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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

  Minha Princesa de mim:

 

    Já que tanto gostei de escutar obras do londrino Richard Jones, morto em 1744, sem data de nascimento conhecida, nem muito mais da sua vida, fui ao meu precioso The New Grove Dictionary of Music and Musicians, em vinte grossos (e pesados) volumes, editado em 1980 pela Macmillan, Londres, onde encontrei, na página 702 do nono volume, o artigo referente ao "nosso" compositor, redigido por Stoddard Lincoln, que confirma saber-se apenas que Jones terá nascido por finais do século XVII: All that is known of his life is that he succeeded Stefano Carbonelli as the leader of the orchestra at Drury Lane about 1730, and that he was succeeded in turn by one of his pupils, Michael Festing, and by Richard Clarke. An announcement of his death is found in the Daily Advertiser of 20 January 1744.

 

   Aprendi um pouco mais sobre o compositor, através de comentários à sua obra, dos quais ressalto o trecho que agora para ti traduzo, ao pensarsentir como pode um artista, seja ele um misfit ou desadaptado, soberanamente entender a sua (e nossa) herança cultural e, depois, dizer-nos muito mais do que os nossos ouvidos tenham escutado ou os nossos olhos enxergado:

 

   É evidente para quem examinar a sua música para violino que ele terá sido um excelentíssimo executante desse instrumento. Cheia de duplas pausas, largos intervalos, padrões de cruzamentos de cordas e ornamentações florais, está escrita num idioma técnico extremamente avançado para o seu tempo. Igual carácter violinístico se encontra na sua música para cravo, e com frequência temos a impressão de estar a tocar uma transcrição de qualquer concerto grosso de Corelli ou Vivaldi pelos acentuados contrastes que implica a diferenciação entre "solo" e "tutti". Apesar do estilo de Jones ser essencialmente italiano, é extraordinário pela sua originalidade. A música é ritmicamente vigorosa, são ricas as harmonias e largas as melodias, caracterizadas por cadências inesperadas e frequentes mudanças de rumo...

 

   Em 1757, treze anos após a morte de Richard Jones, nascia Lady Georgiana Spencer, numa família a que também, mais tarde, e noutro século, pertenceriam, quer Winston Churchill, quer Diana Spencer, ou Lady Di, princesa de Gales. Georgiana tornar-se-ia, pelo casamento com o 5º do título, Duquesa de Devonshire, e, por suas paixões - amorosas e outras - uma figura emblemática do século XVIII inglês. Aconselho-te, Princesa de mim, a sua biografia por Amanda Foreman, publicada pela Harper Collins, Londres, em 1998, que me ajudou a familiarizar-me com a Inglaterra aristocrática, cultural e política do tempo. Mas, para nada te esconder, confesso que me cativou sobretudo a personalidade contrastante de Georgiana Spencer: podia ser caprichosa e quebrar louça, mas nunca deixou de admirar e amar a sua amiga Lady Elisabeth (Bess) Foster, mesmo enquanto esta foi amante do duque seu marido. "My dear Bess, do you hear the voice of my heart crying to you? Do you feel what is for me to be separated from you...? Mandaram os fados que, com exceção, talvez, do conde Charles Grey - do qual teve a sua única filha ilegítima, Eliza Courtney, e com quem teve de romper, por imposição do duque seu marido, que lhe deu a escolher entre o amante e os seus próprios filhos - os seus amores foram todos casos de sofrimento e desgraça. Mas é-me difícil não admirar a beleza, não só de feições, mas de um olhar e uma expressão de afirmação determinada, da mulher que Thomas Gainsborough tão bem retratou. E é igualmente esta biografia, escrita por Amanda Foreman dois séculos mais tarde, um belo retrato de uma mulher em tempos passados. Creio que será a literatura histórica anglo-saxónica a maior cultivadora da biografia como arte de melhor se entenderem tempos idos através de um olhar perscrutador de personagens que, talvez por serem pessoas humanas, como que nos dão a mão para um passeio mais próximo da vida então partilhada.

 

    A minha carta seguinte, Princesa de mim, retoma o fio da meada desta. Mas até lá deixa-me explicar-te por que é que esta minha lembrança de Georgiana Spencer me levou a reler The Dance to the Music of Time, escrito, já no século XX, por Anthony Powell, livro de que te falarei nessa próxima carta. Muito simplesmente te digo que frequentemente me acontece pensarsentir as possíveis razões que levaram o Gaëtan, meu irmão - e, contrariamente a mim, que sou canhoto (não necessariamente sinistro), destro de nascença - a desenhar com a mão esquerda. Seria realmente a sageza tantas vezes invocada de querer que o gesto do carvão sobre o papel não saísse espontâneo, mas antes obedecesse a um reflexo mentalmente controlado? A partir daqui, refleti eu nas razões que nos levam a suspeitar ou mesmo apontar qualquer traço autobiográfico em textos de ficcionistas. Será que qualquer analogia ou coincidência entre autor e personagem - ou, tão somente, circunstâncias de vida - necessariamente marca tal intenção ou apenas descuidada inconfidência? Antes, não poderá, pelo contrário, um autor procurar desenhar ou escrever o que crê diferente ou mesmo oposto? Ainda que o faça, não enquanto poeta fingidor e pessoano, mas pelo rigor mental que pretende? Dou a palavra, agora, ao início do capítulo 2 do 1º volume de The Dance to the Music of Time (são doze volumes). Vais gostar, traduzo:

 

   Não é fácil - aliás, talvez nem seja desejável - julgar os outros por critérios uniformes.  Um comportamento odioso, mesmo inaceitável, de uma pessoa poderá ser perfeitamente tolerável noutra; princípios de conduta aparentemente indispensáveis serão relaxados na prática - o que até pode ser arriscado - para bem daqueles cuja natureza pareça exigir tais medidas excecionais. Eis uma das dificuldades com que deparamos ao lançar no papel a condição humana, e assim sofremos uma perplexidade que de facto justifica que no drama shakespeariano a comédia alterne com a tragédia: assim, certas personagens e certas ações apenas se podem conceber em termos que só a elas se aplicam, independentemente das consequências. No palco, todavia, as máscaras correspondem a certo tipos de caracteres; na vida de todos os dias, os actores desempenham o seu papel sem contudo se preocuparem com o propósito da cena, nem das palavras proferidas pelo resto da distribuição; daí resulta uma tendência geral a levar tudo para o nível da farsa, mesmo tratando-se de um tema mais sério. Esse menos prezo das unidades não pode ser admitido na vida humana, apesar de existirem momentos em que a observação atenta revela, desta ou daquela maneira, que os diferentes elementos já não são, no fim da peça, tão irreconciliáveis quanto pudéssemos imaginar durante o 1º ato.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira