CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM
Minha Princesa de mim:
Herdeira de ti mesma, recuperas forças ali onde
nos espera a morte. Das cinzas da fogueira te é dado
teu nascimento. Morre a velhice, mas tu nunca partes,
tu que viste tudo o que passou, testemunhas os séculos,
e sabes quando escorreram dos rochedos imóveis as ondas
tempestuosas que tudo inundaram e quando o fogo
desencadeado destruiu os desatinos de Faetonte,
escapaste a esse flagelo, foste a única intacta
sobre a Terra domada. E nem as Parcas têm direito
de te fiar em suas rocas.
Estes versos foram escritos em latim por um dos maiores poetas da Antiguidade Clássica, Claudius Claudianus. Glorificam a fénix, essa ave mitológica, cuja lenda nos conta que é única e põe um ovo na fogueira, arde... e das cinzas renasce no seu próprio pinto! Disse Santo Agostinho que tal poema não era aplicável a Cristo Ressuscitado, pois constava que o seu autor fosse anti cristão. Todavia, cem anos antes, já o bom cristão Lactâncio escrevera, por volta do ano 300, o seu Phoenix (Fénix), e a mítica ave foi servindo de símbolo e ilustração da glória da Ressurreição do Senhor. Parece-me que é importante observar como, paradoxalmente (?), a recuperação de imaginário pagão pela iconografia e literatura cristãs, não só não é sinal de idolatria, antes será, pelo contrário, realização de uma potestas - no sentido de poder e domínio de tal imaginário pela fé cristã. Como se todos os deuses antigos, seus mitos e lendas, fossem anúncios do Deus Único, desse Quem então ignorado, que São Paulo anunciou em Atenas, apontando o pedestal vazio, reservado para o Desconhecido: "Pois é desse Deus desconhecido que vos venho falar!" [O agnóstico e Régis Debray, no seu Dieu, un Itinéraire, procura traçar esse percurso de uma revelação progressiva, quiçá multifacetada, de Deus na história da humanidade...]
Acontece que, quando um imaginário coletivo adota um símbolo, não se compromete a mantê-lo sempre no mesmo desenho, mas vai variando os seus contornos e as lendas que conta à sua volta. A título de exemplo, Princesa de mim, traduzo-te a entrada Phoenix do Handbook of Symbols in Christian Art de Gertrude Grace Sill (Macmillan, New York, 1975): A fénix é uma ave mítica de grande beleza, semelhante à águia, mas com cabeça de faisão. Podia viver mais de quinhentos anos. Quando começou a sentir-se velha, ergueu a sua própria pira de aromáticos galhos ao sol meridiano, acendendo-a com o abano de suas asas. Um pequeno verme foi deixado entre as cinzas, e em três dias se tornou em nova fénix. E tornou-se a fénix em símbolo popular da Ressurreição de Cristo, triunfo da vida sobre a morte.
O trecho de poema que acima traduzi talvez deva ser lido como se olha para um mistério, sobretudo por ilustrar a eternidade da Fénix evocando o seu poder de ressurgimento (ou sua "resiliência", para fazermos uso desse conceito da física dos materiais hoje tanto em voga no discurso político...) recorrendo à tragédia mítica de Faetonte ou Fáeton que, na sua versão homérica, é filho da oceânide Clímene e do deus Hélio (Sol), também assimilado a Apolo. Este jovem trágico é geralmente representado, seja a pedir a seu pai autorização para conduzir o seu carro solar, seja, o mais das vezes, a precipitar-se em queda mortal, atingidos, carro, cavalos e condutor, pelos raios fulminantes que Zeus sobre eles dispara. São, já percebeste, Princesa de mim, relâmpagos que os queimam. Na pintura europeia da Renascença e do Barroco é certamente esta versão a mais praticada, prestando-se, aliás, à decoração de tetos: olhamos para cima e vemos cair sobre nós o carro ardente do castigo divino.
Será essa a representação mais impressionante? Talvez, indubitavelmente, quando a pensamos e sentimos, com receio, como presságio. Na moral da história mítica original (?), o jovem Fáeton desatina mais por inexperiência e verdura de idade, do que por desafio ou soberba: ao guiar o seu fáeton de fogo (quando, no século XIX, foram surgindo, nos parques e lugares de passeio, mais carrinhos daqueles, descapotáveis e leves, deram-lhes o nome mítico, mas sem o fogo...) o rapaz não o aguentava bem no itinerário que Hélios lhe havia fixado e, desatinado, ia espalhando um fogo olímpico (mas não inofensivo), que ameaçava destruir as próprias estrelas e a Terra inteira. Assim, mais por cautela e profilaxia, do que por inveja ou punição, Zeus, pai dos deuses, achou benéfico fulminá-lo. Clímene, mãe do infeliz, e as irmãs dele, quando lhe foram chorar a morte. junto à sepultura, foram transformadas em choupos. Terá sido esta a origem do Choupal lírico, saudoso e lacrimejante, do Mondego coimbrão? Não te sei responder, Princesa de mim. Mas posso recordar uns versos de Luís Vaz de Camões (na Elegia X):
Se acaso a caída e má ventura
de Fáeton te lembra, cuja morte
te deu sempre jamais tanta tristura,
o não teres tu culpa te conforte,
que o moço, de soberbo, não podia
cair em menos miserável sorte.
Mas vós, castas Irmãs, que, noite e dia,
cantais em versos élegos o choro,
com o cândido Cisne em companhia,
unidas todas, a-vicenda, em coro,
um padre consolai tão descontente,
em módulo cantar doce e canoro.
Esta elegia, também conhecida por Elegia de Sexta Feira de Endoenças, começa por uma dedicatória do Poeta, reveladora da "cristianização" de imagens e símbolos clássicos na cultura da Renascença. Repara bem, Princesa:
A ti, Senhor, a quem as sacras Musas
nutrem e cibam de poção divina,
não as da fonte Délia Cabalina,
que são Medeias, Circes e Medusas,
mas aquelas em cujo peito, infusas,
as leis estão que a Lei da Graça ensina,
beninas no amor e na doutrina,
e não soberbas, cegas e confusas;
este pequeno parto, produzido
de meu saber e fraco entendimento,
uma vontade grande te oferece.
Se for de ti notado de atrevido,
daqui peço perdão do atrevimento,
o qual esta vontade te merece.
Tenho aqui uma reprodução de A Queda de Fáeton (1703-4), de Sebastiano Ricci, que está no Museu Cívico de Belluno. A fúria fulminadora de Zeus-Júpiter, precipitando Fáeton no abismo aberto, lembra-me, não sei porquê (hoje só imagino o que te escrevo), a criação do homem, representada por Miguel Ângelo na Capela Sistina. Talvez por ser o castigo mortal precisamente uma negação da criação que tira do nada a vida. Mas também me aparecem outras visões gémeas (?) do carro solar de Hélios-Sol-Apolo, que o desditoso Fáeton quis conduzir, ou aprender a guiar... A primeira é a do carro, puxado por cavalos de fogo, que arrebata ao céu o profeta Elias: Então como fogo se levantou o profeta Elias, a sua palavra ardia como facho (Si.,48,1). A palavra de Deus é como fogo, como nos recordam vários passos da profecia de Jeremias: Farei com as minhas palavras uma fogueira na tua boca, e deste povo a madeira que esse fogo devorará (Jer, 5,14)... Não é a minha palavra como o fogo? (Jr, 23, 29). E ainda, aquele passo do profeta Isaías (Is., 66, 15-16): Eis que o Senhor chega envolto em fogo, e os seus carros são como um furacão que lhe acalma a cólera pelo incêndio, e a ameaça por chamas de fogo. Pois que, pelo fogo, o Senhor se faz juiz...
A presença do fogo de Deus parece ser absoluta e em si contraditória. Tal como o amor é fogo que arde sem se ver, o fogo de Deus tudo consome, sem todavia ser apenas destruidor, pois que também dizemos que purifica, limpa, tal como o sangue do Cordeiro lava. Não é só castigo, nem vindicta, antes será promessa de restauração, Ressurreição e vitória sobre a Morte. Ressurgindo das próprias cinzas, a fabulosa Fénix é, assim, símbolo de Cristo. E este Jesus, fogo e Sol, não só purifica, mas como Hélios e Apolo em seu percurso, é pancrator, governa tudo, o Tempo e sua cronologia, a Vida que desperta. No nosso imaginário se misturam todos esses símbolos, plásticos ou literários, com os seus nomes vários e as realidades e sonhos que representam; são marcos e sinais no nosso caminho para a visão real do fim de tudo o que alcançamos, quando sobre nós cair o pano, qual véu apocalíptico que deixa de esconder mistérios e os revela.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira