Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
20. O ENIGMA IBÉRICO IMPRESSÕES DE UM BRASILEIRO EM PORTUGAL (III)
Apesar de Portugal ser pobre em recursos naturais, é verdade que prevalece entre nós uma mentalidade de ricos, para o que contribuiu o antigo Império, como sucedeu, em graus diferentes, com outras ex-potências coloniais europeias.
À decadência geral da superioridade europeia, agravada pelas crises recentes, generaliza-se a ideia de que o máximo que podemos atingir é manter intocável o nosso modo de vida, defendendo-se a ausência da possibilidade de o melhorar consideravelmente (teoria conservacionista).
É o que aparenta suceder em Portugal e na Europa, mas não no mundo em geral. A este conservacionismo essencialmente europeu, vem-se contrapondo que a ideia de mudança e de conquista do futuro está viva noutras paragens, na China, Índia, Ásia em geral. O que neste momento os europeus tentam conservar, é o que outros tentam alcançar, entre eles o Brasil. Este elemento terá de ser introduzido como um elemento novo a ter presente na análise crítica que aqui fazemos a Wilson Solon, que este não consciencializou em relação à “pátria-mãe”[1].
Também é observável que há em Portugal um discurso catastrofista em dizer mal de nós. Televisões e imprensa em geral deliciam-se em fazer o culto da autovitimização, do pessimismo e do miserabilismo, de que estamos em primeiro lugar em tudo o que é mau e em último em tudo o que é bom, existindo sempre algo a lastimar, sem pensar no mundo que nos rodeia, onde há quem esteja melhor, mas muitos, demasiados, pior. Que podíamos e devíamos estar melhor, ter mais ambição e esperança é verdade, mas daí à eterna insatisfação e lamúria, portadora de um complexo de inferioridade em relação ao estrangeiro que vive melhor, não se justifica.
Se os portugueses em geral são afáveis, há-os acres, mormente algumas elites, que se envergonham do país, aproveitando qualquer oportunidade para o denegrir, gerando uma psicologia derrotista, onde não nos revemos. Portugal renovar-se-á por uma atitude psicológica positiva, reprodutora dos momentos criativos da sua história, abrindo-se e confrontando-se com a multiplicidade, desmentindo a atual ausência do espírito de missão e apelando ao que de melhor nos disseminou pelo mundo.
Já não aceitamos que seja pelo facto de terem um nível de vida superior, que países similares ou mais exíguos tenham mais autoestima e sejam externamente mais conhecidos e considerados, o que peca por uma visão redutora e eurocêntrica, excluindo a maioria dos outros, sendo facilmente observável que Portugal, pela sua história e universalidade, supera muitos deles, para já não falarmos da ficção que é, por exemplo, a Bélgica como nação (de um nível de vida superior ao nosso).
À alegada indiferença de brasileiros, há-os reconhecidos, por paixão uma vez identificadas afinidades e afetos mútuos (como Wilson), sendo motivo de orgulho que um país continental tenha surgido da força, calculismo e diplomacia de um país tido pelo Brasil como minúsculo, a “terrinha”.
A que acresce, de momento, uma vinda elevada de brasileiros para Portugal, incluindo milionários e classe alta, fugindo da crise e da insegurança, tendo o nosso país como interessante, atrativo, pacífico e na moda, com a vantagem de falar um idioma comum.
“I've lived a life that's full I've traveled each and every highway But more, much more than this I did it my way”
Vivi uma vida cheia Viajei por todas as auto-estradas Mas mais, mais do que isso Fi-lo à minha maneira
e omitiu de propósito
And now, the end is near And so i face the final curtain
Agora, que o fim está perto E que enfrento a cortina final
Não o fez por esquecimento - escreveu-se - mas, certamente, para evitar a exposição pública de constrangimentos da plateia de amigos que assistia ao lançamento do seu último livro no Centro Cultural de Belém.
As feiras de outras vaidades deixou pelo caminho na hora certa. A poesia, soube-o a tempo, foi a virtude reencontrada.
É necessário, digo, o respeito pela cedência da força face à doçura. Por aí o reencontro com a delicadeza em que se faz saber a nós mesmos que o domínio do nosso sentir só se faz no sentido íntimo do outro. É o único progresso que nos humaniza porquanto por aí se partilham as solidões e as poeiras da vida.
O amor como todos os sentires, abre fendas, e a ideia de um recomeço implica sempre a sua transformação numa associação, enfim, será quando um género de fraternidade das armas da política, da economia, da justiça, dos estatutos, dos compromissos, da pobreza, fica desamparado pois dele em nós, não se exigiu o suficiente e chegou a nossa partida!
Já não é possível recomeçar-se mesmo que se recusem falhas, fazê-lo teria sido o segredo maior da coragem, a adesão da inteligência à verdade. Diria mesmo que para a abordagem da razão, talvez nem uma alma de criança baste; tudo é embrionário no fim. Sentiremos então que encontraremos tudo pelo deslumbramento das fronteiras que afinal se não traçam?
Se assim for, o amor venceu a morte e esta é doravante oferecida numa participação eterna na vida.
Se assim for, não há justiças compensadoras noutros locais que não aqui. A paz no mundo tem este preço, bem-haja quem teve no coração uma moral que soube o quanto a equidade respeita a dignidade humana e se funda numa sociedade livre.
Manoel de Oliveira a imagem exata por palavras de Agustina: não se começa outra vida. Matamos e morremos, é sempre o mesmo. (…) Para quê tanto sofrimento? (…) Uma família feliz e pronto. Não posso ver esse desespero só por causa de dez mandamentos do tempo dos profetas maníacos.
Não chega a todas as suas consequências quem não se deixou apaixonar ou quem desse sentir esteve ausente. Também não chega a todas as suas consequências quem em si não desenhou esmeradamente o estado de amante. Nestas duas situações há desespero que em cada uma faz estação própria e em cada uma o amor não chega para assumir todas as consequências. Resta tantas vezes um cerimonial sem grande heroicidade. Resta uma espécie de discurso e gesto em volta do amor como um colar de pérolas ágil no segurar-se angélico em volta da garganta. O que reina são os mistérios e as propostas do corpo para possuir o que se ama. O entendimento, esse, tem a poesia onde se deita e dela faz pele e afinal onde busca também os diálogos que existem de coração a coração em palavras que muito assombram o que está seguro e não acontece, ou, o que acontece, pois que a segurança pode não ter sido fruto nem semente para nada e de repente abre-se larga qual fruteira sabiamente ideia, prata e cristal proposta num centro de mesa onde tudo se permite.
E o filme PARTY de Manoel de Oliveira pelo livro de 90 páginas PARTY Garden-Party dos Açores da extraordinária Agustina Bessa-Luís ou assim se não entendesse S. Miguel
Miguel
Leonor está encantadora!
Rogério
(…) Por falar nisso: a sua saia é indecente, sabia?
Leonor
(…) O primeiro que a achar indecente vai dizer-me que estou encantadora.
Rogério
Querida amiga!
Irene
(…) As mulheres eram enfadonhas, agora são de uma vulgaridade horrível. (…) Uma mulher encantadora está perto de ser recordada pelas fotografias de férias. Para começar, você faz dez anos de casada (…) É uma idade rupestre
Leonor
Está gravada a cem metros de profundidade.
Miguel
Como faz para respirar?
Leonor
Não sei. Essas coisas não se chegam a saber.
Alguém
Em S. Miguel existem armários fechados há seculos pela força da insularidade. Guardam neles coisas impalpáveis que sempre forçaram as portas desses armários, mas nunca o suficiente para se exporem. Sabiam que bastava ser percetível a força, e que as portas, se se abrissem expunham ao lado dos beijos apaixonados, os mortos em jeito de bolas de naftalina e haveria sempre um cabide vazio. Entendes Mafalda? Um cabide vazio. Aquele das camisas de noite de tão belas não estreadas: aquele dos jardineiros que labutam sementes transparentes; aquele que apanhou palavras de passagem e que passaram a ter o destino de serem versos cristalinos e à espreita; aquele que de tão vazio se chamava oportunidade disponível que se não conforma; aquele que te pica a mão para que num apesar de tudo saibas que a seiva é ascendente.
Irene
As viagens cortam o apetite. São como o tabaco. (…) Quilómetros de gares e de escadas rolantes. Bagagens, horários (…) a que nos leva tudo isto?
Miguel
É simples potencialidade isso de viajar. É como o amor.
Leonor
Não fale nessas coisas. Estamos num terreno vulcânico, além disso…
Miguel
Os segredos são tão subtis, que podemos falar deles sem os revelar.
Leonor
Acredita que já não sabem tudo sobre nós muito melhor do que nós?
Irene
(…) o carro é grande, sempre cabe mais um. E na cama também.
Miguel
Está a querer fazer do amor uma ligação. Eu tenho uma ligação com esta senhora. Consigo é diferente.
Alguém
Mafalda que por toda a parte será finitude mesmo que digam que isto ou aquilo é teu, mesmo que isto ou aquilo envolva a lembrança das tuas ligações influenciadas por tudo quanto te inovava. Acho estranho contar-te assim uma versão do filme PARTY. Não sei se te disse que até já pensei noutros tempos vir viver para os Açores? Ah! Disse? Pois antes reli sempre este livro da Augustina e acreditei numa próxima ocasião, logo após a prova do deitar. Esta prova foi sempre em mim uma visita à cave da minha vida, da vida que também te servi pois outra me era estranha. Mafalda sei que entendes que as distancias são iguais quando da lareira a madeira cheira a verde. Vá deita aqui a cabeça no meu colo. Vá tapa-te que a manta é terna, o Pico aguarda-nos e nele continuaremos o filme PARTY numa quietude Mafalda, numa quietude tão funda que o tempo já não me perguntará «quanto tempo ainda?». E depois do teu sono te direi como me sinto livre como as aves prontas a serem abatidas. Dir-te-ei também alguma coisa sobre o meu perder-me com determinação, com a minha consequência, e tu, encantadora, ouvirás que o és pela primavera e pelo outono do amor de uma qualquer rupestre idade que ele tenha. Vá tenta compreender e verás o que acontece. Ama o teu homem e arranca-o desta ilha, leva-o, manda-o para Nova Iorque, sei lá!
A pintura de Rose Wylie - uma maneira particular de ver.
‘The way we see things is affected by what we know or what we believe (...) We only see what you look at. To look is an act of choice.’, John Berger
Para a pintora Rose Wylie (1934), olhar é sempre um ato extraordinário que transforma e que interrompe o mundo, porque aquilo que é visível está sempre em contacto com o invisível - sentimentos, pensamentos, intuições e memórias.
A pintura de Wylie expõe uma maneira específica de ver o mundo e por isso resulta numa forma muito própria de pintar.
‘I like to present to the world a kind of painting which is considered not totally acceptable painting.’, Rose Wylie
Em resposta a momentos visuais, Wylie cria uma pintura táctil, sintética e informada.
Táctil porque Wylie pinta de acordo com um processo físico que começa na execução de desenhos (muitos desenhos a caneta e a lápis). Eventualmente, de um dos desenhos gera-se uma tela. A tela é cortada e pintada plana (no chão ou na parede), ainda sem estar montada na grade. Os desenhos são muito espessos, porque os papéis colam-se sucessivamente uns em cima dos outros, para emendar ou para tornar mais precisa a informação que surge acerca do tema. Durante o processo, apesar de tudo estar planeado, há espaço para a interpretação e reinterpretação do tema, segundas intenções e correções, novos desenhos e reordenamentos e por isso a tela é feita de emendas, improvisos, colagens sucessivas e a tinta é espessa e a pincelada é imprecisa.
‘I don’t want to be told how to draw right. The final drawing always comes from the memory of having drawed many times before. I do both, looking at it and from the memory of it. I like awkward, unfamiliar. I don’t like knowledge shouting at you.’, Rose Wylie
Rose Wylie pinta as especificidades do mundo real - que é visual - e sempre que o faz, utiliza tudo aquilo que é possível utilizar e que está ao seu dispôr. E tenta propor uma pintura síntética. A pintura de Wylie é uma ligação ao que nos rodeia, pelo seu olhar. Responde a um processo de transformação (não é uma cópia e não é uma análise) do objeto a pintar - através da memória ou da observação direta.
A sua pintura responde sempre a um processo de filtragem, de personalidade, de redução, de clarificação e de adição. É um confronto entre o sujeito, que observa e que se lembra, e o objeto. É um desejo de comunicar da forma mais direta e imaginativa. Tenta referir-se ao objeto original sempre da forma mais clara, verdadeira, justa e informada, porém livre de qualquer representação convencional. É um processo de correção e de aproximação fiel tanto ao objeto como aos tantos desenhos já feitos desse mesmo objeto.
Divergentes temas podem ser tratados, mas a maneira de ver única de Wylie mantém-se.
Rose Wylie acredita que há um fator fundamental e que determina o curso de qualquer obra, que é aquilo que se é - uma mistura de identidade, de lembranças e de experiências - e se se tenta ser o mais fiel a isso encontra-se uma linguagem muito própria, uma maneira muito particular e intransmissível de pintar. A pintura reflete sempre uma essência, é uma fusão consigo próprio e apresenta muitas formas singulares e irrepetíveis.
‘I draw what I like. It is the visual impact on me that I draw - and when you work with memory, you work with your brain. You look at your mind, which is much fainter than reality - that’s what imagination and transformation is about.’, Rose Wylie
Primeiramente, existe um impacto visual, um maravilhamento. Wylie tenta ser o mais fiel a esse impacto através de listas, através de desenhos sucessivos, e corretivos. E assim que se recorre à memória, ao desenhar, olha-se para a imagem no cérebro - incompleta e baça. Ao trabalhar assim é possível dar espaço à interpretação individual, à construção, à filtragem, à impressão e à projeção de si próprio.
‘Art may have an agenda, a contemporary agenda, which could be political or anything in order to have significance because that’s what’s going on, but I’m not sure whether it’s necessary to have that. And people straight emotional response to the work without any knowledge, is what I would like, because I think that’s what painting is about.’, Rose Wylie
Rose Wylie acredita que o decalque da lembrança mantém aquilo que interessa desde início - a descrição pode não ser totalmente aturada em relação ao tema mas a pintura deve ser aturada e fiel à memória desse tema. Sem ser literal, o trabalho de Wylie revela o específico e o particular. A tela é um todo que nunca está completo - essa vontade de completude e de fidelidade a uma memória visual pode estender-se por uma sucessão de mais telas e desenhos que vão adicionando ou filtrando a informação. As pinturas são planas - talvez a profundidade seja dada pela alteração dramática de dimensão. Dentro da mesma composição, aparecem por vezes corpos e cabeças enormes em relação a outras figuras - planos abrem-se e fecham-se sucessivamente.
‘You paint from the moment, from the thing, from what you are on that moment.’, Rose Wylie
Rose Wylie deixa que o tema se revele por si só e pode surgir no dia-a-dia, em artigos de jornais, revistas, programas de televisão, filmes ou determinados factos da história. A sua pintura é informada e as suas referências são improváveis, que vão desde a pintura renascentista, a Giovanni di Paolo, a Matisse, a Picasso, até à pintura votiva mexicana ou livros de colorir para crianças.
‘I do like to work with film stars and footballers because I think there’s a shared interest. It’s democratizing the whole thing. It is just work and we can all engage with it.’, Rose Wylie
A pintura de Rose Wylie tem o intuito de ser um meio de contacto, um meio de comunicação ativo. Contém informação conhecida e que pode pode ser partilhada com toda a gente - bico do fogão, uma boca a comer uma bolacha Leibniz, um olho a pôr rímel, Rooney a chutar a bola, Serena Williams a jogar ténis, Kate Moss entre luzes, Nicole Kidman com uma saia vermelha, etc. Wylie recorre frequentemente ao uso da escrita que dá informação particular adicional, local, nome do filme, actores, descrição da cena, descrição do tema, descrição da personagem, intensificação de sons e de barulhos. São pintadas figuras que espelham tanto o tempo do passado como o tempo do presente, figuras etéreas ou artificiais, heróis, lendas, mitos, santos, mártires, reis, celebridades, galinhas, insetos, coelhos, gatos, cães, patos a fazer ‘quack, quack’, aviões carregados com bombas.
‘Matisse once said ‘Go for it, try to get it, as it is, out of your head and it won’t be right anyway but it’s fine.’, R. Wylie
Por isso, na pintura de Rose Wylie, existe a constante vontade em mostrar e tornar evidente da forma mais essencial e económica, a transformação pessoal a que o tema foi sujeito. A pintura torna-se num diálogo permanente, memorável e fluído. É uma representação clara, que aceita opostos e mudanças de escala. É um espaço onde as figuras aparecem recortas e isoladas e as cores são vivas. Funde-se, num só plano, o fragmento e o todo, o planeado e o acaso, a realidade e a imaginação, o geral e o particular.
‘But one of the things that art does is to unify everybody (...) It crosses the whole boundaries of a nation. Certainly it is good for the development of the person, it can give you a reason, in fact a purpose for life.’, Rose Wylie
1. Eu sei que o tema é hoje muito sensível e complexo. Já aqui escrevi várias vezes sobre ele, mas volto a ele, sobretudo porque penso que é fundamental ter conceitos claros, contra a confusão que quer impor-se neste e noutros domínios. Dentro da confusão, é fácil perder-se quanto ao essencial.
Dou exemplos de confusionismo. Contou-me uma pessoa amiga que, durante uma volta a pé, ouviu uma senhora aflita a chamar: “Anda à mãe, anda à mãe.” Até se afligiu, pensando que uma criança se tinha perdido. Afinal, era um cãozinho. Outra pessoa contou-me que viu na televisão uma senhora grávida num supermercado com o cãozito num carrinho e, à pergunta para quando o nascimento do bebé, disse a data prevista na qual o cão iria ter um irmão. Segundo o Expresso, André Silva declarou: “Há mais características humanas num chimpanzé ou num cão do que numa pessoa em coma”. E já se pede um SNS para cães e gatos. E há jardins públicos infrequentáveis por crianças, tanta é a porcaria largada por cães, com os donos regalados a observar o alívio dos bichos. E tem havido ataques graves de cães e perturbações sem conta por outros animais que destroem colheitas inteiras, mas nada acontece...
A afirmação acima está na continuidade da de Peter Singer, professor da Universidade de Princeton, que escreveu em Ética Prática: “Devemos rejeitar a doutrina que coloca a vida dos membros da nossa espécie acima da vida dos membros de outras espécies. Alguns membros de outras espécies são pessoas; alguns membros da nossa não o são. De modo que matar um chimpanzé, por exemplo, é pior do que matar um ser humano que, devido a uma deficiência mental congénita, não é capaz nem pode vir a ser pessoa.” Quem faz estas afirmações fá-lo baseado em que a desigualdade de tratamento que damos às pessoas humanas e aos outros animais deriva do chamado especismo, que consiste na preferência que damos aos seres humanos sem qualquer outra razão que não a pertença a uma espécie, no caso, a espécie humana.
2. Oponho-me veementemente a esta tese, que é a tese animalista, uma das teses mais deletérias e ameaçadoras contra o humanismo. E estou à-vontade, por várias razões. Na universidade, sempre falei aos estudantes da Animal Liberation (Libertação animal), de Peter Singer, e há muito que defendi que se deveria encontrar, do ponto de vista jurídico, uma denominação para os animais, que não são coisas. Aliás, isso encontra-se também num livro que coordenei juntamente com Alexandre Manuel, Desafios à Igreja de Bento XVI, no qual o constitucionalista J. Gomes Canotilho perguntava se precisamente um desses desafios não era desenvolver uma ecologia em que “as diferenças entre ‘algo e alguém’ não remetam para o domínio das coisas a problemática humana dos outros seres vivos da Terra.” E sempre fui a favor do valor da vida, do cuidado a dar à Criação e de que aos animais é devido tratamento adequado, recusando sofrimentos cruéis e inúteis.
Para mim, de qualquer forma, há uma distinção entre a pessoa humana e os outros animais — e quando se fala em animais, é preciso distinguir entre animais e animais: não é a mesma coisa falar de cães e gatos e falar de pulgas, piolhos, carraças, percevejos, vespa asiática... e, por outros motivos, de leões, tigres, crocodilos, hipopótamos...—, distinção que é não só de grau ou quantitativa, mas essencial, qualitativa, ontológica. Bastará estar atento às diferenças, de que dou apenas exemplos. Neste tema como noutros, o problema é o fundamentalismo e a falta de racionalidade.
Como escreveu Edgar Morin, “embora muito próximo dos chamados chimpanzés e gorilas, tendo 98% de genes idênticos, o ser humano traz uma novidade à animalidade”. Há, apesar de tudo, entre etólogos e antropólogos, convergência bastante no reconhecimento de que entre o animal e o homem se deu um salto qualitativo essencial. Esse salto manifesta-se, em termos gerais, na autoconsciência (consciência de que se é consciente), na autoposse de si mesmo como único e centro de identidade, na linguagem simbólica e reflexiva, na capacidade de abstrair e formar conceitos, na transcendência em relação ao espaço e ao tempo, na criação e assunção de valores éticos e estéticos, no pré-saber da morte própria vinculada às crenças religiosas e à angústia frente ao nada, na pergunta pelo ser e pelo seu ser...
O homem não se encontra na simples continuidade da vida no sentido biológico. Como escreveu Max Scheler, o homem é “o asceta da vida”, pois é capaz de dizer não aos impulsos instintivos, vendo aí o célebre biólogo F. J. Ayala “a base biológica da conduta moral da espécie humana, nota essencialmente específica dela”. Porque é capaz de renunciar, abster-se, deliberar, optar, o homem é um animal livre e moral.
Os outros animais também comunicam, mas o homem tem linguagem duplamente articulada. Aristóteles viu bem, ao definir o homem como animal que tem lógos (razão e linguagem), e, assim, político: “Só o homem, entre os animais, possui fala. A voz é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente bem como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos frente aos outros animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais apreciações. A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a pólis.”
OPensador, de Rodin, diz-nos bem o que é o ensimesmamento: entrada dentro de si próprio, descida à sua intimidade única, à subjectividade pessoal: o ser humano vem a si mesmo como único, tem a experiência de eu enquanto própria e exclusiva, face ao outro, que é outro eu, outro como eu, mas simultaneamente um eu que não sou eu: um eu outro impenetrável. Disse o famoso psicanalista Jacques Lacan: “Possuir um Eu na sua representação: este poder eleva o homem infinitamente acima de todos os outros seres vivos sobre a Terra. Por isso, é uma pessoa”. Sabe que sabe, é autoconsciente, consciente de ser consciente.
O homem é um ser inquieto, nunca satisfeito (satis-factus: feito suficientemente), acabado. Por isso, é o ser do transcendimento, como escreveu Pascal, ao dizer que o homem mora algures entre “le néant et l’infini” (o nada e o infinito), aberto ao Infinito, à Transcendência. É o ser da pergunta e, de pergunta em pergunta, chega a perguntar ao infinito pelo Infinito, isto é, por Deus. Neste sentido, é constitutivamente metafísico e religioso. E tem dignidade, é fim e não meio, como defendeu Immanuel Kant, pois há nele algo de infinito, precisamente esta sua capacidade e necessidade de perguntar pelo Infinito, pelo Fundamento e pelo Sentido último.
E há o riso e o sorriso, a contemplação e a criação de beleza (quando é que um animal vai compor uma sinfonia?), o amor de autodoação, erguer edifícios jurídicos com o estabelecimento da lei e da igualdade de todos perante a lei, a sepultura, a esperança...
E, no final de tudo, se estas notas características e capacidades específicas e outras não convencessem, há uma que é definitiva: nesta questão de saber se a distinção entre os humanos e os outros animais é meramente de grau ou, pelo contrário, qualitativa, essencial, quem é convocado é o homem. É ele e só ele que debate. Alguém se lembra de convocar uma assembleia de outros animais para dirimir a questão?
É preciso tomar consciência do perigo da indiferenciação e da ameaça da animalização da sociedade.
3. Há uma pergunta inevitável. E os membros da nossa espécie que não podem de facto exercer essas capacidades, como os deficientes mentais profundos? Estou com a filósofa Adela Cortina: “Isso não os torna membros de outras espécies, mas pessoas que é preciso ajudar para poderem viver ao máximo essas capacidades, o que só conseguirão numa comunidade humana que cuide deles e os promova na medida do possível.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 29 SET 2019
Dedicamos hoje sentidamente o texto publicado na quinta-feira no “Público” sobre as Jornadas Europeias do Património a dois amigos que nos deixaram e que não esquecemos:
Isabel Wolffensperger, grande amiga do CNC, irmã da nossa querida Helena Vaz da Silva, que não podemos esquecer na sua generosidade e entrega às nossas causas comuns;
E Manuel Luís Carvalho Costa, que desde muito jovem acompanhou os combates da primeira geração do Centro Nacional de Cultura, dos tempos da “Cidade Nova”, e cuja coragem ficou bem evidente até aos últimos dias.
A.M.
«“Artes, Património, Lazer” é o tema das Jornadas Europeias do Património deste ano. Trata-se de pôr a tónica no património cultural como realidade complexa e viva, que tem a ver com a cidadania e com a vida das pessoas, que não podem eximir-se à responsabilidade de cuidar do que recebemos das gerações que nos antecederam. E se tanto se fala de sustentabilidade e da prioridade à defesa do meio ambiente, temos de dar especial atenção ao cuidar da memória e do património histórico, não como realidades do passado, mas como deveres do presente. A 11 de setembro, na Fundação Calouste Gulbenkian em Paris, numa iniciativa com o Instituto Jacques Delors / Notre Europe, foi possível refletirmos sobre a importância do Património Cultural, com Serge Lasvignes (presidente do Centro Pompidou), Marie Gravari-Barbas (da Universidade de Paris-I, Panthéon, Sorbonne), Astrid Brandt-Grau (diretora do Ministério da Cultura de França), David Madec (administrador do Panthéon de Paris) e Sandro Gozi, (antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus de Itália), com a moderação do jornalista François Beaudonnet. O tema foi “Património Europeu – a Preservar ou a Explorar?”, e muito mais do que uma reflexão técnica, tivemos um debate político europeu. De facto, sem compreensão dos valores culturais, limitamo-nos a cair em simplificações perigosas. O património cultural não é um tema do passado, envolve uma dinâmica e a compreensão da complexidade. Não podemos, assim, falar de uma identidade europeia uniformizadora. Temos de tratar de diferenças e complementaridades e de uma hierarquia de princípios e valores. Património cultural envolve o que é material e construído, o que é imaterial e tem a ver com tradições e vivências, o que diz respeito à natureza e também às paisagens (lembremo-nos da qualidade nas cidades ou dos jardins históricos), bem como o que se reporta às ciências e tecnologias e à emergência do digital, além da importância da criação contemporânea. Não há debate político europeu sem preservação da memória.
A perigosa fragmentação europeia, a que assistimos, resulta da incompreensão em relação à memória, à história política e à sociedade. O medo do outro e do diferente, a ilusão económica, o egoísmo, a prevalência do curto prazo, a desatenção relativamente às potencialidades da sociedade e da cidadania (designadamente ao papel das fundações e de um conceito alargado e justo de filantropia) encontram raízes fundas na desvalorização do património e da memória. Num importante texto de Thierry Chopin, publicado por Notre Europe sobre “As Artes, o Espírito Europeu e a Liberdade”, é posta a tónica na importância de pensar as identidades europeias como realidades abertas, centradas na liberdade e numa cultura crítica e de paz. Como entre nós tem sido salientado por Emílio Rui Vilar, temos de voltar a olhar a alegoria do bom governo de Lorenzetti no Palazzo Pubblico de Siena, na qual a Paz, a Concórdia e a Segurança, se opõem à Guerra, à Divisão e ao Medo. Os ideais de cidadania e de autonomia republicana obrigam a que haja condições na vida das instituições e na mediação no seio dos espaços públicos, para que a memória histórica seja um fator de enriquecimento cívico, em termos de liberdade, de sentido critico, de participação, de representação e de responsabilidade dos cidadãos. O Bom Governo favorece o bem comum como bem de todos e garantia de liberdade dos cidadãos. Eis por que razão a defesa e salvaguarda do património cultural e dos direitos e deveres que lhe são inerentes não é um tema do passado, mas sim um caminho de defesa dos valores comuns através do reconhecimento da memória, como fator dinâmico e criador. Liberdade, individualidade e sociedade articulam-se com as legitimidades do voto e do exercício, em que a justiça social seja marca de humanidade e respeito mútuo. Preservar ou Explorar? Do que se trata é de criar e considerar o que tem valor, preservando-o no sentido da proteção, explorando-o na aceção da criação de valor ao serviço de todos. «Artes, Património, Lazer» significa um apelo a que a cultura, como a educação e a ciência, sejam fatores de enriquecimento da democracia – juntando a criação artística e a importância das chamadas “artes liberais”, como reconhecimento da experiência e da aprendizagem, como deveres de proteção da herança e da memória e como consideração do lazer, enquanto disponibilidade de espírito e de favorecimento da liberdade».