A PROCURA
O elmo, as luvas de ferro, a armadura completa que vestia o cavaleiro, era como uma única e selada peça que há muito o separava do mundo que enfim procurava, e, porventura, daquilo que nele procurava, defendendo-se deste modo do Mal que a descoberta envolveria, inclusive, quando adormecendo na praia, a espada, despida e deitada ao seu lado, era fortemente agarrada pela sua mão como um surdo aço em contacto atento.
Helgi, o cavaleiro, tinha o seu nome gravado na viseira do elmo, na vontade de se entender por sinais escritos face a eventuais chamamentos do além, cuja linguagem não decifrasse. Tinha Helgi a perfeita consciência que o seu cansaço na longuíssima procura, fizera-o ir e deixando a sua juventude expunha agora as olheiras de uma idade não dita, mas expressa pela pele e sobretudo pelo modo de olhar a indagação.
Faço questão em reafirmar o quanto creio que o modo de olhar a pergunta nos expõe a idade, o quanto os sinais têm consistência e peso e luto, o quanto os refúgios absolutos são anteparos das angústias onde se existe na procura. A vida? Um dardo? Um fecho éclair que se nega? Um sentimento? Uma biblioteca.
Assim, inicio o dia, mais uma vez tentando transmitir a minha interpretação deste genial conto de António Vieira relendo «A Procura», publicado no livro Dissonâncias pela &etc.
Helgi tinha tido em tempos um escudeiro de nome Gylfi ficara ele, um dia, por um castelo, ou a violência da vã esperança não o tivesse seduzido na sua necessidade, na sua gregaridade. Helgi prosseguiu sozinho a procura, sem que esse facto lhe adviesse de coragem, antes, dizer que talvez, de há muito, só lhe interessavam as perguntas fundamentais, logo, a decisão do escudeiro não lhe disputara nenhuma atenção. Contudo, julgo entender que o cavaleiro sentia que o seu cavalo lhe transmitia, a razão da sua errância, pois o trote de Kirjat era tão livre e tão cúmplice dos interditos que Helgi, a ao seu cavalo, reconhecia que indicações díspares não lhe sucederiam; era um ser superior da natureza: incapturável.
E a procura continuava e expunha-se também pelo pasmo frontal de encontrar um licorne dos mares jazendo morto na praia onde Helgi adormecera. Veja-se que era um licorne dos mares, criatura dos bosques segundo os códices, e ali à boca do oceano morto, em plena metamorfose de monstruosidade. Haveria que decifrar esta razão. Esta razão e outras, como a da belíssima mulher lhe surgir neste momento e ser seu nome Sigrun, e falar ela outra língua, e o silêncio os levar a compreender a espessura dos gestos e dos olhares e dos caminhos e eis a ilha, eis que antes ou depois dela, quis o cavaleiro interpelar Deus, mas ao desamparar-se Dele interrogando-se das razões, diminuíram as próprias razões da procura que em nome de Deus intentara.
Helgi e Sigrun amaram-se numa gruta.
Diria que desta feita, ao reler este conto, acreditei ter sentido já que um olhar profundo de desejo retirava ao ser cobiçado algo que não o deixaria igual, como refere o genial autor deste livro. Creio mesmo ser através deste mistério que nos doamos quando nos entregamos a alguém.
E eis que o cavaleiro foi o primeiro a sentir o fortíssimo ranger das rochas da gruta ao apertarem-se no seu intento inamovível de se fecharem, e, agarrou o Graal tendo tido ainda tempo de ver que lá dentro, lá estavam os tempos dos primórdios, e nada do fulgor da alma. O futuro? Sim, também estava lá, apocalíptico.
Helgi olhou para a sua companheira que escutava o tremor das pedras que os emparedariam vivos. Mostrou-lhe a sua adaga.
Estavam nus na eternidade de um momento de graça e apaziguamento depois do amor.
Kirjat corria livre pelos prados da ilha.
Teresa Bracinha Vieira