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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PROCURAR LONGE O QUE ESTÁ PERTO

 

1. Três estórias.

 

1.1. O grande filósofo Martin Buber, no seu livro Der Weg des Menschen (O caminho do Homem), retomou a estória de Eisik filho de Yékel, de Cracóvia.

 

Apesar da sua miséria, nunca deixou de confiar em Deus. Num sonho, foi-lhe ordenado que fosse a Praga “para procurar um tesouro debaixo da ponte que leva ao palácio real”. Quando o sonho se repetiu pela terceira vez, Eisik pôs-se a caminho de Praga, a pé. Mas não podia escavar no lugar indicado, porque a ponte era vigiada dia e noite pelas sentinelas. Voltava todas as manhãs, andando para trás e para a frente o dia todo. Por fim, o capitão da guarda, intrigado, aproximou-se amavelmente para se informar do que se passava, o que quereria Eisik: “tinha perdido alguma coisa ou estava à espera de alguém?” Aí, Eisik, dada a cordialidade do capitão, contou-lhe o seu sonho, e o capitão estoirou às gargalhadas: “E é para satisfazer um sonho que vieste de tão longe, gastando as solas no caminho? Ah! Ah! Meu velho, se fôssemos em sonhos, também eu deveria pôr-me a caminho por causa de um sonho que tive e ir a Cracóvia a casa de um judeu, um tal Eisik filho de Yékel, para procurar um tesouro debaixo do forno! Já viste? Nessa cidade, na qual metade dos judeus se chama Eisik e a outra Yékel, estou mesmo a ver-me a entrar, umas atrás das outras, nas casas todas!”

 

O capitão continuava a rir. Eisik inclinou-se numa saudação, voltou à sua casa em Cracóvia e desenterrou o tesouro que há tanto tempo o aguardava!

 

1.2. Também se conta que uma vez um peixinho muito jovem foi ter com outro peixinho, também jovem, para perguntar-lhe: “Onde é o oceano?”. Ele respondeu-lhe: “Também já fiz a mim mesmo a pergunta, mas não sei responder.” Foi então perguntar a um peixe mais velho, que soberanamente se movia no oceano: “Onde é o oceano? Ninguém me sabe responder.” E o mais velho: “Então tu nasceste no oceano, andas no oceano, vives no oceano e perguntas onde é o oceano?!”

 

1.3. A terceira estória é uma velha lenda hindu, retomada pelo teólogo Jean Vernette.

 

Houve um tempo em que todos os homens eram deuses, mas, tendo abusado da sua divindade, o senhor dos deuses, Brama, decidiu retirar-lhes o poder divino. O problema foi encontrar um lugar onde escondê-lo, de tal modo que fosse impossível o Homem reencontrá-lo. Os deuses menores foram convocados e aconselharam a meter a divindade do Homem na terra. Mas Brama respondeu que o Homem havia de escavar e encontrá-la. Então, lancemos a divindade ao mais profundo dos oceanos, replicaram os deuses. Mas Brama disse: “Não, pois, mais cedo ou mais tarde, o Homem há-de explorar os oceanos até às profundezas, encontrá-la-á e voltará com ela para a terra.” Os deuses menores não encontravam solução, concluindo: “Não sabemos onde escondê-la, já que não parece existir nem na terra nem no mar lugar que o Homem não possa um dia alcançar.” Então, Brama disse: “Eis o que faremos da divindade do Homem: vamos escondê-la no mais profundo dele mesmo, pois será o único lugar onde ele nem sequer pensará em procurar...”

 

E, desde então, como ensina o breve apólogo do Vedanta, o Homem deu a volta à terra, explorou, subiu, mergulhou e escavou... à procura — longe, muito longe dele —, à procura de algo que se encontra nele, no mais íntimo dele...

 

2. Agora, já não é uma estória, mas história. Cito o discurso célebre de São Paulo no Areópago. Em Atenas: “De pé, no meio do Areópago, Paulo disse então: ‘Atenienses, vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens. Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: ‘Ao Deus desconhecido.’ Pois bem! Aquele que venerais sem o conhecer é esse que eu vos anuncio. O Deus que criou o mundo e tudo quanto nele se encontra. Ele, que é o Senhor do Céu e da Terra, não habita em santuários construídos pela mão do Homem nem é servido por mãos humanas, como se precisasse de alguma coisa, Ele, que a todos dá a vida. Que os homens procurem a Deus e se esforcem por encontrá-lo, mesmo tacteando, embora não se encontre longe de cada um de nós. É nEle, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos, como também o disseram alguns dos vossos poetas: ‘Pois nós somos também da sua estirpe’.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 20 OUT 2019