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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Hoje, comecei a reler os doze volumes de A Dance to the Music of Time de Anthony Powell. É obra de ficção, mas alimentada por um olhar atento, minucioso e crítico - e aliás, por tudo isso, amistoso - sobre a sociedade inglesa, de 1914 a 1970. Não sendo, portanto, obra historiográfica, é contudo uma crónica de vidas e comportamentos coevos do autor. Chamemos-lhe registo subjetivo - se assim entenderes, Princesa de mim - apesar de tal apelido me parecer redundante, posto que tudo o que dizemos ou escrevemos, inventado, estudado ou copiado, é, necessariamente, um tantinho subjetivo. Essa obra maior de Powell tem sido diferentemente apreciada pela crítica, como por exemplo nos testemunham, quer os elogios de seu amigo (desde os tempos de Oxford) Evelyn Waugh, quer as grandes reservas de outro amigo, e também celebrado escritor como Waugh, o V.S. Naipaul. Também em França, muitos o comparam a Marcel Proust, talvez porque o compasso do tempo vá marcando labirintos da memória (?). Mas acho-os diferentes. Seja como for, A Dance to the Music of Time tem, pelo menos, o mérito de nos levar a observar de mais perto a high society inglesa, ainda que pelos olhos de um dos seus membros. Nascido em 1905, numa família de tradição militar, e com fortes relações à alta aristocracia, o seu autor frequentou as grandes escolas, como Eton e Oxford, mas ainda recusou a nobilitação que lhe foi proposta por Sua Majestade britânica. Isto é: esteve sempre dentro e fora, como qualquer cavalheiro que preze a própria independência. Assim também outros e outras, chamem-se simplesmente Richard Jones ou, elegantemente, Georgiana Spencer... Ou sejam simples cidadãos, por vezes perdidos nos labirintos mais ou menos enigmáticos do seu tempo e seus modos. Para tua meditação, em pleno século XXI, sobre as contradições e turbulências que surpreendem a circunstância do nosso pensarsentir, e nos confundem, traduzo-te um trecho de S. Zizek em La naturaleza no existe (Mirando al Sesgo, Paidós, Buenos aires, 1991):

 

  Um autêntico ecologista horroriza-se com jardins perfeitos e canteiros limpos. Eis o que realmente mais teme, o seu pior pesadelo: um verde prado agradável, um terreno de que se fez desaparecer o lixo. Creio que uma sociedade ecológica idealmente equilibrada (para usar um termo que os ambientalistas usam) seria um espaço totalmente caótico, de que o lixo não teria sido segregado, mas fosse simplesmente um elemento da paisagem.

  

   À medida que me vou, com o peso da idade, debruçando um pouco mais sobre o mundo terrenal (assim lhe chamaria Gil Vicente), nossa circunstância, e também examinando, mais curiosa e misericordiosamente, as perspetivas, passadas e presentes, pelas quais o fui olhando (e talvez julgando)... vou percebendo melhor algo que frequentemente me demorou na reflexão. Certamente te lembrarás, Princesa de mim, de como, já há muito tempo, me fui tentando a amar a imperfeição. Porque, na verdade, o amor nunca é possível quando apenas idealizamos o objeto dele, esquecendo que este, pessoa ou outra qualquer existência, está, pela própria natureza da sua presente condição, necessariamente inacabada. Só sabendo aceitar tal condição necessária poderemos começar a amar algo como se de nós se tratasse. Porque então entendemos também que somos igualmente imperfeitos, e que o caminho para a perfeição (a que também se chama santidade, bondade, beleza) apenas se percorre em verdade e partilha, pela participação dos seres humanos na obra de Deus. Se olharmos bem para toda a simbologia, e designadamente a cristã medieva, compreenderemos como tudo não é apenas aquilo que vemos, ouvimos ou alcançamos: é isso, sim, certamente e pela medida em que o progresso científico no lo vai descobrindo. Mas é também o seu acabamento, a sua realização plena, a perfeição com que tudo e cada coisa está inscrita no coração de Deus, e nos espera. Até esse dia em que deixaremos de conhecer tudo apenas pelo espelho deste mundo, nesta vida terrenal, mas tudo veremos na sua plenitude. Bem sei que há algo de platónico em mim. Será amor?

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira