Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
A preguiça é, segundo a doutrina da Igreja Católica, um dos sete pecados capitais e até há um ditado que a classifica como a mãe de todos os vícios. Num tempo em que preguiçar é um luxo a que poucos podem dar-se, perguntámos ao padre Anselmo Borges porque é que a Igreja a olha como uma falta tão grave.
A preguiça era um dos sete pecados capitais. Porquê? Era e é. Os pecados capitais são sete: soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja, preguiça. Sete é um número perfeito. Neste caso, número perfeito dos vícios que estão à cabeça de todo o mal, por isso se chamam capitais (de capitis, cabeça) e de que as pessoas devem libertar-se. Porquê? Os vícios são-no porque estragam a nossa vida ou a vida dos outros, prejudicam-nos, fazem-nos mal. Pergunto: a preguiça não é contra uma vida autêntica? Não dizemos de alguém preguiçoso, que não trabalha nem cuida da família, que é um parasita e que está a prejudicar outros? Até há um ditado que diz que “a preguiça é a mãe de todos os vícios”.
Mas não é um exagero que o que hoje é quase uma necessidade ou até direito, como escreveu Lafargue, assuma tal gravidade? No sentido que expliquei, não. Tudo depende do que se entender por preguiça, que é um mal se for a recusa do trabalho e o tentar viver à custa dos outros ou encostado ao Estado.
É preciso cultivar o valor do trabalho? Temos de “ganhar” a vida. A vida é um dom, mas, por causa da “neotenia” (viemos ao mundo por fazer e temos de fazer-nos, realizar-nos), temos de trabalhar. O trabalho é uma das características humanas que nos distinguem dos outros animais. Transformando o mundo pelo trabalho, transformamo-nos a nós e realizamo-nos. Por outro lado, o trabalho implica uma tarefa em comum: pelo trabalho, realizamo-nos coletivamente, uns com os outros. E há o trabalho enquanto esforço duro, mas também há a alegria de ter realizado um trabalho, uma obra (em inglês, trabalhar diz-se to work, que vem do grego érgon, obra). Admiramos quem realizou uma obra.
Que significado têm os pecados capitais? São vícios que estão na base de uma existência má para nós e para os outros. Não é verdade que a soberba nos estraga a vida, levando à arrogância e ao desprezo dos outros? Não deve dizer-se o mesmo da avareza, pois acabamos por dar mais importância às coisas do que às pessoas? E da luxúria, que desumaniza a sexualidade? Da ira, que pode levar à violência e a matar? Da gula, que dá cabo até da saúde? Da inveja, que se entristece com o bem dos outros? E da preguiça, como disse.
Segundo a Bíblia, até Deus, após a criação, descansou e quis que houvesse um dia de descanso semanal, para que o ser humano soubesse que não é uma besta de carga. O problema agora é que as pessoas se esgotam a produzir e a consumir.
Fez recentemente um elogio do inútil, numa crónica sua no Diário de Notícias. A preguiça não é também uma forma desse inútil cuja importância sublinha? Tudo depende do que se entender por preguiça, que é um mal se for a recusa do trabalho e o tentar viver à custa dos outros ou encostado ao Estado. Mas faço o elogio do inútil, e é necessário sublinhar isso num tempo em que tudo se compra e tudo se vende, como se os únicos valores fossem os do ídolo dinheiro. É preciso voltar ao gratuito: uma flor que se oferece, contemplar a beleza, fazer silêncio para ouvir melhor: a grande música, que é o divino no mundo, extasiar-se com um pôr-do-sol, a lua e as estrelas, a arte em geral, a poesia, o saber pelo saber, rezar, meditar, ir ao mais íntimo de si para tocar o essencial do mistério…
Há quem encare esse tempo de contemplação e silêncio, por exemplo, como preguiça. Numa sociedade acelerada como a nossa e centrada no trabalho e no desempenho, como conquistar tempo para essa “preguiça boa”? É essencial tempo para o gratuito, para o ócio. A nossa palavra escola vem do grego scholê, que significa ócio. Mas trata-se do ócio próprio dos cidadãos, tempo livre para pensar (lá está a filosofia) e governar a pólis. O problema hoje é que tudo, até as férias, se tornou negócio, a negação do ócio. Tudo está mercantilizado. Outro veneno do nosso tempo: o desassossego interior, a agitação, a sociedade-espetáculo…
O maior problema é já não sabermos como usar o tempo livre? Segundo a Bíblia, até Deus, após a criação, descansou e quis que houvesse um dia de descanso semanal, para que o ser humano soubesse que não é uma besta de carga. O problema agora é que as pessoas se esgotam a produzir e a consumir, até se consomem a consumir, esquecendo que o homem é, constitutivamente, trabalhador e festivo. E consumimo-nos mesmo, sem tempo para viver. Simplesmente isso: viver o milagre do ser e de existir! Não penso que os portugueses sejam propriamente preguiçosos. Somos é pouco produtivos, por motivos vários: falta de qualificações, falta de salários justos e motivadores, falta de bons gestores…
O que tem a preguiça de bom e de mau? Já lhe disse em que sentido a preguiça é mal. Mas é um bem necessário naquele outro sentido de não fazer nada, pura e simplesmente para se poder viver o milagre de existir. Somos seres festivos e precisamos de festejar, conviver com a família, apreciando um bom copo de vinho, apanhar sol relaxadamente deitados na praia…
Diz-se muitas vezes dos portugueses que são preguiçosos. São ou a “acusação” é uma injustiça? Não penso que os portugueses sejam propriamente preguiçosos. Somos é pouco produtivos, por motivos vários: falta de qualificações, falta de salários justos e motivadores, falta de bons gestores… Veja-se como os trabalhadores portugueses são apreciados no estrangeiro. Reflita-se sobre as razões disso. Mas concordo que também há gente cujo ideal é viver à custa dos outros… E há maus exemplos também: o que faz metade dos deputados que, como disse Macário Correia, nada fazem de útil, apenas se passeiam a ver passar o tempo, vivendo à custa dos contribuintes?
Perfil Anselmo Borges Doutor em Filosofia, Anselmo Borges, 75 anos, é padre da Sociedade Missionária Portuguesa, professor universitário, comunicador e autor de vários livros em que reflete sobre a religião, o seu lugar na sociedade atual, o pensamento contemporâneo e diversas questões da atualidade. O diálogo inter-religioso e o regresso aos valores essenciais do Evangelho estão na base da sua reflexão. Anselmo Borges é cronista do Diário de Notícias.
Texto de Catarina Pires | Fotografia Leonel de Castro/Global Imagens in DNLive 29-08-2019
É ao Pilote de Guerre que vou buscar as formulações transparentes do peculiar pensamento humanista de Antoine de Saint-Exupéry que seguidamente - e prosseguindo reflexões encetadas em cartas anteriores - para ti traduzo :
Escorregámos - por falta de método eficaz - da humanidade que assentava no ser humano, para este formigueiro que assenta na soma dos indivíduos.
Que tínhamos para opor às religiões do Estado ou de massas? Que acontecera à nossa grande imagem do ser humano nascido de Deus? Já se tornara dificilmente reconhecível através de um vocabulário que se esvaziara da sua substância.
A pouco e pouco, esquecendo o humano, limitámos a nossa moral aos problemas do indivíduo. Exigimos que ele não lesasse o outro indivíduo. A cada pedra que ela não lesasse outra pedra. E é certo que não se lesam entre si quando estão a monte num campo. Mas lesam a catedral que teriam fundado e que, em retorno, teria fundado o próprio significado deles.
Eis um trecho de manifesto anti-individualista. Mas, na verdade, o conceito de indivíduo, em Saint-Exupéry, pode parecer ambíguo, pois se o respeito do homem [do humano] não implica prosternação degradante perante a mediocridade do indivíduo, a estupidez ou a ignorância, para a sua formação cristã, que evoca, o exercício da caridade, por exemplo, nunca é uma homenagem prestada à mediocridade, à estupidez ou à ignorância. O médico tinha o dever de empenhar a vida nos cuidados ao pestífero mais ordinário. Servia Deus. Nem se amesquinhava pela noite insone passada à cabeceira de um ladrão. A minha civilização, herdeira de Deus, assim tornou a caridade num dom ao homem através do indivíduo. No fundo, o que se pretende afirmar é que cada um de nós, sendo indivíduo, deve ser preservado do individualismo, precisamente para não ser destruído como pessoa humana.
Curiosamente, o papa Francisco - que não sei de terá lido o nosso Saint.-Ex (pois que tal santo não consta do calendário nem do catálogo santoral) - tem vindo a pregar uma cruzada (perdoa-me, Princesa de mim, o antiquado conceito e suas quaisquer consonâncias menos abonatórias, e concordemos em que, tomada sem malícia, é iniciativa louvável num apóstolo) de combate ao individualismo reinante, assim lucidamente vislumbrando a ameaça em que o mesmo se tornou para a saúde mental, cultural e social, e para a democracia idealmente entendida e desejada. Vem o Papa, incansavelmente, lembrando às gentes que não há salvação possível à margem da sorte de tantos indivíduos, que vão sendo esquecidos ou abandonados, São nossos irmãos na humanidade de Deus. Pessoalmente, pensossinto que o mais arrepiante, nesses dramas do ostracismo dos migrantes, ou refugiados sem nada, é os mesmos, ainda por cima, apenas serem sintomas da crescente generalização da desumanidade nas sociedades hodiernas mais abastadas. Como esquecer que o desenvolvimento e difusão de novas tecnologias se vem processando, cada vez mais, pela concentração do poder financeiro seu condutor, e à custa da subjectiva alienação dos utentes em jogos, falsas notícias, postiças ilusões? Ou, talvez pior ainda, pela sua objectiva alienação do discernimento e da liberdade próprios nas garras de poderes políticos que controlam a identidade e a vida de cada indivíduo... Profética, sem dúvida, essa frase de Sint-Ex :
Bastas vezes te escrevi que estas cartas não são, nem tampouco pretendem ser, sermões ou tratados. São fios de uma conversa que vamos pensando e sentindo, em companhia e partilha. O que a seguir te proponho, a partir de curtas citações do Pilote de Guerre, são pistas para reflexões sobre certos aspectos das nossas sociedades hodiernas : igualdade e identidade, liberdade e respeito próprio, fraternidade e diferença.
O enunciado dos valores que sustentam (deveriam sustentar) a própria ideia de democracia - e a respectiva realização social e política - é sobejamente badalado: liberdade, igualdade, fraternidade. Aliás, com várias condicionantes e limitações, tal trilogia já inspirara, muito antes da Revolução Francesa, diferentes utopias, tentativas, ou simples aspirações, de organização social e constituição política. Sou tentado a dizer, Princesa de mim, que o mais recorrente obstáculo à boa realização e progresso de tais projectos terá sido a insistente interferência de certos sentimentos ou preconceitos de superioridade comparativa, de identificações consagradas, de rigorosa estruturação das sociedades pelo ordenamento de classes, com mais propensão ao definitivo gerador de entidade, do que à mobilidade de transições geradoras de inovação e justiça. A universal aspiração da humanidade ao seu próprio autorreconhecimento, em coexistência e convívio fraternos, foi-se todavia mantendo - creio, Princesa, por essa misteriosa força a que já chamei, noutras cartas, a original e compulsiva perseverança do ser no ser. E tal mensagem ontológica foi sendo lembrada pela boa nova evangélica, apesar dos todos muitos desvios e atentados contra ela perpetrados pelas igrejas cristãs (ou por tal conhecidas), sobretudo sempre que mais se deixaram cair nas tentações do clericalismo, do sectarismo, e do fanatismo de um deus sem irmãos.
Para melhor entendimento de alguns problemas ou simples tricas que, hoje em dia, afectam o funcionamento e o próprio desabrochar das nossa democracias, ajudar-nos-á certamente, Princesa de mim, um olhar mais atento sobre o panorama recente da evolução das aspirações sociais, fundamentalmente sobre o que dantes era e depois tem vindo a ser a cultura das suas raízes e da sua flora. Tal exercício assemelha-se quiçá ao dos maiores cultores da ficção literária, às análises que esses escritores fazem de tanto pensarsentir particular, para delas, afinal, ressaltarem o substrato universal. Por outro lado, e aqui entre nós, talvez também nos surpreendamos a sorrir (com alguma malícia?) ao pensar baixinho : "Cá se fazem, cá se pagam!" Mas vamos lá às máximas morais de Antoine de Saint-Exupéry : «Escorregámos - por falta de método eficaz - dessa humanidade que assentava no ser humano, para este formigueiro que assenta na soma dos indivíduos».
É fácil fundar a ordem de uma sociedade sobre a submissão de cada um a regras fixas. É fácil modelar um homem cego que se submeta, sem protestar, a um mestre ou um corão. Mas é completamente diferente e mais elevado conseguir que, para libertar o ser humano, ele saiba reinar sobre si mesmo.
Mas o que é libertar? Se se libertar, num deserto, um homem que nada sofre ou experimenta, que significará a sua liberdade? Só há liberdade para «alguém» que vá a qualquer lado. Libertar aquele homem seria ensinar-lhe a sede e traçar-lhe um caminho que leve a um poço. Só então se lhe proporiam as diligências que já fariam sentido. Libertar uma pedra nada significa se não houver gravidade. Pois que, apenas livre, a pedra não irá a parte alguma.
Ora, a minha civilização procurou fundar as relações humanas sobre o culto do homem para além do indivíduo, a fim de que o comportamento de cada um para consigo mesmo ou para com outrem já não fosse mais conformismo cego aos usos do formigueiro, mas livre exercício do amor...
... Assim claramente compreendo, a esta luz, o significado da liberdade. É a liberdade do crescimento de uma árvore no campo de forças da sua semente. É o clima da ascensão do homem. É semelhante a um vento favorável. Só pela graça do vento são livres os veleiros no mar.
Um homem assim construído disporia dos poderes da árvore. E quanto espaço não cobriria com as sua raízes! Que massa humana não absorveria para a fazer desabrochar ao sol!
[Trechos traduzidos do capítulo XXVI do Pilote de Guerre. As alternâncias entre as traduções do original homme (homem, no sentido global de ser humano) por homem ou humano são sempre arbitrariedades minhas].