGADO E PROFESSOR
André Gonçalves Pereira foi um dos Advogados mais brilhantes que conheci, foi um Professor, pedagogicamente irrepreensível, de horizontes abertos e profundo conhecedor da evolução científica nos domínios que estudou e em que ensinou, em especial o Direito Internacional Público, situando-se entre os melhores além-fronteiras. Foi um humanista cultíssimo, para quem a cultura não era um mero luxo, mas um modo de tornar a vida um fator de dignidade e de felicidade. No domínio cultural foi um exemplo de exigência, de qualidade e de critério. Era um verdadeiro “conhecedor das Artes” e toda a sua vida e formação permitiram-lhe aprofundar essas extraordinárias qualidades de requinte e de bom gosto – com compreensão exata da evolução dos tempos, da inovação criadora, da diversidade e da complexidade. A Casa Redonda da Quinta do Lago, em que viveu, ligava o bom gosto, a arte, a singularidade e a criação de condições especiais para a hospitalidade, o convívio e o bem-estar. Eis por que é indispensável recordar o cultor exigente das humanidades e da sensibilidade. Desde muito cedo, designadamente no Liceu Pedro Nunes, afirmou as suas qualidades de inteligência, as capacidades de trabalho e o brilhantismo na apresentação e no desenvolvimento dos temas e questões que abordava, com originalidade e um fino sentido de humor. Quando iniciou o curso de Direito depressa revelou essas qualidades, que lhe permitiram destacar-se junto dos professores e entre os colegas. Desde cedo, o Professor Marcelo Caetano, reconheceu as grandes qualidades do jovem, que viriam a manifestar-se em estudos tornados clássicos e de leitura obrigatória, pela sua excecional qualidade, como “Erro e Ilegalidade no Ato Administrativo”, de 1962, que apesar da distância do tempo e das profundas alterações da ordem jurídica, se revela um caso modelar para a apresentação e desenvolvimento de um tema complexo, mas indispensável.

 

A EXPERIÊNCIA NAS NAÇÕES UNIDAS
Fui seu aluno, e tive oportunidade, pela vida fora, contar com a sua estima pessoal e o seu conselho. Não esqueço a expressão da sua genuína amizade quando iniciei funções na Fundação Calouste Gulbenkian, instituição que tanto lhe deveu. De facto, foi alguém que sempre se entregou de alma e coração às funções que lhe foram confiadas ao longo da vida. A sua experiência das Nações Unidas, nos anos sessenta, na Comissão Jurídica, permitiu-lhe conhecer melhor a sociedade norte-americana e o clima estratégico mundial. Em toda a sua carreira profissional não só se afirmou ao melhor nível, mas também soube formar pessoas, dar bons exemplos e abrir novos caminhos e perspetivas. Filho do Professor Armando Gonçalves Pereira, advogado, que viria a ser diretor do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras e de sua mulher Viviane Delaunay, descendia pelo lado paterno de uma antiga e ilustre família de Goa, sendo sobrinho-neto de Luís Cunha Gonçalves, ilustre civilista e pelo lado materno de uma antiga família aristocrática francesa. Os pais foram dois apoios fundamentais na formação dos dois irmão Jorge e André, o que permitiu a ambos beneficiarem de um ambiente culto e de excelentes condições para desenvolverem as suas qualidades pessoais, intelectuais e profissionais. Lembro a ligação da família às Edições Ática, na Rua Alexandre Herculano, editora de Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro e que tomou a designação da antiga casa fundada por Luís de Montalvor no Chiado. Aí viu André Gonçalves Pereira publicado o seu “Curso de Direito Internacional Público” (depois desenvolvido mercê da parceria académica com Fausto de Quadros). Para André Gonçalves Pereira não havia domínios reservados ou estranhos. Era um leitor entusiasta e sistemático. Os grandes autores e as grandes obras, na literatura ou na pintura, eram-lhe familiares. A música era uma das suas paixões. Os novos caminhos da ciência eram por si seguidos com atenção e curiosidade. Mas a História era, de há muito, um campo de exceção. Conhecia a geoestratégia, a partir da compreensão profunda das raízes históricas. O Médio Oriente era uma realidade difícil que conhecia profundamente, como ficou evidente quando exerceu funções na Fundação Gulbenkian. Mas se a economia do petróleo não tinha segredos, nas diversas fases da sua evolução, o certo é que conhecia como poucos o caleidoscópio dos povos da região, desde o crescente fértil e do Mediterrâneo Oriental, até ao subcontinente indiano e às origens indo-europeias das nossas línguas e culturas. Discutia em pormenor as causas e consequências das guerras pérsicas e do Peloponeso, até às opões de Aníbal nas guerras púnicas – mas também as circunstâncias que rodearam a complexa negociação do Tratado de Tordesilhas ou o erro de cálculo de Magalhães sobre a situação das ilhas Molucas… Era um viajante apaixonado, para quem a História só podia ser entendida através de um bom conhecimento da Geografia. Viajou em todos os continentes em procura de exotismo, de lugares míticos e de referências civilizacionais (Kilimanjaro, Taj Maal, fiordes noruegueses). Preparava meticulosamente essas expedições que tinham, a um tempo, finalidades lúdicas e pedagógicas. A vida possuía afinal o prazer do convívio e do conhecimento, do usufruto da beleza, da descoberta e da aventura.

 

UNIVERSALISMO E PRIMADO DOS DIREITOS HUMANOS
Acreditando no universalismo da dignidade humana, no primado do Direito e na legitimidade democrática tinha o ceticismo próprio da inteligência fulgurante, que era capaz de ver a um tempo as vantagens e os inconvenientes de qualquer solução. Era um europeísta moderado e realista, consciente de que, como ensinou, as instituições europeias deviam considerar a representação e a participação dos cidadãos. Nesse sentido, desconfiava do voluntarismo e da burocracia, mas sabia que as condições para a paz e a segurança precisariam de uma legitimidade supranacional, que completasse as legitimidades nacionais. No dualismo de Henry Kissinger apresentado em “Diplomacia”, estava, assim, mais próximo de Theodore Roosevelt do que de Woodrow Wilson sobre o conceito de balança do poder… O seu sentido de humor era desarmante, mas era a clara demonstração de uma inteligência superior e de uma independência a toda a prova. Um dia disse: “Não sei se esta mania da independência é boa ou má. Nunca escolhi. E não tenciono fazer as contas: como não vou a tempo de corrigir, já não vale a pena”. Hoje podemos dizer que a sua atitude venceu, e deixa uma memória extraordinária de coerência e de exemplo. Por outro lado, não podemos esquecer a sua generosidade e um forte sentido de solidariedade humana, a partir da valorização da importância da Educação. Temos presente a Escolinha do André, no Xai Xai, na província de Gaza, em Moçambique, onde as Irmãs de Santa Catarina de Sena recebem crianças desde o pré-escolar à 5ª classe. Os seus discípulos não esquecem as suas qualidades – e sabem que o melhor modo de preservar a exigência é a ligação efetiva entre a justiça e o senso comum.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

               Herdeira de ti mesma, recuperas forças ali onde
               nos espera a morte. Das cinzas da fogueira te é dado
               teu nascimento. Morre a velhice, mas tu nunca partes,
               tu que viste tudo o que passou, testemunhas os séculos,
               e sabes quando escorreram dos rochedos imóveis as ondas
               tempestuosas que tudo inundaram e quando o fogo
               desencadeado destruiu os desatinos de Faetonte,
               escapaste a esse flagelo, foste a única intacta
               sobre a Terra domada. E nem as Parcas têm direito
               de te fiar em suas rocas.

 

   Estes versos foram escritos em latim por um dos maiores poetas da Antiguidade Clássica, Claudius Claudianus. Glorificam a fénix, essa ave mitológica, cuja lenda nos conta que é única e põe um ovo na fogueira, arde... e das cinzas renasce no seu próprio pinto! Disse Santo Agostinho que tal poema não era aplicável a Cristo Ressuscitado, pois constava que o seu autor fosse anti cristão. Todavia, cem anos antes, já o bom cristão Lactâncio escrevera, por volta do ano 300, o seu Phoenix (Fénix), e a mítica ave foi servindo de símbolo e ilustração da glória da Ressurreição do Senhor. Parece-me que é importante observar como, paradoxalmente (?), a recuperação de imaginário pagão pela iconografia e literatura cristãs, não só não é sinal de idolatria, antes será, pelo contrário, realização de uma potestas - no sentido de poder e domínio de tal imaginário pela fé cristã. Como se todos os deuses antigos, seus mitos e lendas, fossem anúncios do Deus Único, desse Quem então ignorado, que São Paulo anunciou em Atenas, apontando o pedestal vazio, reservado para o Desconhecido: "Pois é desse Deus desconhecido que vos venho falar!" [O agnóstico e Régis Debray, no seu Dieu, un Itinéraire, procura traçar esse percurso de uma revelação progressiva, quiçá multifacetada, de Deus na história da humanidade...]

 

   Acontece que, quando um imaginário coletivo adota um símbolo, não se compromete a mantê-lo sempre no mesmo desenho, mas vai variando os seus contornos e as lendas que conta à sua volta. A título de exemplo, Princesa de mim, traduzo-te a entrada Phoenix do Handbook of Symbols in Christian Art de Gertrude Grace Sill (Macmillan, New York, 1975): A fénix é uma ave mítica de grande beleza, semelhante à águia, mas com cabeça de faisão. Podia viver mais de quinhentos anos. Quando começou a sentir-se velha, ergueu a sua própria pira de aromáticos galhos ao sol meridiano, acendendo-a com o abano de suas asas. Um pequeno verme foi deixado entre as cinzas, e em três dias se tornou em nova fénix. E tornou-se a fénix em símbolo popular da Ressurreição de Cristo, triunfo da vida sobre a morte.

 

   O trecho de poema que acima traduzi talvez deva ser lido como se olha para um mistério, sobretudo por ilustrar a eternidade da Fénix evocando o seu poder de ressurgimento (ou sua "resiliência", para fazermos uso desse conceito da física dos materiais hoje tanto em voga no discurso político...) recorrendo à tragédia mítica de Faetonte ou Fáeton que, na sua versão homérica, é filho da oceânide Clímene e do deus Hélio (Sol), também assimilado a Apolo. Este jovem trágico é geralmente representado, seja a pedir a seu pai autorização para conduzir o seu carro solar, seja, o mais das vezes, a precipitar-se em queda mortal, atingidos, carro, cavalos e condutor, pelos raios fulminantes que Zeus sobre eles dispara. São, já percebeste, Princesa de mim, relâmpagos que os queimam. Na pintura europeia da Renascença e do Barroco é certamente esta versão a mais praticada, prestando-se, aliás, à decoração de tetos: olhamos para cima e vemos cair sobre nós o carro ardente do castigo divino. 

 

   Será essa a representação mais impressionante? Talvez, indubitavelmente, quando a pensamos e sentimos, com receio, como presságio. Na moral da história mítica original (?), o jovem Fáeton desatina mais por inexperiência e verdura de idade, do que por desafio ou soberba: ao guiar o seu fáeton de fogo (quando, no século XIX, foram surgindo, nos parques e lugares de passeio, mais carrinhos daqueles, descapotáveis e leves, deram-lhes o nome mítico, mas sem o fogo...) o rapaz não o aguentava bem no itinerário que Hélios lhe havia fixado e, desatinado, ia espalhando um fogo olímpico (mas não inofensivo), que ameaçava destruir as próprias estrelas e a Terra inteira. Assim, mais por cautela e profilaxia, do que por inveja ou punição, Zeus, pai dos deuses, achou benéfico fulminá-lo. Clímene, mãe do infeliz, e as irmãs dele, quando lhe foram chorar a morte. junto à sepultura, foram transformadas em choupos. Terá sido esta a origem do Choupal lírico, saudoso e lacrimejante, do Mondego coimbrão? Não te sei responder, Princesa de mim. Mas posso recordar uns versos de Luís Vaz de Camões (na Elegia X):

 

               Se acaso a caída e má ventura
               de Fáeton te lembra, cuja morte
               te deu sempre jamais tanta tristura,
               o não teres tu culpa te conforte,
               que o moço, de soberbo, não podia
               cair em menos miserável sorte.
               Mas vós, castas Irmãs, que, noite e dia,
               cantais em versos élegos o choro,
               com o cândido Cisne em companhia,
               unidas todas, a-vicenda, em coro,
               um padre consolai tão descontente,
               em módulo cantar doce e canoro.

 

   Esta elegia, também conhecida por Elegia de Sexta Feira de Endoenças, começa por uma dedicatória do Poeta, reveladora da "cristianização" de imagens e símbolos clássicos na cultura da Renascença. Repara bem, Princesa:

 

               A ti, Senhor, a quem as sacras Musas
               nutrem e cibam de poção divina,
               não as da fonte Délia Cabalina,
               que são Medeias, Circes e Medusas,
               mas aquelas em cujo peito, infusas,
               as leis estão que a Lei da Graça ensina,
               beninas no amor e na doutrina,
               e não soberbas, cegas e confusas;
               este pequeno parto, produzido
               de meu saber e fraco entendimento,
               uma vontade grande te oferece.
               Se for de ti notado de atrevido,
               daqui peço perdão do atrevimento,
               o qual esta vontade te merece.

 

   Tenho aqui uma reprodução de A Queda de Fáeton (1703-4), de Sebastiano Ricci, que está no Museu Cívico de Belluno. A fúria fulminadora de Zeus-Júpiter, precipitando Fáeton no abismo aberto, lembra-me, não sei porquê (hoje só imagino o que te escrevo), a criação do homem, representada por Miguel Ângelo na Capela Sistina. Talvez por ser o castigo mortal precisamente uma negação da criação que tira do nada a vida. Mas também me aparecem outras visões gémeas (?) do carro solar de Hélios-Sol-Apolo, que o desditoso Fáeton quis conduzir, ou aprender a guiar... A primeira é a do carro, puxado por cavalos de fogo, que arrebata ao céu o profeta Elias: Então como fogo se levantou o profeta Elias, a sua palavra ardia como facho (Si.,48,1). A palavra de Deus é como fogo, como nos recordam vários passos da profecia de Jeremias: Farei com as minhas palavras uma fogueira na tua boca, e deste povo a madeira que esse fogo devorará (Jer, 5,14)... Não é a minha palavra como o fogo? (Jr, 23, 29). E ainda, aquele passo do profeta Isaías (Is., 66, 15-16): Eis que o Senhor chega envolto em fogo, e os seus carros são como um furacão que lhe acalma a cólera pelo incêndio, e a ameaça por chamas de fogo. Pois que, pelo fogo, o Senhor se faz juiz...

 

   A presença do fogo de Deus parece ser absoluta e em si contraditória. Tal como o amor é fogo que arde sem se ver, o fogo de Deus tudo consome, sem todavia ser apenas destruidor, pois que também dizemos que purifica, limpa, tal como o sangue do Cordeiro lava. Não é só castigo, nem vindicta, antes será promessa de restauração, Ressurreição e vitória sobre a Morte. Ressurgindo das próprias cinzas, a fabulosa Fénix é, assim, símbolo de Cristo. E este Jesus, fogo e Sol, não só purifica, mas como Hélios e Apolo em seu percurso, é pancrator, governa tudo, o Tempo e sua cronologia, a Vida que desperta. No nosso imaginário se misturam todos esses símbolos, plásticos ou literários, com os seus nomes vários e as realidades e sonhos que representam; são marcos e sinais no nosso caminho para a visão real do fim de tudo o que alcançamos, quando sobre nós cair o pano, qual véu apocalíptico que deixa de esconder mistérios e os revela. 

              

Camilo Maria 


Camilo Martins de Oliveira

EVOCAÇÃO DO TEATRO THALIA

 

Vale a pena recordar o papel e a função cultural do Teatro Thalia, muitas vezes referido como Teatro das Laranjeiras que se situa-se em área altamente frequentada. E a sua função e atuação em muito transcendeu as origens aristocratizantes, digamos assim, do Teatro em si, isto desde que foi inaugurado em 1825 por iniciativa do Conde de Farrobo, junto ao Palácio das Laranjeiras, onde morava, e no que é hoje o Jardim Zoológico de Lisboa.

 

Há anos tivemos ensejo de recordar que o velho Teatro foi inaugurado em 1825, alterado em 1842 segundo projeto de Francisco Lodi, e quase destruído por um incêndio ocorrido em 1862. Só a fachada ficou.

 

Mas em 2012 o Teatro é reconstruído segundo projeto dos arquitetos Gonçalo Byrne e Barbas Lopes. Já tivemos ocasião de sublinhar a conciliação do restauro com o que restava do edifício original. E esse edifício teve funções relevantes ao longo das sucessivas atividades socioculturais. Aliás, há como que uma tradição cultural ligada ao Palácio das Laranjeiras. Nos anos 20 do século passado realizaram-se lá espetáculos de bailado a que esteve ligado Almada Negreiros.

 

E tivemos ocasião, em textos anteriores, de recordar que o Teatro foi inaugurado com uma ópera hoje esquecida, “Il Castello de Spiriti” de Mercadante, compositor e maestro então responsável pelas temporadas de ópera organizadas pelo então dono do edifício, João Pedro Quintela, numa tradição familiar que vinha do pai, “nobilitado” com o título de Barão e depois a Conde de Farrobo.

 

 O pai, por sua vez, esteve ligado à fundação do Teatro de São Carlos em 1793 e o filho seguiu-lhe o exemplo de grande aficionado e amador de ópera. Farrobo filho viria a estar também a certa altura na gestão do São Carlos.

 

Na obra intitulada “O Teatro em Lisboa no Tempo de Almeida Garrett” Ana Isabel P. Teixeira de Vasconcelos evoca a frequência de Passos no Teatro das Laranjeiras e cita, entre mais eventos, a colaboração frequente de Rambois e Cinatti como cenógrafos. Evoca a descrição de Francisco Câncio acerca de uma receção a D. Maria II.

 

O Teatro era e será um grande centro de cultura e de projeção social. Como tal, continua hoje a merecer citação. Veremos em próximo texto as referências num volume publicado muito recentemente.

 

DUARTE IVO CRUZ

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL

 

19. O ENIGMA IBÉRICO
IMPRESSÕES DE UM BRASILEIRO EM PORTUGAL (II)

 

É a visão de um encenador e realizador brasileiro, aliada à de artista, jornalista,  historiador e viajante que permaneceu entre nós no decurso de mais de cinco anos, e que aqui chegou em 1999.

 

A intenção é boa, sendo o livro polémico e merecedor de uma leitura ponderada, agregada a uma vontade de tentar compreender e expressar uma necessidade de mudança, o que nem sempre é conseguido.

 

O Portugal de que fala é o reflexo da sua televisão, da mediocridade dos seus écrans, do lixo televisivo, do fraco nível literário, linguístico e dramatúrgico, por confronto com uma literatura portuguesa de excelência.

 

Ao tomar como centro de análise o imobilismo reinante no meio em que trabalhava, generaliza ao todo, ao Portugal total, o que tinha como o essencial de uma parte. O meio televisivo português, com a sua negatividade, onde o autor exerceu a sua profissão temporariamente, serve de centro amplificador. Como na parte impera a apatia e os formatos televisivos importados, transfere essa caraterística para o todo, concluindo que tudo em Portugal está paralisado.

 

Trata-se de um simplismo redutor de uma realidade complexa de difícil (e impossível) simplificação, por Portugal não ser simplificável. É uma primeira crítica a anotar.

 

Ademais, não surpreende que o audiovisual brasileiro prolifere entre nós, não só pela sua reconhecida qualidade técnica e artística a nível mundial, mas também por falarmos a mesma língua, à semelhança do que sucede com os Estados Unidos em relação à Inglaterra. Apesar de o próprio Wilson não o negar: Não é menos verdade que no mundo lusófono em particular (analogamente ao anglófono), vêm da América as contribuições culturais mais numerosas para o património universal.”[1]  

 

É redutor falar num neocolonialismo cultural da antiga colónia. Se o Brasil é portador de uma mais-valia televisiva, qual o problema em aprendermos com ele? Compreensível, pois, que Solon tenha sido convidado a trabalhar entre nós.

 

Mas apesar da sua qualidade técnica televisiva, o Brasil é responsável por alguma  mediocridade da nossa televisão, uma vez Portugal ter adotado o formato das suas telenovelas como entretenimento televisivo predominante, pese embora o desagrado do ensaísta.         

 

Mas a mediocridade televisiva não é um fenómeno tipicamente lusitano, muito menos numa era global de consumos homogéneos em que toda a gente vê os mesmos programas televisivos. Muitos deles pejados de banalidades, excluindo qualquer sentido crítico, tantas vezes de importação maciça da atual superpotência. E que dizer do “Grande Irmão”/“Big Brother” originário da tão vanguardista Holanda?   

 

Questão diferente é a degradação da ficção televisiva portuguesa, de um  conservadorismo mental que não investe na “(…)incontestável  - e regra geral não utilizada - capacidade criativa dos portugueses”[2], renunciando à construção de um pensamento cultural próprio, por maioria de razão num país rico em história, singularidades e universalidades, com o que concordamos.

 

Absurda é a legendagem, em português do Brasil, neste país, de filmes e outros audiovisuais portugueses, ao invés do que sucede entre nós com películas e telenovelas brasileiras, como Wilson reconhece. Pergunta-se: terá o português de Portugal um valor acrescentado que o português do Brasil não tem, no pressuposto de que quem o fala compreende os demais lusófonos, não parecendo relevar, do mesmo modo, o inverso neste país irmão? Ou tratar-se-á de um analfabetismo mais acentuado e universalizado da população brasileira em geral?

 

Tratar-se-á de um conservadorismo mental brasileiro? De um “tempo brasileiro” paralisado, o efeito de uma vaidade desmedida e orgulho doentio pela continentalidade territorial, adaptando e devolvendo ao autor algumas considerações sobre Portugal? A nós, em terras brasileiras, nunca nos soou incompreensível o português do Brasil, nem para os nossos interlocutores o português de Portugal, o que agrava o paroxismo do absurdo. O que faz pensar num Brasil, o Enigma Lusófono. 

 

Generalizar que os portugueses assistem passivos a tudo, tomando como referência a formatação televisiva, é redutor e excessivo. Ter como suas caraterísticas estruturais e intrínsecas a resignação e a melancolia, mesmo que se invoque o fado (nem todo é triste, há-o alegre), também o é. 

 

Nem se pode absolutizar como inatas e inalteráveis de um povo certas caraterísticas, uma vez existirem reações comportamentais modificáveis consoante as circunstâncias e a situação que se vive. E se é verdade que Portugal teve dimensão superior às suas forças e ao seu território, nada impede que lutemos por isso, tendo sempre presente que as coisas muito desejadas e pensadas mentalmente, acabam por passar da teoria à prática. Desde logo, repudiando o fechamento (que sempre nos prejudicou), acolhendo a abertura aos outros e a aceitação ativa e crítica dos seus contributos, sem esquecer a  universalidade, invertendo uma certa e atual receção acrítica do modismo europeu e norte-americano, de um Portugal horizontal, consumista, sem espírito, sem razão de existir para além do dia-a-dia.

 

27.09.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

[1] Idem, pp. 117 e 118.
[2] Idem, p. 57.

 

A PROCURA

A PROCURA.jpg

 

O elmo, as luvas de ferro, a armadura completa que vestia o cavaleiro, era como uma única e selada peça que há muito o separava do mundo que enfim procurava, e, porventura, daquilo que nele procurava, defendendo-se deste modo do Mal que a descoberta envolveria, inclusive, quando adormecendo na praia, a espada, despida e deitada ao seu lado, era fortemente agarrada pela sua mão como um surdo aço em contacto atento.

 

Helgi, o cavaleiro, tinha o seu nome gravado na viseira do elmo, na vontade de se entender por sinais escritos face a eventuais chamamentos do além, cuja linguagem não decifrasse. Tinha Helgi a perfeita consciência que o seu cansaço na longuíssima procura, fizera-o ir e deixando a sua juventude expunha agora as olheiras de uma idade não dita, mas expressa pela pele e sobretudo pelo modo de olhar a indagação.

 

Faço questão em reafirmar o quanto creio que o modo de olhar a pergunta nos expõe a idade, o quanto os sinais têm consistência e peso e luto, o quanto os refúgios absolutos são anteparos das angústias onde se existe na procura. A vida? Um dardo? Um fecho éclair que se nega? Um sentimento? Uma biblioteca.

 

Assim, inicio o dia, mais uma vez tentando transmitir a minha interpretação deste genial conto de António Vieira relendo «A Procura», publicado no livro Dissonâncias pela &etc.

 

Helgi tinha tido em tempos um escudeiro de nome Gylfi ficara ele, um dia, por um castelo, ou a violência da vã esperança não o tivesse seduzido na sua necessidade, na sua gregaridade. Helgi prosseguiu sozinho a procura, sem que esse facto lhe adviesse de coragem, antes, dizer que talvez, de há muito, só lhe interessavam as perguntas fundamentais, logo, a decisão do escudeiro não lhe disputara nenhuma atenção. Contudo, julgo entender que o cavaleiro sentia que o seu cavalo lhe transmitia, a razão da sua errância, pois o trote de Kirjat era tão livre e tão cúmplice dos interditos que Helgi, a ao seu cavalo, reconhecia que indicações díspares não lhe sucederiam; era um ser superior da natureza: incapturável.

 

E a procura continuava e expunha-se também pelo pasmo frontal de encontrar um licorne dos mares jazendo morto na praia onde Helgi adormecera. Veja-se que era um licorne dos mares, criatura dos bosques segundo os códices, e ali à boca do oceano morto, em plena metamorfose de monstruosidade. Haveria que decifrar esta razão. Esta razão e outras, como a da belíssima mulher lhe surgir neste momento e ser seu nome Sigrun, e falar ela outra língua, e o silêncio os levar a compreender a espessura dos gestos e dos olhares e dos caminhos e eis a ilha, eis que antes ou depois dela, quis o cavaleiro interpelar Deus, mas ao desamparar-se Dele interrogando-se das razões, diminuíram as próprias razões da procura que em nome de Deus intentara.

 

Helgi e Sigrun amaram-se numa gruta.

 

Diria que desta feita, ao reler este conto, acreditei ter sentido já que um olhar profundo de desejo retirava ao ser cobiçado algo que não o deixaria igual, como refere o genial autor deste livro. Creio mesmo ser através deste mistério que nos doamos quando nos entregamos a alguém.

 

E eis que o cavaleiro foi o primeiro a sentir o fortíssimo ranger das rochas da gruta ao apertarem-se no seu intento inamovível de se fecharem, e, agarrou o Graal tendo tido ainda tempo de ver que lá dentro, lá estavam os tempos dos primórdios, e nada do fulgor da alma. O futuro? Sim, também estava lá, apocalíptico.

 

Helgi olhou para a sua companheira que escutava o tremor das pedras que os emparedariam vivos. Mostrou-lhe a sua adaga.

 

Estavam nus na eternidade de um momento de graça e apaziguamento depois do amor.

 

Kirjat corria livre pelos prados da ilha.

 

Teresa Bracinha Vieira

DEMISSÃO DO PAPA FRANCISCO

 

1. No passado dia 10, após uma viagem apostólica a África, visitando Moçambique, Madagáscar e Maurício, o Papa Francisco, já no avião, de regresso a Roma, deu, como é hábito, uma longa conferência de imprensa. E foi respondendo a muitas perguntas.

 

1.1. Congratulou-se com o abraço histórico da paz em Moçambique: “Tudo se perde com a guerra, tudo se ganha com a paz. O esforço dos líderes das partes contrárias, para não dizer inimigos, é o de ir ao encontro um do outro. É o triunfo do país: a paz é a vitória do país, é preciso entender isso... E isso vale para todos os países, que se destroem com a guerra. As guerras destroem, fazem perder tudo.”

 

1.2. África é um continente jovem, tem uma vida jovem, “se a compararmos com a Europa, e vou repetir o que disse em Estrasburgo: a mãe Europa quase se tornou “avó Europa”. Envelheceu, estamos a viver um inverno demográfico muito grave na Europa.” E acrescentou que leu algures que há um país europeu que em 2050 terá mais reformados do que pessoas a trabalhar, “e isso é trágico”.

 

Os jovens em África precisam de educação, “a educação é uma prioridade”. E louvou Maurício, cujo primeiro-ministro tem em mente a gratuidade do sistema educativo.

 

1.3. A xenofobia é “uma doença humana” e, lembrando “discursos que se assemelham aos de Hitler em 1934”, acrescentou: “muitas vezes as xenofobias cavalgam a onda dos populismos políticos”. Mas África transporta consigo também “um problema cultural que tem de ser resolvido: o tribalismo”. Temos de “lutar contra isso: seja a xenofobia de um país em relação a outro, seja a xenofobia interna, que, no caso de alguns lugares de África e com o tribalismo, leva a uma tragédia como a de Ruanda.”

 

1.4. “São fundamentais as leis que protegem o trabalho e a família. E também os valores familiares.” E chamou a atenção para os dramas das crianças e jovens que perdem os seus laços familiares.

 

1.5. “Hoje não existem colonizações geográficas — pelo menos, não tantas como antes.... , mas existem colonizações ideológicas, que querem entrar na cultura dos povos e transformar aquela cultura e homogeneizar a Humanidade. É a imagem da globalização como uma esfera, todos os pontos equidistantes do centro. Ao contrário, a verdadeira globalização não é uma esfera, é um poliedro, no qual cada povo se une a toda a Humanidade, mas preserva a própria identidade.” Contra a colonização ideológica, é preciso respeitar a identidade de cada povo e dos povos.

 

1.6. Opôs-se de novo ao proselitismo em religião, lembrando uma palavra de São Francisco de Assis: “Levem o Evangelho, se for necessário, também com as palavras”. A evangelização faz-se sobretudo pelo exemplo, pelo testemunho. O testemunho provoca a pergunta: “Porque é que vive assim, porque age assim?” Aí explico: “É pelo Evangelho”. “E qual é o sinal de que um grupo de pessoas é um povo? A alegria.”

 

1.7. Não podia deixar sublinhar a urgência da defesa do meio ambiente. No contexto da destruição da biodiversidade, da exploração ambiental e concretamente da desflorestação, não deixou de apontar e condenar de modo veemente a corrupção descarada: “Quanto para mim?”. “A corrupção é feia, muito feia.”

 

Revelou que “no Vaticano, proibimos o plástico.” É preciso defender “a ecologia, a biodiversidade, que é a nossa vida, defender o oxigénio, que é a nossa vida. O que me conforta é que são os jovens que levam adiante esta luta”, porque o futuro é deles. “Creio que ter-se chegado ao acordo de Paris foi um bom passo adiante, e depois também outros... São encontros que ajudam a tomar consciência.” E, a menos de um mês do Sínodo para a Amazónia, sublinhou:  “Há os grandes pulmões, na República Centro-Africana, em toda a região Pan-amazónica, e outros menores.”

 

2. E vieram a pergunta e a resposta que mais visibilidade tiveram nos meios de comunicação social mundiais.

 

Jason Horowitz, do The New York Times, perguntou: “No voo para Maputo, reconheceu estar sob ataque de um sector da Igreja nos Estados Unidos. Obviamente existem fortes críticas de alguns bispos, há televisões católicas e sítios americanos muito críticos e até alguns dos seus aliados mais próximos falaram de um complô contra si. Há algo que esses críticos não entendem sobre o seu pontificado? Há algo que tenha aprendido com as críticas? Tem medo de um cisma na Igreja americana? E, se sim, há algo que poderia fazer — dialogar — para evitá-lo?”

 

E Francisco foi longo na resposta.

 

Não é contra as críticas. “As críticas ajudam sempre, sempre. Quando se recebe uma crítica, deve-se fazer imediatamente uma autocrítica: isso é verdade ou não? E eu tiro sempre benefícios das críticas.” Reconheceu que as críticas “não vêm só dos americanos, existem um pouco por todo o lado, mesmo na Cúria.” O problema todo das críticas é se há honestidade ou não. “Uma crítica justa é sempre bem recebida, pelo menos por mim. Uma crítica leal — eu penso isto e isto — está aberta à resposta, e isso constrói, ajuda. No caso do Papa: não gosto deste Papa, critico-o, falo, escrevo um artigo e peço que ele responda. Isso é justo. Mas fazer uma crítica sem querer ouvir a resposta e sem dialogar é não amar a Igreja, é perseguir uma ideia fixa, mudar o Papa ou criar um cisma.” “Não gosto quando as críticas estão sob a mesa: sorriem para ti, mostrando os dentes e, depois, apunhalam-te pelas costas. Isso não é leal, não é humano.” “Atirar a pedra e esconder a mão... isso não serve, não ajuda. Ajuda os pequenos grupinhos fechados, que não querem ouvir a resposta à crítica.”

 

Há uma real ameaça de cisma? “Na Igreja houve muitos cismas.” Há o exemplo do Concílio Vaticano I, por causa da infalibilidade pontifícia. Um grupo fundou os vétero-católicos, que evoluíram e agora ordenam mulheres. Também aconteceu no Concílio Vaticano II, com a separação de Mons. Lefebvre. “Existe sempre a opção cismática na Igreja, sempre. É uma das opções que o Senhor deixa à liberdade humana. Eu não tenho medo de cismas, rezo para que não existam, porque está em jogo a saúde espiritual de tantas pessoas. Que exista o diálogo, que exista a correcção, se houver algum erro, mas o caminho do cisma não é cristão.”

 

Defende-se. “Um cisma é sempre uma separação elitista provocada por uma ideologia separada da doutrina. É uma ideologia, talvez justa, mas que entra na doutrina e a separa. Por isso, rezo para que não ocorram cismas, mas não tenho medo.” Acusam-no de comunista, mas as coisas sociais que diz são as mesmas que disse João Paulo II. “Eu apenas o copio.” E o mesmo deve dizer-se quanto à questão da graça e da moral (eu julgo que, aqui, tem em mente aqueles que o acusam por abrir a porta à possibilidade da comunhão para católicos divorciados e recasados). Avisa: “Quando virem cristãos, bispos, sacerdotes rígidos, é porque por trás há problemas, não há a santidade do Evangelho. Por isso, devemos ser mansos com as pessoas que são tentadas por esses ataques, estão a passar por um problema, devemos acompanhá-las com mansidão.”

 

3. Francisco não exclui a possibilidade de um cisma, mas não tem medo. Ele tem muito opositores e até inimigos, incluindo cardeais influentes, como G. Müller, R. Burke, W. Brandmüller, R. Sarah, que o acusam de não ser um grande teólogo e de herético.

 

Pergunta-se: ele é mesmo herético? Alguém que conheça minimamente o Evangelho e tenha estudado Teologia poderá acusá-lo de herético? Alguém pode ser acusado de herético por anunciar e praticar o Evangelho, aproximando-se dos mais pobres, abandonados, marginalizados? Por proclamar que o nome de Deus é misericórdia? Por abrir a porta à possibilidade de acesso à comunhão, em casos concretos, de católicos divorciados e recasados? Por arremeter contra o clericalismo e o carreirismo e querer que a Igreja siga um caminho sinodal (caminhar juntos em Igreja, decidindo colegialmente, com a participação de todos, pois a Igreja somos todos)? Por avançar numa reforma profunda da Cúria, um verdadeiro cancro da Igreja? Por declarar a urgência da salvaguarda da Criação, do meio ambiente, da biodiversidade, de uma ecologia integral? Por exigir transparência no Banco do Vaticano (como resolver o défice de mais de 70 milhões de euros num orçamento de 300 milhões do Vaticano)? Por estabelecer normas e práticas severas para acabar com o monstro da pedofilia na Igreja? Por abrir a porta à possibilidade da ordenação de homens casados? Por querer que as mulheres tenham o lugar que lhes compete por vontade de Jesus Cristo também em lugares cimeiros de decisão na Igreja? Por promover o diálogo ecuménico e  inter-religioso? Por afirmar que não se pode ficar parado e imóvel no “sempre se fez assim”? Numa palavra, por querer a Igreja que o Vaticano II sonhou?

 

A questão é outra: há muitos, dentro e fora da Igreja, que estão interessados em forçar a demissão de Francisco para, no conclave a seguir, eleger alguém que acabe com as reformas que ele está a operar. O superior geral dos jesuítas, Arturo Sosa, disse-o esta semana: “Existe uma luta política na Igreja entre os que querem a Igreja sonhada pelo Vaticano II e os que a não querem. Estou convencido de que não se trata só de um ataque contra o Papa. Francisco está convencido da sua acção desde que foi eleito. Na realidade, do que se trata é de influenciar a eleição do próximo Papa.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 22 SET 2019

HENRY FONDA NÃO É O PAI DE JANE FONDA

 

Henry Fonda não é o pai de Jane Fonda. Ou seja, é. Mas como se verá, ser ou não ser nem sempre é a questão.

 

Conheci primeiro Jane Fonda, colorida brilhante, plástica. Trocámos olhares lúbricos e ter-lhe-ei roubado algumas carícias. Não a aqueci nem a arrefeci e, “Barbarella” esquecida, passou-me. Coisas de adolescente. Eu não melhorei com a idade, ela muito.

 

Henry Fonda, conheci-o mais tarde. Apresentou-mo o João Bénard numa sessão da Gulbenkian. A mim e a mais 1.500 pessoas, em sala cheia, inquieta, emocionada.

 

É traumático conhecer pessoas em auditórios escuros como breu. Ainda por cima, Henry Fonda entrou na sala com os 35 anos de 1940, desenhado por um chiaroscuro que logo nos abria os olhos para a honestidade magoada do olhar dele. “The Grapes of Wrath” era o filme e, como o livro original de Steinbeck, em português “As Vinhas da Ira”.

 

Nesse dia, Henry Fonda chamava-se Tom Joad e, apesar da ira que tutelava o filme, transpirava a decência dos justos. Via-se nele uma beleza inclassificável. Nem apolínea, nem dionisíaca. Os deuses, mesmo os gregos, não eram para ali chamados. Henry Fonda oferecia uma beleza humana, modesta, um modo de erguer o corpo na vertical, sem arrogância ou pose.

 

O corpo direito, a barba de dois dias a cobrir-lhe o rosto, sem disfarçar a cicatriz numa das faces, uns olhos divididos entre a angústia e a esperança, Henry Fonda era Tom Joad e não era apenas Tom Joad. Era o povo.

 

Eu julgava que já conhecia o povo. Descobri que o tinha visto, sim, mas conhecê-lo foi ali. “The Grapes of Wrath” retrata tempos de crise. Mostra uma família rural que perdeu a quinta para o Banco e, com os bens decrépitos atulhados numa camioneta miserável, segue estrada fora em busca de trabalho e da Califórnia redentora.

 

Tom Joad, Henry Fonda, é o filho, neto e sobrinho dessa família. Acossados, humilhados, roubados de tudo por Bancos, impostos, polícias, só lhes resta a razão última da sua dignidade. Na mais escura das noites, Tom despede-se da mãe prometendo-lhe “I’ll be all around in the dark, I’ll be everywhere”, e é nessas sombras que mergulha para, bem-aventurado e sedento de justiça, estar em todo o lado.

 

Nos olhos de Henry Fonda, na sua voz calma e de uma vibração segura, a mãe, Ma Joad, descobre a força e a razão para não voltar a ter medo, “co’s we’re the people”, porque somos o povo que vive.

 

E hoje, em qualquer parte do mundo, se vejo uma família que atafulha os bens decrépitos numa camioneta de pneus furados, em cada grito zangado, no medo de cada mãe perplexa, no riso de cada miúdo que ignora o futuro hipotecado, volto a ouvir a voz de Tom Joad, volto a ver o olhar claro, a fé de Henry Fonda.

 

Henry Fonda é mais do que o pai dos seus filhos. Nesse filme de John Ford, Henry Fonda é o povo que se vê all around, em todo o lado. Pode o povo copiar-lhe a voz firme e, ao olhar, roubar-lhe uma razão da esperança?

 

Manuel S. Fonseca

A VIDA DOS LIVROS

De 23 a 29 de setembro de 2019

 

Quinhentos anos depois do início da viagem de Fernão de Magalhães, é tempo de tirar as lições certas, o que é possível com a leitura de “O Drama de Magalhães e a Volta ao Mundo Sem Querer” de Luís Filipe F.R. Thomaz (Gradiva, 2019).

 

 

UMA VIAGEM INESPERADA
Fernão de Magalhães é o mais conhecido e celebrado navegador da história universal – di-lo o autor da obra que referimos com inteira razão… Importa. Porém, tornar clara a razão dessa distinção. A frota de cinco navios, comandada pelo português Fernão de Magalhães, partiu de Sanlúcar de Barrameda, a 19 de setembro de 1519, e tinha como objetivo chegar às Ilhas de Maluco através do grande Oceano Pacífico. O extraordinário mérito de Fernão de Magalhães não foi, porém, segundo o Professor Luís Filipe Thomaz, a organização de uma viagem de circum-navegação do Globo, nem o ter provado a esfericidade da Terra, já conhecida desde Pitágoras (no século VI antes de Cristo), mas sim a fantástica travessia do Pacífico, por ninguém antes realizada ou sequer tentada. Se Vasco da Gama na descoberta do caminho marítimo para a Índia apenas navegou parcamente em costa ou território desconhecido – entre o Rio do Infante, de onde Bartolomeu Dias retornara depois de dobrar o Cabo da Boa Esperança e o Cabo das Correntes, perto de Inhambane, termo das navegações árabes e persas no Índico –, Magalhães apenas podia conhecer até ao rio da Prata na Argentina, percorrendo a partir daí um larguíssimo mar desconhecido, até atingir na Ásia, o arquipélago de S. Lázaro, a que Ruy Lopez de Villalobos chamou Filipinas, em 1542, em honra do Príncipe Filipe, filho de Carlos V, o nosso Filipe I. Magalhães usou a experiência e um método racional para navegar no Oceano desconhecido. Partindo do princípio que o regime de ventos deveria ser semelhante ao do Atlântico, rumou para norte, aproveitando os ventos alísios de sueste e a corrente de Humboldt, infletindo depois para oeste, até ao Equador, que passou a 13 de fevereiro de 1521, aproveitando a corrente equatorial para chegar em três meses às Filipinas, na proximidade das Molucas. Contudo, no dizer do historiador: se não tivesse morrido em combate com os nativos de Mactan (27.4.1521), Magalhães deveria ter regressado ao continente americano, pois estava impedido de fazer navegação na zona de influência de Portugal, segundo o Tratado de Tordesilhas. Aliás, a nau capitânia, Trinidad, sob o comando de Gonzalo Gomez de Espinosa, tentou atingir o Panamá, sem sucesso, sendo obrigada a regressar a Maluco e a render-se aos portugueses de Ternate, que depois de quatro anos de cativeiro libertaram e devolveram à Europa, a ferros…

 

O FEITO DA NAU «VITÓRIA»
Foi a nau Victória (com 60 homens e um carga de cravinho), comandada por João Sebastião de Elcano, a única a completar a volta ao Mundo, seguindo uma rota desconhecida e muito perigosa em zona de influência portuguesa. Começaram por Timor, que só viria a tornar-se protetorado português em 1642, donde se dirigiram diretamente ao cabo da Boa Esperança pelo mar do sul, evitando Moçambique, numa proeza de grande perigo, que durou nove semanas, dobrando o Cabo das Agulhas, ponto mais meridional de África, a 15 de maio de 1522, entrando no Atlântico Sul. Em 9 de julho, chegam a Santiago, arquipélago de Cabo Verde, para se refrescarem, apresentando-se como perdidos à volta das Antilhas e omitindo donde vinham. Não puderam, assim, adquirir alimentos, mas venderam cravinho, o que causou naturais suspeitas… Por isso, uma dúzia de homens que tinham ido a terra foram presos, sendo libertados poucas semanas mais tarde. Finalmente, a 6 de setembro de 1522, aportaram a Sanlúcar de Barrameda, ao fim de dois anos, onze meses e dezassete dias de atribulada viagem. Além do erro de um dia, que muito admirou Elcano em Cabo Verde, resultante de as navegações terem sido feitas de este para oeste, ao contrário do que aconteceu com Phileas Fogg, que viajou em sentido contrário e ganhou um dia. Pedro Mártir de Angléria, humanista da corte de Castela, esclareceria o problema, uma vez que fazendo o navio uma navegação para ocidente atrasar-se-ia a cada 15 graus de longitude uma hora em relação ao tempo solar no ponto de partida… O outro problema tinha a ver com a ideia de Fernão de Magalhães de que as Molucas ficariam no hemisférico de Castela, o que não correspondia à realidade por um pequeno erro de cálculo. O pomo da discórdia foi, de facto, o das ilhas de Maluco, onde os mercadores javaneses e portugueses fizeram desenvolver as plantações de cravo, cravinho, cravo-girofo, cravo-da-índia e cravo-de-cabecinha, além da noz-moscada… Os portugueses foram muito bem recebidos em Ternate e Tidore (outrora, como nos nossos dias, veja-se o nosso “Na Senda da Fernão Mendes”).

 

O HEMISFÉRIO PORTUGUÊS
De facto, as Molucas estavam no hemisfério português. E tudo leva a crer (como confirma João de Barros) que Francisco Serrão terá exagerado em carta ao seu amigo sobre a distância de Malaca às Molucas. E diz o Luís Filipe Thomaz: “é importante notar que, após a sua travessia do Pacífico, (Magalhães) aterrou a 16 de março de 1521, na ilha filipina de Samar, sita a c. 125 graus. E por conseguinte, dois graus a oeste da posição real das ilhas de Maluco, nove e meio da que no seu memorial a el-rei D. Carlos lhes atribuíra. Bom marinheiro como era, é provável que se tenha de imediato apercebido do erro. Se assim foi, deve ter-se sentido frustrado, senão perdido: traíra el-rei de Portugal para provar que as Molucas pertenciam de direito ao reino comarcão; restava-lhe agora o dilema: ou dar a mão à palmatória, traindo el-rei de Castela, ou obstinar-se no erro e trair assim a sua própria consciência”. Aqui poderemos especular. A angústia e o amor-próprio inibiram-no de rumar ao objetivo da expedição. E deambulou pelas Filipinas, até encontrar a morte em resultado de uma inútil escaramuça tribal. “E assim feneceu tragicamente a vida de um homem que foi quiçá o mais ousado navegante da história da Humanidade”. Deve-se a António Pigafetta (1492-1531), que acompanhou a viagem toda, o relato da viagem à volta do mundo: «Relazione del Primo Viaggio Intorno Al Mondo», composta em italiano e publicada Paris (1525). Contudo, uma publicação integral do relato só seria feita em fins do século XVIII, tendo-se perdido o documento original. Entretanto, foi através de uma narrativa anterior, de autoria de Maximianus Transylvanus de 1523, que os europeus tiveram informações da primeira circum-navegação da Terra. Na qualidade de Secretário do Imperador Carlos V, Transylvanus recebeu instruções para entrevistar os sobreviventes da expedição de Magalhães quando a nau Victória retornou à Espanha. Em suma, a gesta de Fernão de Magalhães assume uma importância fundamental, menos pela circum-navegação (corajosamente terminada por Elcano, mas não planeada) e mais pelo facto de os dois Estados Ibéricos terem criado as condições para a percursora descoberta global da Terra.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

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   Minha Princesa de mim:

 

   Fizeste-me pensarsentir, por atenta observação, aliás já antes feita pela nossa amiga Maria Otília Medina, de como me suspeitas de, através da escrita, fugir ao real... Será assim? De certo modo, todos temos uma costela de fugitivo (ou, mais insolente e certa, de fugidio) na peregrinação das nossas vidas. Estas, na verdade, bastas vezes parecem esbracejar entre forças centrípetas e centrífugas e, na aflição, nem sempre sabemos onde temos os olhos postos. Olhamos para o centro, presumindo  que esteja lá a substância que a fé procura; tenta-nos a periferia em cujos horizontes julgamos estar a aventura que talvez desejemos. Afinal, quiçá seja a luta de Jacó com o Anjo a melhor resumir a condição humana, pois nunca conhecemos bem a nossa fortaleza nem as forças com que deverá medir-se. Quanto a fugir do ou ao real, tanto poderá ser em corrida para o centro como a caminho da periferia. Vamos, então, partir em busca do real, sem que, à partida, saibamos o que ele ontologicamente é?

   O real do meu quotidiano  -  tal como, mesmo sem o conheceres pelo sentimento da experiência, poderás imaginá-lo  -  é simples e chão, como o de um monge. Encarrego-me de quase todas as tarefas domésticas (compras, cozinha, mesa, louça, roupa, medicação), com excepção das grandes limpezas caseiras que empregadas de fora fazem ; leio, escuto música, escrevo e, sobretudo, calo-me. O silêncio é como a criação : começa do nada para se tornar vida, é oração, meditação, reflexão, pensarsentir-me, a mim, aos outros, ao mundo, ao cosmos, na origem. [E, dado que sou uma espécie de maníaco etimologista, recordo a raiz, o significado inicial, das palavras cosmos e mundo: a primeira, em grego, diz belo ; a segunda, latina, diz limpo, puro]. Assim olhada, a realidade do universo e da terra, é amável e desejável no seu próprio ser, quer na sua criação, quer no seu apocalipse ou revelação final. Neste sentido, procurar descobrir e amar a pura beleza da essência de tudo, não é fugir ao real, antes é abrir uma rota até ao centro dele. Assim também creio que a minha estranha (?) forma de vida tem uma motivação íntima, curiosamente mais inspirada do que virtuosa ou simplesmente deontológica : ver alguém feliz pelo conforto que eu possa trazer à sua circunstância. A degenerescência de certas faculdades  -  tais como o poder de concentração, o exercício da memória, o tempo e certeza dos reflexos  -  afecta as vidas de muita gente, designadamente daquela a que a idade vai limitando as capacidades de correcção e recuperação. Desse progressivo mas irreversível "divórcio" do mundo que a rodeia, da sua própria circunstância, pode resultar um estado de alma depressivo, angustiado por um sentimento crescente de solidão, angústia essa agravada pelo seu próprio receio. Este mal sem cura poderá, todavia, ter outra realidade, essa que nasce duma nova experiência de liberdade e segurança, de confiança em si através de quem lhe for próximo... Chama-se a tal "benfeitoria" : Alegria de Viver. Aqui no campo, em vida muito isolada, aparentemente, pela diminuição dos contactos expressos, múltiplos e próximos, com tantos amigos, e com a própria periferia do "meu" mundo, sou eu feliz também, porque todos os dias sou presenteado com a despreocupada alegria de alguém ao meu lado, que se sente em casa como quando era menina e moça, sem sequer precisar de saber as horas do dia pelo relógio que já não usa, porque lhe basta perguntar a quem responde. A morte é só o incomunicável ; a vida é a livre respiração da reunião.

   Tampouco será despiciendo o tempo que em raros dias consagro a conversar (pelo telefone, ou em almoços com amigos que me vêm visitar a este retiro donde me é, fisicamente, difícil sair) e a ler jornais e ver um pouco de televisão. Ainda que com reservas e cuidados que me vão balizando as extensões das notícias, declarações várias e comentários que desse modo me chegam, não fico alheio ao que se vai passando nessa periferia. Mas evito, propositadamente, intrometer-me ou, menos ainda, intervir em debates que, logo à nascença, são provocados e conduzidos por "estratégias" (não é assim que dizem?) de concorrência, competitividade e afrontamento, mais assentes em proclamações de atitudes ou "valores" que possam agradar e cativar eleitorados e admirações, do que na serena, estudada e séria análise das raízes, circunstâncias e condicionantes das situações e problemas que, tratando-os comunitariamente, deveríamos resolver. Lembra-te, Princesa de mim, de questões como os incêndios, a Amazónia, os migrantes, as greves de transportes vários, professores, médicos e enfermeiros... Todas essas questões são equacionáveis e atendíveis, comunitariamente, independentemente de desejos ou pretensões a dar, seja a quem for, razão ou ganho. Quando as nossas sociedades políticas deixarem de se focar, quase exclusivamente, em concursos a votos mais facciosos do que racionais, talvez tal seja possível. Mas por enquanto, e por defeito nosso, o espaço público do debate analítico e construtivo tem sido ocupado pela paródia declamatória de inúmeros cultores do fulanismo. O culto ou o ostracismo de fulano ou beltrano ecoa por toda a nossa volta, chegando a ser asfixiante, como no caso do nevoeiro da crónica futebolística que, insistentemente, mais do que apenas perturbar alguns, vicia o juízo de muitos e sugere-lhes, ou mesmo ensina, comportamentos radicalmente facciosos e mercenários. 

   Entretanto, sabes bem que não comento nem gracejo - fora do círculo das conversas hílares (Deo gratias!) entre amigos - "selfies" políticos de Trump et alia... Et pour cause... Tais personagens de comédias da cena política que todos os dias nos é apresentada na ribalta dos media, não são certamente líderes (como também se diz), nem sequer actores, mas apenas máscaras das massas eleitorais manipuladas pelos poderes disfarçados que pretendem governar-nos. Costumo dizer, Princesa de mim, como tão bem sabes, que não há Trump que me preocupe ou assuste. Assusta-me, sim, que seja possível concentrar tanto poder em mãos de um só. E preocupa-me, muito, que a razia crescente da nossa cultura humanista e a progressiva eliminação do espírito crítico, apanágio do humano, resulte no surto de multidões que votem para eleger tais espelhos da sua ignorância e insensatez. Por isso mesmo me pensossinto no dever de ir dizendo e escrevendo, noutro registo, talvez uma escapadela a tal espectáculo, coisas que a maioria não gostará de ler e não lerá, mas que são um modo meu de não fugir ao real, mesmo tentando remar para um quiçá inalcançável centro (?).

   Por outro lado de mim, não resisto a rir-me de tanta comédia, mesmo sabendo que é privilégio de "rico" (salvo seja eu de tal apanágio!) Só que os tais ricos, os consagrados, os grandes, os importantes deste circo e sua assistência, assim como aqueles que lhes vão aparando o jogo, não se riem   -  nem sequer deles próprios  -  mas tomam muito a sério, até pela mesquinhez dos seus interesses, aquilo que os poderá enfim levar à tal fotografia que lhes trará um voto. Curiosamente, eis aqui uma área em que até estaremos a regredir em liberdades, não sei se por excessiva consideração das susceptibilidades das nossas vedetas : repara, Princesa de mim, nas críticas crescentes e descarada censura que se tem feito à arte da caricatura. Aproveita, vai deitar o olho a "bonecos" do século XIX, e nota bem com quanta maior liberdade se gozava então o pagode.

   Parece-me, portanto, claro que nem sequer essa minha propensão a "gozar com a política"  -  como gosta de lembrar um grande amigo, dos tais que me telefona sempre que se sente preocupado ou indisposto, para que eu o faça rir  -  possa considerar-se uma fuga ao real. Afinal a realidade é o que for, sempre difícil de ser acomodada aos gostos e desiderata de cada um. Reconhecendo isto, reconheço também que o meu divertimento é modo de fugir, sim, a qualquer ansiedade, receio ou preocupação que não comando. No fundo, e por muito estranho que possa parecer, pensossinto que o estado do mundo resulta do lugar que nele conseguir ocupar a cultura do espírito e seus atributos. Por isso mesmo vou procurando, na minha pequenez e com a insignificância das minhas capacidades, partilhar  -  com todos os que me lêem e escutam  -  caminhos de liberdade do espírito que nos conduzam dos epifenómenos periféricos ao centro inicial das coisas, ou, talvez ainda, a Quem é tudo em todos.

 

               Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

UM TEATRO EFÉMERO EM LISBOA: O TEATRO D. FERNANDO

 

Nesta alternância entre teatros em atividade e teatros antigos e desaparecidos, evocamos a memória de um teatro situado no coração de Lisboa. Não sobreviveu a alterações urbanas e a pressões culturais que, já na época, marcavam a vida sociocultural da cidade – e isto, insista-se, num tempo que a expressão não teria o menor cabimento…

 

Em qualquer caso, evocamos aqui o então denominado Theatro de D. Fernando. Foi inaugurado em 20 de outubro de 1849 e demolido exatos 10 anos depois. O projeto arquitetónico deve-se basicamente ao arquiteto francês Arnould Bertin.

 

Tenhamos presente que o Teatro de D: Maria II foi inaugurado em 1846, segundo projeto do italiano Francisco Lodi, e há sempre que recordar a relevância de Garrett na iniciativa.  E tal como refere José Augusto França “o discurso arquitetónico o romantismo começa ali”, sintomaticamente (in “A Arte Portuguesa de Oitocentos”).

 

Por seu lado, Sousa Bastos, no sempre referenciável “Diccionario do Theatro Portugez”, livro datado de 1908, levanta dúvidas quanto à construção. Escreve:

 

«O Theatro de D. Fernando era mal construído, de má aparência e com uma sala defeituosa e mal ornamentada. Foi inaugurado em 29 de Outubro de 1849 com o drama Adriana Lecouvreur representando o principal papel Emilia das Neves e sendo ensaiador Emilio Doux».

 

Mas o mais curioso é o que se segue:

 

«No intervalo do 3º para o 4º ato, Garrett foi ao palco abraçar a grande Emília, dizendo-lhe: “Não pode representar melhor!”»

 

E mais acrescenta Sousa Bastos que Garrett tinha visto em França representar “a sublime atriz Rachel”… este nome da “sublime atriz” já pouco  hoje nos recorda…

 

O Teatro tinha dimensão adequada aos hábitos da época. A lotação excedida os 600 lugares, com três ordens de camarotes, o que que marcava a expressão social. E a sua implantação na Lisboa representava também uma valorização urbana que marcava as expressões socio culturais então dominantes…

 

Muito embora: O Teatro D. Fernando teve vida difícil. Ao fim de sete meses, a empresa faliu. Emile Doux tentou prosseguir a carreira e alcançou alguns sucessos. Mas a verdade é que tanto os sucessos como o próprio edifício pouco duraram.

 

E o Teatro D. Fernado foi demolido em 1859.

 

DUARTE IVO CRUZ

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