Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
A pintura de Rose Wylie - uma maneira particular de ver.
‘The way we see things is affected by what we know or what we believe (...) We only see what you look at. To look is an act of choice.’, John Berger
Para a pintora Rose Wylie (1934), olhar é sempre um ato extraordinário que transforma e que interrompe o mundo, porque aquilo que é visível está sempre em contacto com o invisível - sentimentos, pensamentos, intuições e memórias.
A pintura de Wylie expõe uma maneira específica de ver o mundo e por isso resulta numa forma muito própria de pintar.
‘I like to present to the world a kind of painting which is considered not totally acceptable painting.’, Rose Wylie
Em resposta a momentos visuais, Wylie cria uma pintura táctil, sintética e informada.
Táctil porque Wylie pinta de acordo com um processo físico que começa na execução de desenhos (muitos desenhos a caneta e a lápis). Eventualmente, de um dos desenhos gera-se uma tela. A tela é cortada e pintada plana (no chão ou na parede), ainda sem estar montada na grade. Os desenhos são muito espessos, porque os papéis colam-se sucessivamente uns em cima dos outros, para emendar ou para tornar mais precisa a informação que surge acerca do tema. Durante o processo, apesar de tudo estar planeado, há espaço para a interpretação e reinterpretação do tema, segundas intenções e correções, novos desenhos e reordenamentos e por isso a tela é feita de emendas, improvisos, colagens sucessivas e a tinta é espessa e a pincelada é imprecisa.
‘I don’t want to be told how to draw right. The final drawing always comes from the memory of having drawed many times before. I do both, looking at it and from the memory of it. I like awkward, unfamiliar. I don’t like knowledge shouting at you.’, Rose Wylie
Rose Wylie pinta as especificidades do mundo real - que é visual - e sempre que o faz, utiliza tudo aquilo que é possível utilizar e que está ao seu dispôr. E tenta propor uma pintura síntética. A pintura de Wylie é uma ligação ao que nos rodeia, pelo seu olhar. Responde a um processo de transformação (não é uma cópia e não é uma análise) do objeto a pintar - através da memória ou da observação direta.
A sua pintura responde sempre a um processo de filtragem, de personalidade, de redução, de clarificação e de adição. É um confronto entre o sujeito, que observa e que se lembra, e o objeto. É um desejo de comunicar da forma mais direta e imaginativa. Tenta referir-se ao objeto original sempre da forma mais clara, verdadeira, justa e informada, porém livre de qualquer representação convencional. É um processo de correção e de aproximação fiel tanto ao objeto como aos tantos desenhos já feitos desse mesmo objeto.
Divergentes temas podem ser tratados, mas a maneira de ver única de Wylie mantém-se.
Rose Wylie acredita que há um fator fundamental e que determina o curso de qualquer obra, que é aquilo que se é - uma mistura de identidade, de lembranças e de experiências - e se se tenta ser o mais fiel a isso encontra-se uma linguagem muito própria, uma maneira muito particular e intransmissível de pintar. A pintura reflete sempre uma essência, é uma fusão consigo próprio e apresenta muitas formas singulares e irrepetíveis.
‘I draw what I like. It is the visual impact on me that I draw - and when you work with memory, you work with your brain. You look at your mind, which is much fainter than reality - that’s what imagination and transformation is about.’, Rose Wylie
Primeiramente, existe um impacto visual, um maravilhamento. Wylie tenta ser o mais fiel a esse impacto através de listas, através de desenhos sucessivos, e corretivos. E assim que se recorre à memória, ao desenhar, olha-se para a imagem no cérebro - incompleta e baça. Ao trabalhar assim é possível dar espaço à interpretação individual, à construção, à filtragem, à impressão e à projeção de si próprio.
‘Art may have an agenda, a contemporary agenda, which could be political or anything in order to have significance because that’s what’s going on, but I’m not sure whether it’s necessary to have that. And people straight emotional response to the work without any knowledge, is what I would like, because I think that’s what painting is about.’, Rose Wylie
Rose Wylie acredita que o decalque da lembrança mantém aquilo que interessa desde início - a descrição pode não ser totalmente aturada em relação ao tema mas a pintura deve ser aturada e fiel à memória desse tema. Sem ser literal, o trabalho de Wylie revela o específico e o particular. A tela é um todo que nunca está completo - essa vontade de completude e de fidelidade a uma memória visual pode estender-se por uma sucessão de mais telas e desenhos que vão adicionando ou filtrando a informação. As pinturas são planas - talvez a profundidade seja dada pela alteração dramática de dimensão. Dentro da mesma composição, aparecem por vezes corpos e cabeças enormes em relação a outras figuras - planos abrem-se e fecham-se sucessivamente.
‘You paint from the moment, from the thing, from what you are on that moment.’, Rose Wylie
Rose Wylie deixa que o tema se revele por si só e pode surgir no dia-a-dia, em artigos de jornais, revistas, programas de televisão, filmes ou determinados factos da história. A sua pintura é informada e as suas referências são improváveis, que vão desde a pintura renascentista, a Giovanni di Paolo, a Matisse, a Picasso, até à pintura votiva mexicana ou livros de colorir para crianças.
‘I do like to work with film stars and footballers because I think there’s a shared interest. It’s democratizing the whole thing. It is just work and we can all engage with it.’, Rose Wylie
A pintura de Rose Wylie tem o intuito de ser um meio de contacto, um meio de comunicação ativo. Contém informação conhecida e que pode pode ser partilhada com toda a gente - bico do fogão, uma boca a comer uma bolacha Leibniz, um olho a pôr rímel, Rooney a chutar a bola, Serena Williams a jogar ténis, Kate Moss entre luzes, Nicole Kidman com uma saia vermelha, etc. Wylie recorre frequentemente ao uso da escrita que dá informação particular adicional, local, nome do filme, actores, descrição da cena, descrição do tema, descrição da personagem, intensificação de sons e de barulhos. São pintadas figuras que espelham tanto o tempo do passado como o tempo do presente, figuras etéreas ou artificiais, heróis, lendas, mitos, santos, mártires, reis, celebridades, galinhas, insetos, coelhos, gatos, cães, patos a fazer ‘quack, quack’, aviões carregados com bombas.
‘Matisse once said ‘Go for it, try to get it, as it is, out of your head and it won’t be right anyway but it’s fine.’, R. Wylie
Por isso, na pintura de Rose Wylie, existe a constante vontade em mostrar e tornar evidente da forma mais essencial e económica, a transformação pessoal a que o tema foi sujeito. A pintura torna-se num diálogo permanente, memorável e fluído. É uma representação clara, que aceita opostos e mudanças de escala. É um espaço onde as figuras aparecem recortas e isoladas e as cores são vivas. Funde-se, num só plano, o fragmento e o todo, o planeado e o acaso, a realidade e a imaginação, o geral e o particular.
‘But one of the things that art does is to unify everybody (...) It crosses the whole boundaries of a nation. Certainly it is good for the development of the person, it can give you a reason, in fact a purpose for life.’, Rose Wylie
1. Eu sei que o tema é hoje muito sensível e complexo. Já aqui escrevi várias vezes sobre ele, mas volto a ele, sobretudo porque penso que é fundamental ter conceitos claros, contra a confusão que quer impor-se neste e noutros domínios. Dentro da confusão, é fácil perder-se quanto ao essencial.
Dou exemplos de confusionismo. Contou-me uma pessoa amiga que, durante uma volta a pé, ouviu uma senhora aflita a chamar: “Anda à mãe, anda à mãe.” Até se afligiu, pensando que uma criança se tinha perdido. Afinal, era um cãozinho. Outra pessoa contou-me que viu na televisão uma senhora grávida num supermercado com o cãozito num carrinho e, à pergunta para quando o nascimento do bebé, disse a data prevista na qual o cão iria ter um irmão. Segundo o Expresso, André Silva declarou: “Há mais características humanas num chimpanzé ou num cão do que numa pessoa em coma”. E já se pede um SNS para cães e gatos. E há jardins públicos infrequentáveis por crianças, tanta é a porcaria largada por cães, com os donos regalados a observar o alívio dos bichos. E tem havido ataques graves de cães e perturbações sem conta por outros animais que destroem colheitas inteiras, mas nada acontece...
A afirmação acima está na continuidade da de Peter Singer, professor da Universidade de Princeton, que escreveu em Ética Prática: “Devemos rejeitar a doutrina que coloca a vida dos membros da nossa espécie acima da vida dos membros de outras espécies. Alguns membros de outras espécies são pessoas; alguns membros da nossa não o são. De modo que matar um chimpanzé, por exemplo, é pior do que matar um ser humano que, devido a uma deficiência mental congénita, não é capaz nem pode vir a ser pessoa.” Quem faz estas afirmações fá-lo baseado em que a desigualdade de tratamento que damos às pessoas humanas e aos outros animais deriva do chamado especismo, que consiste na preferência que damos aos seres humanos sem qualquer outra razão que não a pertença a uma espécie, no caso, a espécie humana.
2. Oponho-me veementemente a esta tese, que é a tese animalista, uma das teses mais deletérias e ameaçadoras contra o humanismo. E estou à-vontade, por várias razões. Na universidade, sempre falei aos estudantes da Animal Liberation (Libertação animal), de Peter Singer, e há muito que defendi que se deveria encontrar, do ponto de vista jurídico, uma denominação para os animais, que não são coisas. Aliás, isso encontra-se também num livro que coordenei juntamente com Alexandre Manuel, Desafios à Igreja de Bento XVI, no qual o constitucionalista J. Gomes Canotilho perguntava se precisamente um desses desafios não era desenvolver uma ecologia em que “as diferenças entre ‘algo e alguém’ não remetam para o domínio das coisas a problemática humana dos outros seres vivos da Terra.” E sempre fui a favor do valor da vida, do cuidado a dar à Criação e de que aos animais é devido tratamento adequado, recusando sofrimentos cruéis e inúteis.
Para mim, de qualquer forma, há uma distinção entre a pessoa humana e os outros animais — e quando se fala em animais, é preciso distinguir entre animais e animais: não é a mesma coisa falar de cães e gatos e falar de pulgas, piolhos, carraças, percevejos, vespa asiática... e, por outros motivos, de leões, tigres, crocodilos, hipopótamos...—, distinção que é não só de grau ou quantitativa, mas essencial, qualitativa, ontológica. Bastará estar atento às diferenças, de que dou apenas exemplos. Neste tema como noutros, o problema é o fundamentalismo e a falta de racionalidade.
Como escreveu Edgar Morin, “embora muito próximo dos chamados chimpanzés e gorilas, tendo 98% de genes idênticos, o ser humano traz uma novidade à animalidade”. Há, apesar de tudo, entre etólogos e antropólogos, convergência bastante no reconhecimento de que entre o animal e o homem se deu um salto qualitativo essencial. Esse salto manifesta-se, em termos gerais, na autoconsciência (consciência de que se é consciente), na autoposse de si mesmo como único e centro de identidade, na linguagem simbólica e reflexiva, na capacidade de abstrair e formar conceitos, na transcendência em relação ao espaço e ao tempo, na criação e assunção de valores éticos e estéticos, no pré-saber da morte própria vinculada às crenças religiosas e à angústia frente ao nada, na pergunta pelo ser e pelo seu ser...
O homem não se encontra na simples continuidade da vida no sentido biológico. Como escreveu Max Scheler, o homem é “o asceta da vida”, pois é capaz de dizer não aos impulsos instintivos, vendo aí o célebre biólogo F. J. Ayala “a base biológica da conduta moral da espécie humana, nota essencialmente específica dela”. Porque é capaz de renunciar, abster-se, deliberar, optar, o homem é um animal livre e moral.
Os outros animais também comunicam, mas o homem tem linguagem duplamente articulada. Aristóteles viu bem, ao definir o homem como animal que tem lógos (razão e linguagem), e, assim, político: “Só o homem, entre os animais, possui fala. A voz é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente bem como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos frente aos outros animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais apreciações. A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a pólis.”
OPensador, de Rodin, diz-nos bem o que é o ensimesmamento: entrada dentro de si próprio, descida à sua intimidade única, à subjectividade pessoal: o ser humano vem a si mesmo como único, tem a experiência de eu enquanto própria e exclusiva, face ao outro, que é outro eu, outro como eu, mas simultaneamente um eu que não sou eu: um eu outro impenetrável. Disse o famoso psicanalista Jacques Lacan: “Possuir um Eu na sua representação: este poder eleva o homem infinitamente acima de todos os outros seres vivos sobre a Terra. Por isso, é uma pessoa”. Sabe que sabe, é autoconsciente, consciente de ser consciente.
O homem é um ser inquieto, nunca satisfeito (satis-factus: feito suficientemente), acabado. Por isso, é o ser do transcendimento, como escreveu Pascal, ao dizer que o homem mora algures entre “le néant et l’infini” (o nada e o infinito), aberto ao Infinito, à Transcendência. É o ser da pergunta e, de pergunta em pergunta, chega a perguntar ao infinito pelo Infinito, isto é, por Deus. Neste sentido, é constitutivamente metafísico e religioso. E tem dignidade, é fim e não meio, como defendeu Immanuel Kant, pois há nele algo de infinito, precisamente esta sua capacidade e necessidade de perguntar pelo Infinito, pelo Fundamento e pelo Sentido último.
E há o riso e o sorriso, a contemplação e a criação de beleza (quando é que um animal vai compor uma sinfonia?), o amor de autodoação, erguer edifícios jurídicos com o estabelecimento da lei e da igualdade de todos perante a lei, a sepultura, a esperança...
E, no final de tudo, se estas notas características e capacidades específicas e outras não convencessem, há uma que é definitiva: nesta questão de saber se a distinção entre os humanos e os outros animais é meramente de grau ou, pelo contrário, qualitativa, essencial, quem é convocado é o homem. É ele e só ele que debate. Alguém se lembra de convocar uma assembleia de outros animais para dirimir a questão?
É preciso tomar consciência do perigo da indiferenciação e da ameaça da animalização da sociedade.
3. Há uma pergunta inevitável. E os membros da nossa espécie que não podem de facto exercer essas capacidades, como os deficientes mentais profundos? Estou com a filósofa Adela Cortina: “Isso não os torna membros de outras espécies, mas pessoas que é preciso ajudar para poderem viver ao máximo essas capacidades, o que só conseguirão numa comunidade humana que cuide deles e os promova na medida do possível.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 29 SET 2019