CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM
Minha Princesa de mim:
Fizeste-me pensarsentir, por atenta observação, aliás já antes feita pela nossa amiga Maria Otília Medina, de como me suspeitas de, através da escrita, fugir ao real... Será assim? De certo modo, todos temos uma costela de fugitivo (ou, mais insolente e certa, de fugidio) na peregrinação das nossas vidas. Estas, na verdade, bastas vezes parecem esbracejar entre forças centrípetas e centrífugas e, na aflição, nem sempre sabemos onde temos os olhos postos. Olhamos para o centro, presumindo que esteja lá a substância que a fé procura; tenta-nos a periferia em cujos horizontes julgamos estar a aventura que talvez desejemos. Afinal, quiçá seja a luta de Jacó com o Anjo a melhor resumir a condição humana, pois nunca conhecemos bem a nossa fortaleza nem as forças com que deverá medir-se. Quanto a fugir do ou ao real, tanto poderá ser em corrida para o centro como a caminho da periferia. Vamos, então, partir em busca do real, sem que, à partida, saibamos o que ele ontologicamente é?
O real do meu quotidiano - tal como, mesmo sem o conheceres pelo sentimento da experiência, poderás imaginá-lo - é simples e chão, como o de um monge. Encarrego-me de quase todas as tarefas domésticas (compras, cozinha, mesa, louça, roupa, medicação), com excepção das grandes limpezas caseiras que empregadas de fora fazem ; leio, escuto música, escrevo e, sobretudo, calo-me. O silêncio é como a criação : começa do nada para se tornar vida, é oração, meditação, reflexão, pensarsentir-me, a mim, aos outros, ao mundo, ao cosmos, na origem. [E, dado que sou uma espécie de maníaco etimologista, recordo a raiz, o significado inicial, das palavras cosmos e mundo: a primeira, em grego, diz belo ; a segunda, latina, diz limpo, puro]. Assim olhada, a realidade do universo e da terra, é amável e desejável no seu próprio ser, quer na sua criação, quer no seu apocalipse ou revelação final. Neste sentido, procurar descobrir e amar a pura beleza da essência de tudo, não é fugir ao real, antes é abrir uma rota até ao centro dele. Assim também creio que a minha estranha (?) forma de vida tem uma motivação íntima, curiosamente mais inspirada do que virtuosa ou simplesmente deontológica : ver alguém feliz pelo conforto que eu possa trazer à sua circunstância. A degenerescência de certas faculdades - tais como o poder de concentração, o exercício da memória, o tempo e certeza dos reflexos - afecta as vidas de muita gente, designadamente daquela a que a idade vai limitando as capacidades de correcção e recuperação. Desse progressivo mas irreversível "divórcio" do mundo que a rodeia, da sua própria circunstância, pode resultar um estado de alma depressivo, angustiado por um sentimento crescente de solidão, angústia essa agravada pelo seu próprio receio. Este mal sem cura poderá, todavia, ter outra realidade, essa que nasce duma nova experiência de liberdade e segurança, de confiança em si através de quem lhe for próximo... Chama-se a tal "benfeitoria" : Alegria de Viver. Aqui no campo, em vida muito isolada, aparentemente, pela diminuição dos contactos expressos, múltiplos e próximos, com tantos amigos, e com a própria periferia do "meu" mundo, sou eu feliz também, porque todos os dias sou presenteado com a despreocupada alegria de alguém ao meu lado, que se sente em casa como quando era menina e moça, sem sequer precisar de saber as horas do dia pelo relógio que já não usa, porque lhe basta perguntar a quem responde. A morte é só o incomunicável ; a vida é a livre respiração da reunião.
Tampouco será despiciendo o tempo que em raros dias consagro a conversar (pelo telefone, ou em almoços com amigos que me vêm visitar a este retiro donde me é, fisicamente, difícil sair) e a ler jornais e ver um pouco de televisão. Ainda que com reservas e cuidados que me vão balizando as extensões das notícias, declarações várias e comentários que desse modo me chegam, não fico alheio ao que se vai passando nessa periferia. Mas evito, propositadamente, intrometer-me ou, menos ainda, intervir em debates que, logo à nascença, são provocados e conduzidos por "estratégias" (não é assim que dizem?) de concorrência, competitividade e afrontamento, mais assentes em proclamações de atitudes ou "valores" que possam agradar e cativar eleitorados e admirações, do que na serena, estudada e séria análise das raízes, circunstâncias e condicionantes das situações e problemas que, tratando-os comunitariamente, deveríamos resolver. Lembra-te, Princesa de mim, de questões como os incêndios, a Amazónia, os migrantes, as greves de transportes vários, professores, médicos e enfermeiros... Todas essas questões são equacionáveis e atendíveis, comunitariamente, independentemente de desejos ou pretensões a dar, seja a quem for, razão ou ganho. Quando as nossas sociedades políticas deixarem de se focar, quase exclusivamente, em concursos a votos mais facciosos do que racionais, talvez tal seja possível. Mas por enquanto, e por defeito nosso, o espaço público do debate analítico e construtivo tem sido ocupado pela paródia declamatória de inúmeros cultores do fulanismo. O culto ou o ostracismo de fulano ou beltrano ecoa por toda a nossa volta, chegando a ser asfixiante, como no caso do nevoeiro da crónica futebolística que, insistentemente, mais do que apenas perturbar alguns, vicia o juízo de muitos e sugere-lhes, ou mesmo ensina, comportamentos radicalmente facciosos e mercenários.
Entretanto, sabes bem que não comento nem gracejo - fora do círculo das conversas hílares (Deo gratias!) entre amigos - "selfies" políticos de Trump et alia... Et pour cause... Tais personagens de comédias da cena política que todos os dias nos é apresentada na ribalta dos media, não são certamente líderes (como também se diz), nem sequer actores, mas apenas máscaras das massas eleitorais manipuladas pelos poderes disfarçados que pretendem governar-nos. Costumo dizer, Princesa de mim, como tão bem sabes, que não há Trump que me preocupe ou assuste. Assusta-me, sim, que seja possível concentrar tanto poder em mãos de um só. E preocupa-me, muito, que a razia crescente da nossa cultura humanista e a progressiva eliminação do espírito crítico, apanágio do humano, resulte no surto de multidões que votem para eleger tais espelhos da sua ignorância e insensatez. Por isso mesmo me pensossinto no dever de ir dizendo e escrevendo, noutro registo, talvez uma escapadela a tal espectáculo, coisas que a maioria não gostará de ler e não lerá, mas que são um modo meu de não fugir ao real, mesmo tentando remar para um quiçá inalcançável centro (?).
Por outro lado de mim, não resisto a rir-me de tanta comédia, mesmo sabendo que é privilégio de "rico" (salvo seja eu de tal apanágio!) Só que os tais ricos, os consagrados, os grandes, os importantes deste circo e sua assistência, assim como aqueles que lhes vão aparando o jogo, não se riem - nem sequer deles próprios - mas tomam muito a sério, até pela mesquinhez dos seus interesses, aquilo que os poderá enfim levar à tal fotografia que lhes trará um voto. Curiosamente, eis aqui uma área em que até estaremos a regredir em liberdades, não sei se por excessiva consideração das susceptibilidades das nossas vedetas : repara, Princesa de mim, nas críticas crescentes e descarada censura que se tem feito à arte da caricatura. Aproveita, vai deitar o olho a "bonecos" do século XIX, e nota bem com quanta maior liberdade se gozava então o pagode.
Parece-me, portanto, claro que nem sequer essa minha propensão a "gozar com a política" - como gosta de lembrar um grande amigo, dos tais que me telefona sempre que se sente preocupado ou indisposto, para que eu o faça rir - possa considerar-se uma fuga ao real. Afinal a realidade é o que for, sempre difícil de ser acomodada aos gostos e desiderata de cada um. Reconhecendo isto, reconheço também que o meu divertimento é modo de fugir, sim, a qualquer ansiedade, receio ou preocupação que não comando. No fundo, e por muito estranho que possa parecer, pensossinto que o estado do mundo resulta do lugar que nele conseguir ocupar a cultura do espírito e seus atributos. Por isso mesmo vou procurando, na minha pequenez e com a insignificância das minhas capacidades, partilhar - com todos os que me lêem e escutam - caminhos de liberdade do espírito que nos conduzam dos epifenómenos periféricos ao centro inicial das coisas, ou, talvez ainda, a Quem é tudo em todos.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira