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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

Camilo _ Princesa.jpg

 

   Minha Princesa de mim:

 

   O último capítulo, o XXVIII, do Pilote de Guerre não tem mais de duas páginas, em que Saint-Exupéry exprime o seu próprio  cansaço e o dos seus poucos camaradas da esquadrilha de reconhecimento aéreo G2/33, num estilo quase telegráfico, como qualquer fatalidade. Estamos em 1940, a França foi derrotada pelo III Reich. Mas o grupo, na véspera da retirada, mantém-se unido e, sem ter dormido durante três noites seguidas, vê cada um recolher a sua lassidão ao rendido cansaço dos outros :

   Não diremos nada. Asseguraremos a mudança. Só o Lacordaire esperará pela alba para descolar, a fim de cumprir a sua missão. E, caso sobreviva, regressará directamente à nova base.

   Tampouco amanhã diremos algo. Amanhã, para as testemunhas, seremos uns vencidos. E os vencidos devem calar-se. Como as sementes.

   Como as sementes! Haverá maneira mais bonita, mais cristã, de ressuscitar da derrota? A comunhão humana no silêncio de qualquer perda faz com que esta deixe de ser desamparo e solidão, para se tornar solidariedade e esperança !

   O mistério da morte, no cristianismo, leva-nos ao paroxismo do paradoxo humano, do que "está aí" (ou p´raí) e aspira a Ser. E a sua contemplação ensina-nos a via do silêncio, esse calar, cá bem no fundo de nós, o labor restaurador da semente que apodrece para nascer de novo, como o Reino dos Céus.

 

   Oleg Voskoboynikov, medievalista russo formado na Universidade de Lomonossov, onde é professor de paleografia latina, foi também discípulo de Jacques Le Goff e é autor, entre outros livros e inúmeros artigos científicos, do notável Pour les Siècles de Siècles  -  La Civilisation Chrétienne de l´Occident Medieval, obra que a Vendémiaire (Paris) publicou em 2017. Gosto muito, Princesa de mim, de, às vezes, me deixar envolver pela atmosfera espiritual duma Idade Média, europeia e latina, que, neste caso, é percorrida do início do século IV ao início do XIV, do imperador Constantino ao Dante Alighieri. E é aqui apresentada, essa Alta Idade Média, pela ilustração de que, na verdade, longe de ser repúdio ou destruição da cultura clássica, não só greco-romana, como síria e copta, antes foi cadinho da sua assimilação pelo cristianismo. A semente de vida que acima refiro evocou-me, enquanto te escrevia, aquela expressão cristã que fala da humanidade de Deus em Jesus Cristo, que se humilhou até à morte, e morte na cruz  -  a qual, mais ainda do que suplício, é infâmia. Mas da morte infamante, ignominiosa, ficou, para nós também, então vindouros, a imagem daquele crucificado que, em miríades de representações advenientes, se tornou sinal de vitória :  hoc signum vincit. A suprema humilhação surge-nos assim como humildade ressuscitada, isto é, feita nova, força e sustento de vida sobre a morte.

   A dado passo deparo com um trecho da carta XXX de São Paulino de Nola (edição de G. de Hartel, Viena, F. Tempsky, 1894) que o professor Voskoboynikov apresenta assim : A autoridade moral e cultural de Paulino, construtor de igrejas, poeta, escritor, pregador, ultrapassava em muito a sua diocese italiana. É sintomático que ele abdique do direito de aparecer no espaço litúrgico, que os bispos partilhavam com os imperadores. [Estamos ainda em meados do século IV, no início do império romano cristão...] Não se trata de falsa modéstia, mas de uma nova concepção da dignidade humana : ele sabe que foi criado à imagem e semelhança de Deus, mas também se recorda de que, na vida real, «tantum in imagine ambulat homo, tantum frustra turbatur». Eis citado um versículo do salmo 39, que traduzirei assim : «Quanto mais um homem se passear em retrato, tanto mais se alienará em vão». 
   Quando, numa cristandade então já liberta de perseguições e livre de se exprimir, os fiéis entre si debatiam a razão, o alcance e configuração, e o próprio culto das imagens religiosas, tal questão punha-se também para o retrato-exemplo dos pastores eleitos pelas suas igrejas ou comunidades ; erguiam-se vozes, não tanto contra a aproximação do divino pela representação memorizável, como pela reserva, ou prudência, relativamente aos riscos de alienação que o imaginário necessariamente implica. Preocupação que, hoje, tem a maior actualidade e nós, espantados, esquecemos. A tal ponto que nem nos apercebemos de que vamos deslizando do que já alguém chamara "civilização da imagem" para uma circunstância de carrossel caleidoscópico próxima da barbárie. Diariamente sobre nós chovem imagens e coscuvilhices que, em vez de nos ajudarem a reflectir sobre a realidade do nosso mundo e da nossa vida, nos atiram para um baile de máscaras ilusórias e alienadoras... E até talvez possamos dizer que, se a iconoclastia foi, muitas vezes, uma fobia idolátrica (mais do que receio pelo divino), a "imagofilia" hodierna, em seu omnipresente exagero, é sinal certo de propensão a nova idolatria...

   Volto então ao "nosso" S. Paulino de Nola, nobre romano nascido em Bordéus, que chegou a ser cônsul e prefeito de Roma, se converteu ao cristianismo com sua mulher, após o que distribuíram os seus bens pelos mais necessitados e se ocuparam do próximo, desse tal que adquirira, em cada pessoa, o rosto de Cristo Jesus.  Foi Paulino eleito bispo de Nola, em Itália. Conta-nos o livro do professor russo : Cerca do ano 400, um autêntico Romano e bispo culto, Sulpício Severo, pediu ao seu amigo Paulino, bispo de Nola, na Campânia, ele também Romano autêntico e futuro santo, que lhe enviasse para a Gália, o seu retrato. Queria pô-lo, a título de amizade e de respeito pelas suas virtudes, ao lado de uma imagem de São Martinho, no novo baptistério de Primiliacum (provavelmente a Primilhac de hoje). Comovido, Paulino respondeu-lhe assim:

   Suplico-te, por tudo o que de melhor há na nossa amizade, porque havemos de pedir provas da nossa amizade em formas vãs? De mim, de que homem queres tu a imagem? Celeste ou terrestre? Sei que queres essa imagem real, em ti amada pelo Rei Celeste. Não deves precisar de outra imagem nossa, além dessa pela qual foste tu mesmo criado.  ... Mas eu sou pobre e fraco, humilhado pela minha imagem rude e terrestre, pelos meus sentimentos carnais e as minhas obras na Terra. Pareço-me mais com o primeiro Adão do que com o segundo. Como posso então ter a ousadia de me fazer pintar, esmagando a meus pés a imagem celeste com os meus delitos terrestres? Terei sempre vergonha : fazer-me representar tal qual é vergonhoso, fazer-me representar tal como na realidade não sou é uma insolência.

   Concordemos ou não com elas, reconheçamos que se diziam lindamente, em latim, e há quase dois mil anos atrás, coisas que, hoje ainda, nos podem ajudar a pensarsentir-nos mais e melhor do que todas essas celebrantes imagens da vaidade nossa contemporânea...

   Ao escrever-te isto, Princesa de mim, revejo  -  para meu equilíbrio interior, pois é neste hoje que vivo agora  -  tantas imagens de seres humanos que vamos ignorando, abandonando, matando, e ainda assim nos fazem esse nosso imerecido dom de si próprios, que é, afinal, esse, também nosso, rosto de dor. A presente imagem da humanidade que padece e sofre vem lembrar-nos de que precisamos dum silêncio que seja semente. Comovido, sinto a presença misteriosa do meu irmão Gaëtan, que, em tantos muitos retratos que desenhou, sempre se concentrou numa qualquer, mas mais uma, interpelação da condição humana.

 

                      Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira