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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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LITERATURA E PENSAMENTO - CICLO 2084 IMAGINE

 

Conversas com Graça Castanheira

 

De referir a gratidão que senti a cada conversa neste Ciclo 2084 Imagine: chamei-lhe momentos de flecha de tempo original.

 

Em rigor, a sucessão reflexiva e os pensamentos nela contidos e expressos neste ciclo, criaram uma ponte imensa de esperança apta a conduzir a uma outra nomeação do acreditar, quando sabemos que o acreditar tem sido mero fragmento de rotina de pouca verdade nos dias que correm.

 

Estive atenta e entusiasmada aos pressentimentos que despertaram em mim ao longo deste Ciclo 2084 Imagine acutilantemente conduzido por

Graça Castanheira.

 

A divisão e a organização deste conjunto de conversas criaram uma totalidade compacta de relações e afinidades na área do Conhecer e do Saber que propiciaram uma infinidade temática, alertando-nos a reiniciar o infinito e nele o início/indício fundamental.

 

Impossível não conectar estas conversas com O Tempo e o Modo conduzido igualmente pela realizadora e argumentista Graça Castanheira, naquela serie de entrevistas sobre o futuro, e nele também a importância do tema do estado.

 

Pareceu-me encontrar nestas entrevistas/conversas do Ciclo 2084 Imagine uma ideia de fúria, uma ideia de fúria com a proximidade exponencial de cada tema a uma distância quase irrecuperável se o perdêssemos.

 

De um lado o declive das inquietações quando existem, do outro aquilo que excede o esclarecimento da hipotética abstração: aqui o risco da densidade é claramente uma proposta.

 

A tradução das ideias nelas mesmas, tornaram-nas possíveis como futuro e como presente, afinal reaparecendo ao nosso caminho e desafiando-o a que saibamos que as ideias que temos, podem ser suficientes à mudança, mas não aquelas que nesta espera de um compacto melhor surjam propício à nossa adesão. E o compacto a que se deseja aderir não é uma suspeita, infelizmente, é uma realidade. O desejo de levar as ideias até esse compacto é igualmente uma realidade. O tríptico há-de chegar a votos! Volta-se à circunvolução no movimento parado a que assistimos em hora de prime time.

 

E eis que surgem “ciclos 2084 imagine” com a capacidade de uma escola solitária aberta ao mundo.

 

Aqui a infidelidade da sabedoria é o saber permanecer fiel, em todas as circunstâncias, ao saber da arte no estar seguro dos entendimentos e assim os erros positivos têm segura cura.

 

Afinal o robot deixa-se desnortear com facilidade pois não conhece o esforço estranho para que isso não aconteça, ainda que o robot nos possa ajudar para aquilo que o programemos.

 

Atentemos sempre que as ideias não podem ser fracas em virtude de objetos superiores. Os Gregos, creio, deixaram-nos o sentido mais próprio do que não vale para o cidadão se o sentido for o de lhe atribuir um vale imitativo ou usurpatório de uma época ilesa de gente.

 

O cérebro pousa aquém e além das asas que lhe tocaram e irrompe incontido aos meandros dos nossos olhos, num lance, quando tudo está um jogo.

 

O afeto conduz também ao porquê do ter visto. A Noite pode insinuar o Jogo, mas o primordial revela-se e ascende se por ele soubermos e quisermos que se desvende a surpresa do Eu, e dele em nós num mundo com sim.

 

Teresa Bracinha Vieira

TRÊS GRANDES FERIDAS DO NOSSO TEMPO

 

1. Todas as épocas têm as suas características, as suas vantagens e os seus perigos e ameaças. O nosso tempo sofre de três grandes feridas que nos levam à inquietação e à incerteza, contribuindo para a solidão, não a solidão habitada, necessária para estar consigo e com os outros na profundidade, mas a solidão do abandono.

 

2. Essas feridas são, como explica José María Rodríguez Olaizola num belo livro, Bailar con la soledad, a que já aqui me referi e no qual me inspiro: a do amor, a da morte, a da fé.

 

2.1. A ferida do amor.

Hoje, vivemos num mundo no qual o amor na sua permanência se tornou efémero e inseguro. Quem diz hoje, de modo seguro: amor “para sempre”? Quando se olha para as estatísticas, não é antes o “enquanto durar” que está em vigor? Aconselhava-me há dias alguém, por ocasião da celebração dos 50 anos de casamento de uns amigos meus, a que presidi: por este andar, comece a celebrar os 10 anos, os 20 anos de casados das pessoas, porque isto das bodas de prata e de ouro, aos 25 e 50 anos, é cada vez mais raro e a acabar... Como é sabido, Portugal está na frente quanto à percentagem de divórcios (há um divórcio por hora em Portugal) e em Espanha os casamentos duram em média 16 anos...

 

Razões? Certamente, o aumento da esperança de vida é uma delas: o que antes eram 20 ou 30 anos de casamento agora poderão ser 50. Assim, porque não desfrutar de dois ou três casamentos mais? Por outro lado, numa cultura do descartável, da fuga ao sacrifico e à renúncia e do culto da superficialidade, o que fica é também a incapacidade do compromisso definitivo. Como escrevia uma jovem: “Queremos comprometer-nos um pouco, mas não cem por cento.” E o sociólogo Zygmunt Bauman, referindo-se ao “amor líquido”: Se estamos continuamente a deitar fora automóveis, computadores, telemóveis ainda em perfeito estado, para os trocarmos por novas versões melhoradas, “haverá porventura uma razão para que as relações de casal sejam uma excepção à regra?” Está aí o paradoxo, ouvi eu pessoalmente Bauman a dizer: Por um lado, na presente instabilidade, deseja-se profundamente um amor estável para toda a vida, mas isso é incompatível com a disponibilidade para a abertura a novas oportunidades que apareçam...

 

A pergunta é se as pessoas são mais felizes. O Papa Francisco, em A Alegria do Amor, fala de várias feridas do amor: o amor egoísta; a falta de tempo para o encontro, para o diálogo, para a escuta; a paternidade/maternidade egoísta ou negada; as expectativas demasiado altas, irrealistas e, consequentemente, defraudadas... O que daí se segue, citando o Sínodo sobre a Família: “Uma das maiores pobrezas da acultura actual é a solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade das relações.” Vale a pena bater-se por uma família estável, pois é esteio para uma vida feliz e é o melhor lugar para ter filhos e educá-los. A desestruturação da família é um dos perigos maiores para o nosso mundo.

 

2.2. A ferida da morte.

Muitas vezes tenho aqui sublinhado que uma característica essencial da nossa sociedade é a morte enquanto tabu. Disso não se fala. Não é de bom tom. Como aceitar falar da morte numa sociedade na qual o que se valoriza é o ter, o sucesso? Este é o paradoxo: por um lado, nada mais certo do que a morte; por outro, a sua ocultação. E aqui reside a pobreza da nossa sociedade: na obturação das perguntas essenciais e da verdade da vida, na tentação do auto-engano, perde-se a perspectiva da existência autêntica. Para ser o que é, vivendo na superficialidade, na corrupção, na vaidade oca e vazia, no esquecimento do essencial e do que verdadeiramente vale, esta sociedade tem de ignorar o pensamento da morte. De facto, confrontados com a morte, repentinamente tudo muda, as decisões são outras, porque aquilo que parecia decisivo aparece então a outra luz: banal e prescindível.

 

M. Rodríguez Olaizola refere uma experiência muito significativa. Pelo Natal de 2015, um conjunto de organizações quis fazer um estudo sobre percepções, prioridades e valores dos jovens madrilenos. Para isso, juntaram um grupo e foram perguntando, um a um, que prendas pensavam dar nesse Natal a uma pessoa muito significativa (na maioria dos casos, tinham indicado os pais). As respostas eram alegres, vulgares, mais ou menos originais. Mas, depois, seguia-se uma nova pergunta: E se soubesses que estas são as últimas prendas que vais oferecer, pois essa pessoa vai morrer, este é o último Natal que vais passar com ela? Aí, de repente, os rostos contraíam-se, o silêncio era todo, as palavras arrastavam-se, e as respostas surgiam cheias de profundidade, cuidado, emoção, intensidade. E a perspectiva do fim dava outra orientação às prendas, havia outra profundidade. Nesse cenário, as prendas estavam “carregadas de sentido, significado e ternura”. A consciência da morte dá outra sabedoria ao viver.

 

2.3. A ferida da fé.

Durante séculos, viveu-se no Ocidente numa sociedade crente. A fé era o que poderíamos dizer uma evidência social, de tal modo que o difícil era ser não crente, pois os não crentes eram estigmatizados e até perseguidos. Claro que havia o perigo de uma fé imposta, mas a cosmovisão comum era religiosa e, portanto, era mais fácil ser crente, aceitar a fé e praticá-la: as pessoas acreditavam, rezavam, celebravam naturalmente em conjunto.

 

Hoje, as coisas são diferentes, muito diferentes. A liberdade religiosa é — e ainda bem — um valor inquestionado. A fé e a religião estão submetidas à crítica, por vezes ácida, por parte da filosofia, da ciência e da opinião pública, também no contexto de um laicismo agressivo. As estatísticas mostram que a religião está em queda acentuada. Os valores são cada vez mais os da autonomia, do individualismo, do hedonismo, e talvez nunca como hoje se tenha afirmado tanto o valor desta vida terrena em contraposição com a vida eterna, desvalorizada. 

 

Como escrevia recentemente José Antonio Pagola, “depois de séculos de ‘imperialismo cristão’, os discípulos de Jesus têm de aprender a viver em minoria.” E o mais difícil é que, neste contexto, a própria fé pessoal dos crentes está submetida à ameaça de erosão. Porque é mais confrontada com dúvidas que podem ou querem apresentar-se com carácter científico: como acreditar na vida eterna, se a ciência não precisa do espírito para explicar o Homem?; onde está Deus, se o mundo se auto-explica?

 

Mais dramáticos serão os dilemas, as encruzilhadas e as perguntas que concretamente o mistério de um Deus silencioso coloca. Porque é que existe o mal? Perante o sofrimento cruel, a eterna pergunta: Porque é que Deus não intervém? Que amor é o seu, se é infinitamente bom e poderoso e nem sequer parece sensível ao sofrimento dos inocentes? A fé é hoje um combate mais duro, e, escreve J. M. Rodríguez Olaizola, “o crente tem que aprender a manter a sua fé um pouco contra a corrente. A eterna dúvida ou o abismo perante o silêncio de Deus é hoje um desafio enorme para os crentes, que vêem que outros parecem viver de modo estupendo sem necessidade de referir-se a nenhuma religião nem a nenhuma divindade.” Porque é que Deus não se manifesta de modo claro, parecendo, pelo contrário, por vezes, que nos abandona?

 

A situação não é cómoda, é muito mais exigente. Mas será preciso ver e aproveitar as suas vantagens, para despertar uma fé tantas vezes infantilizada e acomodada, inerte, numa Igreja que, aprisionada por um sistema clerical, corre o risco se tornar cada vez mais um museu de antiguidades. Caminharemos cada vez mais para uma Igreja de voluntários, na qual a fé convive com um combate  pessoal, numa entrega única e confiada ao mistério do Deus silencioso e salvador. Com razões e todas as consequências na vida, seguindo o exemplo de Jesus e rezando aquelas palavras do Evangelho: “Senhor, eu creio, aumenta a minha fé”. Neste processo, o crente autêntico concluirá e até talvez possa mostrar a outros que a fé é mais razoável do que não acreditar. E poderá ainda  aperceber-se de que Deus não é uma necessidade, mas “um luxo”, como me disse uma vez o grande teólogo Edward Schillebeeckx. Como uma rosa que se dá, sem porquê. Gratuitamente.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 27 OUT 2019

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

JOSÉ BENTO (1932-2019)

 

O Centro Nacional de Cultura homenageia o grande tradutor e poeta e envia sentidas condolências à família.

 

José Bento foi um grande tradutor de poesia e um grande poeta. Não é possível traduzir poesia com a qualidade com que o fazia sem se ter o dom da medida certa na palavra e no ritmo. Ao lado de Pedro Tamen, António Osório e Ruy Belo, seus companheiros de geração, é uma referência da poesia portuguesa contemporânea. Deixou-nos há poucos dias e devemos lembrá-lo. Colaborou em revistas como “Árvore”, “Cassiopeia” e “Cadernos do Meio-Dia”. Trabalhou na redação de “O Tempo e o Modo”, e por isso foi muito cá de casa…, do mesmo modo que colaborou ativamente na revista da Gulbenkian “Colóquio-Letras”. É impressionante a lista das obras que traduziu: começou por “Platero e Eu” de Juan Ramón Jiménez – e apaixonou-se pelas línguas ibéricas. Organizou antologias de Pablo Neruda e Vicente Aleixandre para a Inova e cultivou uma genuína ligação entre os idiomas e as culturas peninsular. A memória do hispanista leva-nos a compreender melhor a complementaridade ibérica. Ouvimos Jorge Marique, através de José Bento e sentimos o impulso intenso de Frei Luís de Léon; Garcilaso de la Vega, S. João da Cruz, Santa Teresa de Ávila, Francisco de Quevedo, Rafael Alberti. Leia-se a monumental “Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea” (1985) – que marca o contributo decisivo do nosso grande autor. Está lá tudo de essencial. Além da poesia, José Bento é um grande tradutor da prosa – como no caso de “D. Quixote de la Mancha”, mas também de Javier Marías, Miguel de Unamuno, Ortega y Gasset, Maria Zambrano e Jorge Luís Borges, com um grande reconhecimento pela extraordinária qualidade e clareza dos textos. José Bento venceu os prémios D. Dinis e Pen (1960) com “Silabário” e prosseguiu a ação sistemática, com a antologia do “Siglo d’oro”, “Lírica espanhola de tipo tradicional”. José Bento foi um grande homem de cultura, capaz de mobilizar energias e favorecer a comunicação entre culturas e entre pessoas, como fator de paz. Os livros ”Um Sossegado Silêncio” (2002, Asa) e “Alguns Motetos” (Assírio e Alvim, 2003) marcam a qualidade do autor e o seu entendimento de que tudo depende da capacidade de compreender e transmitir sentimentos…

 

Agostinho de Morais 

A VIDA DOS LIVROS

De 28 de outubro a 3 de novembro de 2019

 

«D. Afonso Henriques» de Diogo Freitas do Amaral (Bertrand, 2000) constitui exemplo pedagógico de defesa do património cultural como realidade viva.

 

 

UM HOMEM DE CAUSAS
A última vez que estivemos juntos foi há algumas semanas, a trabalhar, em casa de uma amiga comum, a Professora Maria da Glória Garcia. Apesar de frágil fisicamente, continuava a ser o mesmo, extremamente metódico e rigoroso, afável e disponível, sem perder o fio condutor do bom método. Tratava-se de reorganizar o grupo dos amigos do Mosteiro dos Jerónimos, nascido da preocupação de não considerar o Ano Europeu do Património Cultural como um momento passageiro e sem consequência. Quando, há dias qualifiquei, sentidamente, Diogo Freitas do Amaral como um homem de causas, estava a pensar em vários dos momentos da sua vida, alguns em que nos encontrámos e convergimos. Para o jovem professor que encontrei na Faculdade de Direito em 1970, foi essa uma das marcas do seu carácter que me atraiu. Mais do que o formalismo do ato administrativo, importava, essencialmente, ver a Administração Pública como realidade viva, ao serviço dos cidadãos e da realização do bem comum. E quando, nesse tempo, estudávamos realidades novas, como o ordenamento do território, era a aproximação aos cidadãos que estava em causa. E quando líamos Alexandre Herculano a reclamar a governança do país pelo país e a ligar a liberdade cívica à melhor organização dos povos e ao reconhecimento do valor matricial do municipalismo, descobríamos, naturalmente, a importância do reformismo. Estávamos num tempo em que a ideia de reforma não podia deixar de entrar na ordem do dia.

 

O CULTO DA HISTÓRIA
Se falo de Herculano é, também, para dizer que encontrei sempre em Diogo Freitas do Amaral a paixão da história, da história política e da história das ideias. Os temas culturais entusiasmavam-no. Nota-se essa inclinação em obras como: “D. Afonso Henriques – Uma Biografia” (2000), “D. Afonso III, o Bolonhês, um Grande Homem de Estado” (2015) e “Da Lusitânia a Portugal. Dois Mil Anos de História” (2017). Tivemos oportunidade de falar sobre esses temas, e a leitura dessas obras significa, antes do mais, repercussão de uma prática anglo-saxónica evidenciada em muitos grandes intelectuais e políticos (como Roy Jenkins) que leva à reflexão e à escrita, muitas vezes biográfica, de modo a enriquecer o debate de ideias. As três obras referidas enquadram-se nessa boa tradição. Mas outras houve que deixou, designadamente para melhor compreensão dos diversos temas jurídicos e políticos que estudou. É a reflexão política que está presente – ligando a visão crítica dos acontecimentos históricos e sobre a evolução de Portugal. O caso de D. Afonso III é evidente. De facto, o pai de D. Dinis é quem cria condições para a constituição pioneira de um Estado pós-medieval, com unidade política, administrativa, económica e cultural. Vindo do centro da Europa, o Bolonhês, o grande homem de Estado, conseguiu construir no ocidente peninsular uma realidade moderna, que abrirá horizontes para os fulgurantes séculos XIV e XV. Esse sentido reformador entusiasmou o nosso autor, que escreveu a obra histórica a pensar no Portugal de hoje, a partir da Europa, e na necessidade de planear o futuro com horizontes abertos e largos. O mesmo se diga da biografia de D. Afonso Henriques, onde é a rigorosa análise política que prevalece, com destaque para a compreensão da importância de consolidar a frente marítima – que até aos nossos dias se tem revelado essencial. Aqui esteve a divergência política (longe explicações psicanalíticas) com a mãe, D. Teresa, que estava apegada à manutenção de influência no reino asturo-leonês e na Galiza… O que esteve em causa, como o autor confirma, seguindo a melhor doutrina, foi a amplitude significativa da revolta dos barões portucalenses, bem como “a impressão causada pelas qualidades combatentes e de liderança demonstradas pelo jovem príncipe português”. Uma leitura atenta das obras referidas confirma plenamente como o cidadão culto e estudioso, ciente da importância da História política, contribui com sentido pedagógico e capacidade crítica para a reflexão, de que tanto está carenciada uma sociedade que se deseja esclarecida e madura – em lugar dos tempos de imediatismo e de superficialidade. A História política tem de ser valorizada, não apenas na dimensão historiográfica, mas também no campo das ideias. Essa era uma convicção clara que sempre encontrei no estudioso.

 

UM PEDAGOGO ATIVO
Já referi a anglofilia de Diogo Freitas do Amaral, que levava, nestes últimos tempos, à amargura pelo que via na evolução dos acontecimentos ligados ao “Brexit”, no qual ninguém se entende, contrariando um proverbial “british common sense”, que tanto admirava. Para além de ser um cultor exemplar do “Direito Administrativo”, na senda de Marcelo Caetano, com novas perspetivas científicas e pedagógicas abertas, tornou-se um exemplar pedagogo da “História das Ideias Políticas”, sobre que também muito falámos. Na ”História do Pensamento Político Ocidental”, de Thomas Morus a Montesquieu, até Burke e Tocqueville, chegando nos nossos dias a Karl Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin ou Jacques Maritain o que o preocupa é a compreensão da democracia como realidade dinâmica, em permanente transformação, num sentido reformista, com instituições mediadoras, capazes de garantir a representação e a participação dos cidadãos. Leia-se, aliás, o “Manual de Introdução à Política” (2014), onde as ameaças sobre democracia estão evidenciadas, com uma preocupação especial com a verdade e a justiça. E não esquecemos que foi por proposta do CDS que a Constituição da República refere expressamente no seu articulado a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como garantia de um Estado de Direito e de direitos. As três revoluções, inglesa, americana e francesa, tinham de ser vistas pelo autor articuladas entre si, no contexto do pluralismo e da separação e interdependência de poderes. E o “New Deal” de Franklin D. Roosevelt permitiu às economias mistas modernas dar resposta às incapacidades do mercado e às incapacidades da intervenção do Estado. As encíclicas de João Paulo II, Bento XVI e do Papa Francisco sobre a idolatria do mercado, sobre a “economia que mata” e sobre os desafios ligados ao meio ambiente mereceram, assim, especial atenção ao cidadão preocupado com a emergência de democracias ditas iliberais, que considerava chocantes contradições nos termos. Como homem de causas, como homem de cultura, empenhou-se ativamente pela cultura da paz, pela defesa e salvaguarda dos direitos fundamentais e, para referir um dos seus últimos combates empenhou-se em considerar a defesa do património cultural como um dever fundamental de uma sociedade mais humana e respeitadora da sua memória. Deixar ao abandono a herança e a memória das gerações que nos antecederam é destruir o carácter e a identidade, como realidade abertas, não do passado, mas do presente e do futuro. O património material e imaterial, a natureza e as paisagens, o mundo digital e a criação contemporânea exigem a nossa responsabilidade. Diogo Freitas do Amaral ensinou-nos a não baixar os braços.  

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Hoje, comecei a reler os doze volumes de A Dance to the Music of Time de Anthony Powell. É obra de ficção, mas alimentada por um olhar atento, minucioso e crítico - e aliás, por tudo isso, amistoso - sobre a sociedade inglesa, de 1914 a 1970. Não sendo, portanto, obra historiográfica, é contudo uma crónica de vidas e comportamentos coevos do autor. Chamemos-lhe registo subjetivo - se assim entenderes, Princesa de mim - apesar de tal apelido me parecer redundante, posto que tudo o que dizemos ou escrevemos, inventado, estudado ou copiado, é, necessariamente, um tantinho subjetivo. Essa obra maior de Powell tem sido diferentemente apreciada pela crítica, como por exemplo nos testemunham, quer os elogios de seu amigo (desde os tempos de Oxford) Evelyn Waugh, quer as grandes reservas de outro amigo, e também celebrado escritor como Waugh, o V.S. Naipaul. Também em França, muitos o comparam a Marcel Proust, talvez porque o compasso do tempo vá marcando labirintos da memória (?). Mas acho-os diferentes. Seja como for, A Dance to the Music of Time tem, pelo menos, o mérito de nos levar a observar de mais perto a high society inglesa, ainda que pelos olhos de um dos seus membros. Nascido em 1905, numa família de tradição militar, e com fortes relações à alta aristocracia, o seu autor frequentou as grandes escolas, como Eton e Oxford, mas ainda recusou a nobilitação que lhe foi proposta por Sua Majestade britânica. Isto é: esteve sempre dentro e fora, como qualquer cavalheiro que preze a própria independência. Assim também outros e outras, chamem-se simplesmente Richard Jones ou, elegantemente, Georgiana Spencer... Ou sejam simples cidadãos, por vezes perdidos nos labirintos mais ou menos enigmáticos do seu tempo e seus modos. Para tua meditação, em pleno século XXI, sobre as contradições e turbulências que surpreendem a circunstância do nosso pensarsentir, e nos confundem, traduzo-te um trecho de S. Zizek em La naturaleza no existe (Mirando al Sesgo, Paidós, Buenos aires, 1991):

 

  Um autêntico ecologista horroriza-se com jardins perfeitos e canteiros limpos. Eis o que realmente mais teme, o seu pior pesadelo: um verde prado agradável, um terreno de que se fez desaparecer o lixo. Creio que uma sociedade ecológica idealmente equilibrada (para usar um termo que os ambientalistas usam) seria um espaço totalmente caótico, de que o lixo não teria sido segregado, mas fosse simplesmente um elemento da paisagem.

  

   À medida que me vou, com o peso da idade, debruçando um pouco mais sobre o mundo terrenal (assim lhe chamaria Gil Vicente), nossa circunstância, e também examinando, mais curiosa e misericordiosamente, as perspetivas, passadas e presentes, pelas quais o fui olhando (e talvez julgando)... vou percebendo melhor algo que frequentemente me demorou na reflexão. Certamente te lembrarás, Princesa de mim, de como, já há muito tempo, me fui tentando a amar a imperfeição. Porque, na verdade, o amor nunca é possível quando apenas idealizamos o objeto dele, esquecendo que este, pessoa ou outra qualquer existência, está, pela própria natureza da sua presente condição, necessariamente inacabada. Só sabendo aceitar tal condição necessária poderemos começar a amar algo como se de nós se tratasse. Porque então entendemos também que somos igualmente imperfeitos, e que o caminho para a perfeição (a que também se chama santidade, bondade, beleza) apenas se percorre em verdade e partilha, pela participação dos seres humanos na obra de Deus. Se olharmos bem para toda a simbologia, e designadamente a cristã medieva, compreenderemos como tudo não é apenas aquilo que vemos, ouvimos ou alcançamos: é isso, sim, certamente e pela medida em que o progresso científico no lo vai descobrindo. Mas é também o seu acabamento, a sua realização plena, a perfeição com que tudo e cada coisa está inscrita no coração de Deus, e nos espera. Até esse dia em que deixaremos de conhecer tudo apenas pelo espelho deste mundo, nesta vida terrenal, mas tudo veremos na sua plenitude. Bem sei que há algo de platónico em mim. Será amor?

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira

NOVAS EVOCAÇÕES E DESCRIÇÕES DO TEATRO DE SÃO CARLOS NOS SÉCULOS XVIII/XIX

 

Referimos hoje novamente o Teatro de São Carlos, por já diversas vezes aqui citado e agora evocado e descrito no âmbito de uma sessão organizada há dias pelo Centro Nacional de Cultura, onde precisamente tivemos o gosto de participar.

 

A intervenção fez-se a partir de referências e evocações históricas, estéticas mas também pessoais deste grande Teatro, notável em si mesmo pela qualidade arquitetónica e pela atividade que desde a inauguração, ocorrida em 3 de junho de 1793, até hoje mantém. Foi beneficiando de sucessivas alterações e melhoramentos, com destaque para o São Nobre inaugurado em 1796.

 

Isto, com períodos de maior ou menor atividade, com maiores ou menores ligações diretas à produção nacional de cultura e de espetáculo operístico mas não só, e sobretudo com uma tradição de qualidade que em tudo se concilia com a qualidade arquitetónica do edifício em si mesmo.

 

Colocando-nos numa perspetiva histórica, recordamos então que o Teatro de São Carlos se deve à traça do arquiteto José da Costa e Silva, o qual se terá inspirado no Teatro de São Carlos de Nápoles, esse destruído por um incêndio em 1816.  E vale a pena recordar que o mesmo arquiteto Costa e Silva é autor também do primeiro Teatro São João do Rio de Janeiro, inaugurado em 1813 e destruído por incêndio. Ficaram gravuras que evocam o nosso São Carlos.

 

Tivemos já ensejo de citar diversos textos descritivos do Teatro, produzidos e divulgados ao longo dos séculos. Aliás, o salão nobre é aberto ao público em 1796. Recordamos agora um documento datado de 1803 e assinado pelo futuro Dom João VI, então Príncipe Regente, o qual expressamente refere “o luzimento e esplendor a que se tem elevado a benefício do público e grandeza da minha Corte”, assim mesmo!...

 

Mas já três anos antes, em 1800, Carl Israel Ruders descreve com grandes elogios o Teatro de São Carlos: “de toda a parte se ouve muito bem. Na plateia há três coxias paralelas entre os bancos ficando assim a sala dividida em quatro separações, o que permite entrar e sair sem apertos”. Descreve com grandes elogios os camarotes “adornados exteriormente com belos arabescos e candelabros de cristal, colocados de maneira que o brilho da luz não tira a vista aos espetadores”.

 

E mais acrescenta Ruders que “os panos de boca, tanto o exterior como o interior, representam assuntos mitológicos. São bem pintados”.

 

Mas voltamos ao século XIX, seguindo o que citamos na “História do Teatro Português”. Assim, em 1820, o Marquês da Fronteira vê “pôr-se de pé sobre um dos bancos um jovem elegante pelas sua maneiras, duma fisionomia simpática e toilette apurada um pouco calvo apesar da pouca idade, o qual, pedindo silêncio aos que o rodeavam, disse A Liberdade   e recitou uma bela ode”...  Era nada menos do que Garrett!...

 

E recordamos ainda diversos escritores da época. Assim, António Feliciano de Castilho recorda as aclamações que saudaram a noticia do regresso da D. João VI do Brasil, anunciada no São Carlos em 27 de abril de 1821.  Eça, em “O Primo Basílio”, descreve “figuras obscenas” desenhadas com o charuto nas paredes à entrada da plateia.

 

E a partir dos primeiros anos do século XX o Teatro de São Carlos acolhe a estreia de dramaturgos como Alfredo Cortez com a “Zilda” ou António Ferro com o “Mar Alto”. Marcou assim certa modernização, passe o termo, do teatro português... 

 

Mas isso veremos mais tarde, pois voltaremos a esta evocação do Teatro de São Carlos.

 

DUARTE IVO CRUZ  

CRÓNICAS LUSO-TROPICAIS

 

2. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO

 

Num momento histórico em que se desenvolviam teorias que atribuíam à “mistura das raças” um dos principais fatores de “degeneração” do brasileiro enquanto povo, Gilberto Freyre via o resultado dessa miscigenação como muito positivo, tornando a multiplicidade do brasileiro mais múltipla o que, por sua vez, o tornava um povo ainda mais rico. 

 

Pronunciando-se sobre este tema, pela positiva, e ultrapassando ideias feitas até aí tidas como dados adquiridos, pôs de lado o pessimismo derrotista de gerações anteriores, que se julgavam condenadas ao fracasso, pela sua condição de parte integrante de países sem futuro, em consequência do carácter mestiço da sua população, devolvendo-lhes uma confiança e um orgulho expressos pela certeza das vantagens que a completa mestiçagem proporciona, a nível mundial, aos povos lusófonos. 

 

Freyre era daqueles que pensavam que o aspeto estético da miscigenação é de relevante importância sócio-cultural, podendo contribuir decisivamente para uma nova valorização do homem miscigenado como ser eugénico e estético e, através da sua eugenia e estética, para a sua ascensão social, para a sua integração, para uma integração pan-humana meta-racial. 

 

O Brasil era tido como um país onde não existiam nem negritudes nem branquitudes, ao contrário dos Estados Unidos e da República da África do Sul. Defendia que o Brasil se afirmava já, antecipando-se há muito, como uma nação de gente em grande parte morena, esteticamente atraente, intelectualmente capaz, socialmente ajustada numa cultura que é síntese de várias culturas contribuintes e não exclusivista.

 

Defendendo a ausência de raças capazes ou incapazes de civilização, concluiu que os portugueses nunca foram apologistas e portadores da mística da pureza da raça, o que favorece o aparecimento da verdadeira democracia, onde não se estabelecem (ou estabelecem menos) preconceitos. Daí o seu apelo veemente de que todos os lusófonos espalhados pelo mundo, nunca renunciassem ao princípio e ao método de democratização das respetivas sociedades pela miscigenação, pelo intercurso entre as culturas, método e princípio que tinha como o melhor contributo luso-brasileiro para o melhor reajustamento das relações entre os homens. 

 

Freyre nunca afirmou a existência de uma democracia racial pronta e acabada na lusofonia, mas sim que Portugal e Brasil estão mais próximos dela que qualquer outra cultura ou civilização atual, por confronto, por exemplo, em tempos recentes, com a ex-Jugoslávia, Kosovo, Serra Leoa, Uganda, Ruanda-Burundi. Pretendia também que a África e Ásia lusófonas seguissem este caminho, adaptando-se e inovando-o. 

 

Em 1952 escrevia Gilberto Freyre:  

 

”O português é grande por esta sua singularidade magnífica: a de ser um povo luso-tropical”.     

 

E acrescenta:

 

“(…) é preciso que nem os portugueses nem os brasileiros responsáveis pelos destinos das duas grandes nações luso-tropicais de hoje se deixem envolver por alguma retardatária ou arcaica mística arianista, antes se entreguem com uma audácia cada dia maior à aventura de se desenvolverem em povos de cor, para neles e em gentes mestiças, e não apenas em brancas, sobreviverem os melhores valores portugueses e cristãos de cultura num mundo porventura mais livre de preconceitos de raça, de casta e de classe social que o atual. O facto de os norte-americanos de agora antes animarem do que contrariarem os casamentos de seus soldados brancos com moças coreanas talvez já represente meia vitória do melanismo - há séculos seguido pelos portugueses - sobre o albinismo anglo-saxónico e dos alemães e dos holandeses (…)” (“Um Brasileiro em Terras Portuguesas”).

 

25.10.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

O que fazemos agora?

 

Há quem defenda que uma ideologia beta será sempre aquela que não pergunta à razão o que leva a justificar o poderio do modo de estar alfa. Mais: o “motor” alfa é tido como o que deve ser naturalmente protegido e aclamado pois corresponde ao triunfo dos fortes sobre os fracos, mesmo que essa realidade seja a do poder da mentira sobre a pessoa moral.

 

Creio que certas “elites” esconderam sempre o seu íntimo compromisso com esta doutrina que referimos acima, usando o discurso do politicamente correto, devidamente civilizado e suficientemente bondoso, de modo a que criticá-lo envolvesse criticar o que estaria bem na mescla das correntes do bem e do mal com que se afrontam os direitos à vida digna.

 

Acreditamos que para os betas existe um único caminho que têm real vontade de percorrer para atingir o único objetivo: imitar os alfas.

 

Cremos que o percorrer desse caminho constitui nos betas o grande fundo orgulhoso de um comportamento de culto, encabeçado pelos próprios, em jeito exponencialmente violento para chegar, tanto quanto possível, a um esmero dos alfas de hoje e ultrapassando-os criando uma musculação popular desafiadora de seguidores sem questões.

 

Não há dúvida de que as redes sociais são propícias a serem utilizadas para que em poucos anos, estes betas, atinjam uma realidade global de alfas, que, de jeito subtil e subcultural se mostrem como alternativa em todo o mundo.

 

As narrativas que passam a predominar envolvem um padrão familiar: velhos preconceitos valorados com novos conteúdos económicos determinam que as vítimas ou são virtuais ou atiradas para campos especialistas em estados permanentes de revolta.

 

É o tempo das realidades alternativas incapazes sequer de serem neutras porquanto ensinam a alcançar a finalidade dos betas enquanto se nutrem dos banquetes dos alfas que enfim já deixaram de ser o poder que agora se quer alcançar numa hostilidade clara às próprias universidades.

 

E não descurando as fobias e as obsessões de estimação de alfas e betas e novíssimos alfas, o que fazemos agora?

 

Talvez criarmos forças não esperadas, já que esperados não somos, a que alfas e betas e alfíssimos sejam obrigados a expor os internos inimigos de si mesmos, retirando-lhes a possibilidade de os usarem como motor e motivo do seu combate.

 

Claro que a força não esperada terá de conter o atrevimento de desagradar a estes novos senhores da vida bem como a capacidade de lhes provar que ainda existe uma parte considerável do mundo que não é o seu quintal.

 

Teresa Bracinha Vieira

PROCURAR LONGE O QUE ESTÁ PERTO

 

1. Três estórias.

 

1.1. O grande filósofo Martin Buber, no seu livro Der Weg des Menschen (O caminho do Homem), retomou a estória de Eisik filho de Yékel, de Cracóvia.

 

Apesar da sua miséria, nunca deixou de confiar em Deus. Num sonho, foi-lhe ordenado que fosse a Praga “para procurar um tesouro debaixo da ponte que leva ao palácio real”. Quando o sonho se repetiu pela terceira vez, Eisik pôs-se a caminho de Praga, a pé. Mas não podia escavar no lugar indicado, porque a ponte era vigiada dia e noite pelas sentinelas. Voltava todas as manhãs, andando para trás e para a frente o dia todo. Por fim, o capitão da guarda, intrigado, aproximou-se amavelmente para se informar do que se passava, o que quereria Eisik: “tinha perdido alguma coisa ou estava à espera de alguém?” Aí, Eisik, dada a cordialidade do capitão, contou-lhe o seu sonho, e o capitão estoirou às gargalhadas: “E é para satisfazer um sonho que vieste de tão longe, gastando as solas no caminho? Ah! Ah! Meu velho, se fôssemos em sonhos, também eu deveria pôr-me a caminho por causa de um sonho que tive e ir a Cracóvia a casa de um judeu, um tal Eisik filho de Yékel, para procurar um tesouro debaixo do forno! Já viste? Nessa cidade, na qual metade dos judeus se chama Eisik e a outra Yékel, estou mesmo a ver-me a entrar, umas atrás das outras, nas casas todas!”

 

O capitão continuava a rir. Eisik inclinou-se numa saudação, voltou à sua casa em Cracóvia e desenterrou o tesouro que há tanto tempo o aguardava!

 

1.2. Também se conta que uma vez um peixinho muito jovem foi ter com outro peixinho, também jovem, para perguntar-lhe: “Onde é o oceano?”. Ele respondeu-lhe: “Também já fiz a mim mesmo a pergunta, mas não sei responder.” Foi então perguntar a um peixe mais velho, que soberanamente se movia no oceano: “Onde é o oceano? Ninguém me sabe responder.” E o mais velho: “Então tu nasceste no oceano, andas no oceano, vives no oceano e perguntas onde é o oceano?!”

 

1.3. A terceira estória é uma velha lenda hindu, retomada pelo teólogo Jean Vernette.

 

Houve um tempo em que todos os homens eram deuses, mas, tendo abusado da sua divindade, o senhor dos deuses, Brama, decidiu retirar-lhes o poder divino. O problema foi encontrar um lugar onde escondê-lo, de tal modo que fosse impossível o Homem reencontrá-lo. Os deuses menores foram convocados e aconselharam a meter a divindade do Homem na terra. Mas Brama respondeu que o Homem havia de escavar e encontrá-la. Então, lancemos a divindade ao mais profundo dos oceanos, replicaram os deuses. Mas Brama disse: “Não, pois, mais cedo ou mais tarde, o Homem há-de explorar os oceanos até às profundezas, encontrá-la-á e voltará com ela para a terra.” Os deuses menores não encontravam solução, concluindo: “Não sabemos onde escondê-la, já que não parece existir nem na terra nem no mar lugar que o Homem não possa um dia alcançar.” Então, Brama disse: “Eis o que faremos da divindade do Homem: vamos escondê-la no mais profundo dele mesmo, pois será o único lugar onde ele nem sequer pensará em procurar...”

 

E, desde então, como ensina o breve apólogo do Vedanta, o Homem deu a volta à terra, explorou, subiu, mergulhou e escavou... à procura — longe, muito longe dele —, à procura de algo que se encontra nele, no mais íntimo dele...

 

2. Agora, já não é uma estória, mas história. Cito o discurso célebre de São Paulo no Areópago. Em Atenas: “De pé, no meio do Areópago, Paulo disse então: ‘Atenienses, vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens. Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: ‘Ao Deus desconhecido.’ Pois bem! Aquele que venerais sem o conhecer é esse que eu vos anuncio. O Deus que criou o mundo e tudo quanto nele se encontra. Ele, que é o Senhor do Céu e da Terra, não habita em santuários construídos pela mão do Homem nem é servido por mãos humanas, como se precisasse de alguma coisa, Ele, que a todos dá a vida. Que os homens procurem a Deus e se esforcem por encontrá-lo, mesmo tacteando, embora não se encontre longe de cada um de nós. É nEle, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos, como também o disseram alguns dos vossos poetas: ‘Pois nós somos também da sua estirpe’.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 20 OUT 2019

O CINEMA É UM LUGAR PERIGOSO

 

O produtor Walter Wanger puxou da pistola e, logo ali, em pleno estúdio, espetou um balázio no agente Jennings Lang que tombou redondo, mas não morto. Um só tiro. Por honra da firma.

 

Perdoem-me os leitores mais sensíveis começar à bruta, mas já vão ver que vem aí teoria selecta.

 

Wanger, que o produtor pronunciava como se pronuncia danger, por gostar da rima viril, produziu obras-primas como “Stagecoach”, de Ford, “Scarlett Street”, de Fritz Lang, ou o “Foreign Correspondent”, de Hitchcock. Foi grande ao pé de gente grande. Levou para casa, também, uma obra-prima, a belíssima actriz e mulher que era Joan Bennett. Bennett foi de uma beleza tão nocturna como clandestina em quatro filmes de Lang, e em filmes de Renoir e Ophuls.

 

Era a criação de Wanger. Fora ele que a pusera morena, conferindo-lhe o mistério e a figura que a atiraram para o estrelato. Wanger fez-lhe a carreira. De repente, em 1951, aparece um finório advogado de Nova Iorque, armado em carapau de corrida, convencendo Bennett a assinar um contrato com a MCA, uma agência de actores. Wanger não foi de modas. Acusou este Lang de andar enrolado com Bennett. Foi-se a ele e resolveu a coisa a tiro. Lang sobreviveu com um tiro na coxa, o casamento de Wanger e Bennett também, por mais 25 anos, e o produtor, invocando loucura temporária, passou 4 refastelados meses na cadeia.

 

É esta loucura, temporária ou não, que às vezes falta à teoria. Sobre as artes em geral, e o cinema não escapa, há uma indústria da teoria que parasita as obras sem precisar delas.  Faço-me de ingénuo e digo-vos: para mim, não há cinema, o que há é filmes. E dentro dos filmes há cenas, planos, actores, um décor que nos esmaga, uma certa luz que nos arrebata. Depois, já menos ingénuo, confesso que não deixo de ter uma teoria. Em boa verdade roubada a Truffaut e ao artigo (os dele eram sempre bons)  em que disse: “O cinema é fazer coisas belas a mulheres belas.” Era o que Wanger pensava e não me venham dizer que levou as coisas longe de mais.

 

Sobretudo, não me venham dizer que é possível criar tamanha e tão estarrecedora beleza sem um sobressalto físico. O amor de Godard pelos tremendos olhos de Anna Karina, o de Antonioni pelos eclipses de Monica Vitti, o de David O. Selzenick pela ardente Jennifer Jones, provam que, afinal, o amador se funde sempre na coisa amada: na vida por causa do cinema.

 

Marlene Dietrich sou eu”, disse, sem a menor ambiguidade, Josef von Sternberg, o pequenino homem que fez do rosto da Dietrich uma combinação de angulosa beleza e perdição. Tinham, juntos, no plateau, os êxtases – lembrem-se de “Morocco” ou de “Dishonored” – que na vida Sternberg algumas vezes viu fugir, prodigalizados por Marlene a outros amores tempestuosos. Wanger teria gasto o carregador da pistola.

 

Manuel S. Fonseca

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