CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM
Minha Princesa de mim:
Terminava a minha última carta, Princesa, falando-te do cair do pano sobre o tempo de cada um de nós, e sobre todos os tempos. Chamava-lhe véu apocalíptico, pois mais nada oculta, mas tudo descobre e revela. Será assim a minha visão ao morrer. Mas até lá, todos teremos de olhar, escutar, e interpretar. Sim, todos vamos interpretando, lendo sinais dos tempos, decifrando símbolos. Estes são obra humana, dizem sobretudo o que nos é difícil exprimir, ou serão, talvez, mais abrangentes, e propõem mais caminhos de leitura do real do que muito passo lógico.
No seu Pour les Siècles des Siècles (Vendémiaire, Paris, 2017), de que já te falei, o professor Oleg Voskoboynikov, escreve sobre o encanto dessa visão medieval da natureza, que é poética, alegórica. E continua: Ao abandonar, até ao século XIII, qualquer estética do olhar direto e independente sobre a natureza, olhar esse muito prezado por Aristóteles, o cristão medievo fez do mundo «um livro escrito pela mão de Deus» (Hugues de Saint-Victor); era preciso saber ler tal livro. Para um bom aluno de Hugues, Richard de Saint-Victor, «quer se interrogue a natureza, quer se leia a Bíblia, ambas exprimem o mesmo sentido». Os múltiplos sentidos da Escritura são outros tantos do «livro das criaturas», ou seja, do mundo: já Agostinho fala desse paralelismo entre escritura e natureza, e o século XII desenvolveu essa ideia. Tal posição não negava o mundo nem a necessidade de o estudar ou de falar dele. Muito pelo contrário, um discurso sobre a natureza das coisas, de natura rerum, é bem medieval, representa em si mesmo um género literário, de cariz enciclopédico, desde o século IX, com Robert Maur, aos enciclopedistas do século XIII [de que já te falei, Princesa de mim, em cartas antigas, a respeito de Tiago Voragino]. Pode até dizer-se que, de certo ponto de vista, a «natureza» medieval terá mais «necessidade» de «lei» do que a natureza aristotélica, já que, no seu próprio conceito, participa do Ser divino [cf. Étienne Gilson em L´Esprit de la Philosophie Médiévale, Paris, Vrin, 1989 ; a 1ª edição é de 1932].
Com ajudas do "nosso" professor Voskoboynikov - e é ou não é entusiasmante encontrar um universitário russo famoso por ser um dos melhores estudiosos, a nível mundial, da paleografia latina e, designadamente, da cultura e do pensamento medievo europeu, além de excelente tradutor, para a íngua russa, de textos filosóficos ocidentais dos séculos XII e XIII? - avancemos, então, Princesa de mim, para um melhor entendimento do pensamento simbólico da Idade Média da Europa Ocidental.
Distinguia-se então natura, a natureza no singular, em sentido geral, de naturae, no plural, as naturezas diversas, ou as propriedades naturais das coisas. Pensa o "nosso" professor que tal discernimento, pelo menos até à profunda aceitação, já no século XIII, da física e da metafísica aristotélicas (e, em qualquer próxima carta, lá voltaremos a Tomás de Aquino, pela mão de Umberto Eco), submetia a realidade sensível, empírica, a quatro interpretações: literal, simbólica, moral, mais raramente, anagógica - sendo que esta última, quiçá a mais sofisticada, era suposta conduzir a alma à Salvação. Não deixa de ser interessante que Voskoboynikov recorra a uma carta do grande Dante ao seu mecenas, Cangrande della Scala - a quem o Poeta explica como a sua Comedia (a tal a que ainda chamamos Divina) comporta vários sentidos - isso para nos iluminar quanto ao funcionamento de tal simbólico pensamento. [Trata-se de um trecho da XIII carta de Dante a della Scala]:
Pois uma coisa é o sentido que a carta transmite, e outra coisa o sentido trazido pelas próprias coisas. Chama-se literal ao primeiro, o segundo sendo alegórico ou moral. Para tornar claro tal modo de expressão, podemos acompanhá-lo na frase seguinte: «Quando Israel saiu do Egipto, quando a casa de Jacó se afastou de um povo bárbaro, tornou-se Judá o seu santuário, Israel a sua força». [Puxo aqui pela memória antiga de salmos cantados, e assim recordo o texto da Vulgata destes versículos 1 e 2 do salmo 114: In exitu Israel de Egypto, Jacob de populo barbaro, facta est Judea sanctificatio ejus, Israel potestas ejus]. Se olharmos só para a letra, veremos que se trata do êxodo dos filhos de Israel do Egipto, no tempo de Moisés; em sentido alegórico, trata-se da salvação trazida por Cristo; o sentido moral levanta-nos a alma, das lágrimas e penas, à bem aventurança; anagogicamente, a alma passa da escravidão da corrupção terrena para a liberdade da glória eterna. Apesar de todos esses sentidos misteriosos terem nomes diferentes, a todos podemos chamar alegóricos, pois são distintos do sentido literal ou histórico...
... O sentido literal serve sempre de objeto e matéria para os outros, designadamente ao sentido alegórico. Assim, não conseguiríamos, portanto, aceder ao conhecimento de outros significados sem conhecer a letra... ... Não há coisa alguma, natural ou artificial, que possamos penetrar sem primeiro construir fundações, tal como fazemos para uma casa ou um saber.
Este rigor intelectual de Dante Alighieri, no século XIII, encontramo-lo também nos dominicanos Alberto Magno e Tomás de Aquino que, em próxima carta, visitaremos, na companhia de Umberto Eco, como te prometi, Princesa de mim. Mas já no século XII, Hughes de Sain-Victor, grande renovador da ciência bíblica, repreendia, como lembra o "nosso" professor russo, os mestres e falsos mestres que, referindo-se à famosa fórmula de São Paulo «A letra mata, mas o espírito vivifica» (2ª aos Coríntios, 3, 6) se punham a falar do espírito sem se demorarem na letra. Escreveu ele: «Os nossos sábios, não querem ou não sabem respeitar a ordem coerente dos estudos, e por isso mesmo vemos muitos estudantes e poucos sábios». Porque, para ele, tal ordem reproduz a ordem do universo e corresponde à ordem da restauração da natureza humana. Para outro grande espírito da geração seguinte, John of Salisbury, a verdade está na natureza das coisas, mas também na natureza das palavras, pois a gramática imita a natureza, e assim temos de aprender a trabalhar com os textos.
Por tão facilmente, no tempo hodierno, nos deixarmos facilmente cair na tentação recorrentemente omnipresente das ideias "pronto a pensar", insistimos em olhar para a nossa meia idade como época de trevas e noturna ignorância, sem sequer descobrirmos e admirarmos um período em que a barbárie e o barbarismo foram sendo vencidos por um esforço consistente e persistente de clarividência e disciplina do espírito. Como aperitivo à nossa próxima deambulação em redor deste tema, na companhia de Umberto Eco, traduzo-te um trecho do Herfsstijder Middeleeuwen (ou "Outono da Idade Média") do holandês Johan Huitzinga, publicado em Harlem, em 1919):
Nenhuma verdade estava mais presente ao espírito medievo do que essa palavra de São Paulo aos Coríntios: Videmus nunc per speculum in aenigmate, tunc autem facie ad faciem ["Hoje apenas vemos por um espelho de enigmas, mas então veremos cara a cara]. A Idade Média nunca se esqueceu de que todas as coisas seriam absurdas se o seu significado se limitasse às suas funções imediatas e à sua fenomenalidade e que, ao contrário, pela sua essência, todas as coisas tendiam para o além. Tal ideia é-nos familiar, mesmo à margem de qualquer pensamento expressamente religioso. Quem não passou por momentos em que as coisas vulgares parecem ter um significado diferente e mais profundo do que o seu significado comum? Esta sensação, ora se apresenta como apreensão mórbida, que faz com que todas as coisas pareçam cheias de ameaças ou enigmas que teremos de resolver a todo o custo, ora, e mais frequentemente, nos enche de tranquilidade e confiança, convencendo-nos de que somos parte desse sentido secreto do mundo.
Tu sabes bem, Princesa de mim - muitas vezes te lo disse - como, posto em sossego, quanto gosto de contemplar esta nossa tão paradoxal condição humana no mistério em que a resguardam, e inquietam, silêncios de Deus.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira