Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

JORGE DE SENA NA EXPOSIÇÃO DA BNP

Jorge de Sena - Epígrafe para a arte de roubar.jp

 

Encerramos, pelo menos para já, estas evocações da vida e obra de Jorge de Sena, para referir a exposição muito recentemente inaugurada na Biblioteca Nacional de Portugal. Intitulada “Jorge de Sena ­- As Máscaras do Poder”, constitui uma muito interessante mostra evocativa do escritor, que completa um século sobre o nascimento (1919), como aqui referimos e analisamos nos artigos anteriores.

 

Na documentação distribuída destaca-se um texto da autoria de Isabel de Sena, o qual contém como que uma síntese relevante da vida e obra do escritor homenageado.

 

No que respeita ao teatro, Isabel de Sena evoca a vasta obra e refere a visão erudita contida em numerosos textos e em especial no livro intitulado “Do Teatro em Portugal”. Cita “O Indesejado”, “Mater Imperialis” e “Amparo de Mãe”.

 

E nesse aspeto, destacamos, especificamente, na exposição, cadernos contendo textos e referências tanto a obras diversas de Sena como a peças e mais referências de outros escritores, bem como a espetáculos e produções diversas.

 

Destacamos designadamente manuscritos, cadernos contendo textos dramatúrgicos e/ou de analise, estratos de diários, traduções e sucessivas edições.

 

Isto, além de cadernos com diversas peças de teatro, correspondência que também as refere, além de livros sobre teatro, sobre cinema e especificamente sobre espetáculos.

 

Nesse aspeto, Isabel de Sena evoca a recolha de textos “Sobre Cinema”, assim expressamente intitulada.

 

Mas a exposição comporta ainda numerosos documentos e correspondência que indica títulos ou esboços de expressão teatral, incluindo os que não foram produzidos.

 

E no que respeita designadamente à correspondência, encontramos cartas enviadas e/ou recebidas de nomes referenciais da cultura portuguesa. Citamos nesse aspeto as cartas de e para Sophia de Mello Breyner Andresen e Francisco Sousa Tavares.

 

E registe-se ainda que na sessão de inauguração na BNP foram distribuídas reproduções de dois poemas manuscritos. Citamos então a denominada “Epígrafe para a Arte de Furtar”:

 

“Roubaram-se Deus/ outros o Diabo/ - quem cantarei?
Roubaram-me a Pátria /a humanidade /outros ma roubaram/ -quem cantarei?
Sempre há quem roube/ quem eu deseje;/ E de mim mesmo/ todos me roubaram/ - quem cantarei?
Roubaram-me a voz/ quando me calo,/ ou o silêncio/ mesmo se falo. /- Aqui del-Rei!!”

 

E mais: foi também distribuída a reprodução de uma composição musical de Jorge de Sena sobre poema de Fernando Pessoa “Sobre Velha Música” datado de 1938-1939.

 

O que documenta o mais amplo criacionismo artístico do grande escritor!...

 

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS LUSO-TROPICAIS

Rio de Janeiro.jpg

 

7. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO
CRÍTICAS E MÉRITOS (IV)

 

Importa analisar uma das acusações que com maior frequência é dirigida a Gilberto Freyre: a de ter concebido uma teoria neocolonialista.   

 

Em textos anteriores destas Crónicas Luso-Tropicais (n.ºs 4 e 5), está expressa essa opinião e o seu raciocínio. 

 

Iremos agora, por confronto, usar o exercício do contraditório, deixando ao critério do leitor a sua opção.

 

Em Junho de 1962, numa conferência do Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, Freyre demarca-se da posição do governo português, quanto à questão colonial, decorrido um ano após o início da guerra em Angola. Diz que o seu conceito de comunidade luso-tropical não é de natureza política mas sim sociológica, aberto a integrar no seu interior várias presenças nacionais, mostrando compreensão pelas aspirações de independência dos povos sob soberania portuguesa. Fala em comunidade luso-tropical, por confronto com a comunidade luso-brasileira defendida por outros, para nela englobar outras presenças nacionais, para além das duas existentes (Portugal e Brasil). Fala em pátrias independentes numa comunidade interdependente.   

 

O presidente do Senegal, Léopold Senghor, insuspeito humanista africano, reconheceu os esforços Gilbertianos no sentido de ajudar os movimentos nacionalistas africanos das ex-colónias portuguesas na sua luta pela libertação nacional, não tendo o luso-tropicalismo contrário ao desejo de independência das colónias portuguesas de África.

 

Também os argumentos que GF usava contra o eurocentrismo e a competição norte-sul, são usados para o qualificar como paladino de uma perspetiva terceiro-mundista. As suas advertências para os perigos representados com os conflitos com culturas tecnicamente superiores, desde a ameaça proveniente do nazismo e fascismo, até ao capitalismo norte-americano e outros “novos imperialismos”, são exemplos tidos, para os seus defensores, como contrários ao desejo de qualquer neocolonialismo. 

 

Mesmo no seio do mundo que o português criou, argumenta-se que GF censura o português quando representante do papel de opressor. 

 

Para vários investigadores foi bastante frontal e firme na denúncia que fez em relação a vários aspetos por ele observados na condução da política colonial portuguesa centrada e dirigida da então metrópole. É conhecida a crítica contundente em que é destinatária a Companhia de Diamantes de Angola, denunciando os processos incivilizados que a concessionária de extração de diamantes impunha ao pessoal de cor ao seu serviço.

 

No seu livro “Aventura e Rotina”, acusa o dirigente da Companhia, Ernesto Vilhena, de dirigir “um sistema que em algumas das suas raízes e em várias das suas projeções não é sociologicamente português, prejudicado, como se acha, por um racismo que é de origem belga e por um excesso de autoritarismo que é também exótico em sua origem e em seus métodos” (Univer Cidade Editora, edição brasileira, p. 379).   

 

E acrescenta:    

 

“A tendência da Companhia dos Diamantes - e das companhias e empresas do seu tipo que operam na África portuguesa do mesmo modo que nas outras Africas - talvez seja para reduzir as culturas indígenas a puro material de museu. Os indígenas vivos interessam-nos quase exclusivamente como elementos de trabalho, tanto melhores quanto mais desenraizados de suas culturas maternas e mecanizados em técnicos, operários substitutos de animais de carga. A proletarização de tais indígenas, sua segregação em bairros para “trabalhadores indígenas” dentro de comunidades organizadas em pura função desta ou daquela atividade económica, constitui um dos maiores perigos para a gente africana do ponto de vista social e, ao mesmo tempo, cultural” (p. 384).

 

Embora acreditando na expansão de um método português baseado na convivência de relações pacíficas entre nações europeias e não europeias, não deixava de censurar e lamentar que isso não acontecesse muito na prática, dado que muitos portugueses nas províncias africanas, à época, renegaram as melhores tradições lusitanas, imitando condutas e preconceitos de alemães, belgas, ingleses e sul-africanos.   

 

Não obstante todas as denúncias e reservas de Freyre relativamente à censura do Estado Novo e às práticas racistas da Companhia de Diamantes angolana, os seus críticos, mesmo reconhecendo-as, não as têm como suficientes para questionar a sua colagem ao governo metropolitano sediado em Lisboa.

 

Mesmo que com sérias reservas, quiçá ambíguas, transcrevem-se estas palavras de Jacinta Baptista, em História de Portugal, O estado Novo (III), voluma XVII, p. 62/3:  

 

“É certo que Freyre visita Portugal e as suas principais colónias em 1951, quando António Ferro já não é Secretário da Propaganda e se encontra a prestar serviço diplomático na Suíça. Mas não é menos certo que o primeiro convite (recusado, como o segundo) para o sociólogo se deslocar a terras portuguesas partiu do entrevistador de Salazar e foi semente que, a seu tempo, acabou por germinar. O escritor brasileiro, que nada tinha de tolo, receara que o convite de Ferro “fosse um tanto comprometedor, no sentido em que são, de ordinário, os convites dos Secretariados Nacionais de Informação, mesmo quando deixam de se intitular de Propaganda. E acabou por aceitar terceiro convite, este dimanado do Ministério do Ultramar - tão apolítico em Portugal como é o Itamarati no Brasil”.

 

Finaliza, nos seguintes termos:     

 

“Embora redundando num convite prestado à situação política então vigente em Portugal, não o terá sido inteiramente, na maneira em que, por exemplo, denunciou o regime concentracionário observado na Lunda (Angola) e os incivilizados processos que a companhia concessionária da extração dos diamantes impunha ao pessoal de cor ao seu serviço. E foi tão frontal na denúncia que o comandante Ernesto Vilhena, todo-poderoso administrador da Diamang, se viu constrangido a defender a companhia diamantífera em páginas cerradas de argumentação compradas como espaço publicitário do Diário de Notícias”.

 

29.11.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA


Título original: Sorry we missed you, de Ken Loach

 

De olhos vazos e exaustos Rick e a mulher enfrentam dias cruéis sabendo que vivem uma vida a caminho do fuzilamento definitivo seu, e da sua família.

 

Após a crise financeira de 2008 o incêndio da não vida permanece-lhes no dia-a-dia como uma mandíbula que os morde sobretudo quando já só as lágrimas e o desespero lhes resta.

 

A consciência do que o mundo lhes dá para lutarem, parece-lhes agora mais perfurante da alma, da justiça e do amor que afinal acreditaram um dia poderem vir a viver serenamente, mesmo que à custa de se encontrarem permanentemente numa luta à beira do inferno.

 

A excelência deste filme de Ken Loach deixa-nos numa combustão interior por aquilo que afinal nunca deixámos florescer, nem antes nem depois da crise de 2008: o direito à vida digna.

 

Qualquer tipo de violência tornou-se culto desenjaulado sob os nossos olhos, os da dita compaixão possível, mas afinal da indiferença e da distância face ao sofrimento.

 

José Mário Branco tão corajosamente cantava que veio de longe de muito longe e muito passou para aqui chegar, e afinal sabia que nunca encontraria o que sonhara para o aqui e pelo qual tanto lutara. Tal como todos os elementos do programa “Governo Sombra”, a minha gratidão ao José Mário Branco é imensa por todo o prumo com que viveu a vida, não obstante, nunca me ter sentido ideologicamente par, mas sim, comoventemente, sua admiradora.

 

A verdade é que este filme me fez recordar o quanto a luta de Mário Branco foi também para que se habitasse um dia um mundo que fosse início de uma harmonia. Ricky e a mulher, descrentes afinal desta esperança de harmonia, amavam-se e amavam os filhos, e, na qualidade de cuidadora a mulher de Ricky, ainda conseguia encontrar no sofrimento alheio, a possibilidade desse sofrimento a compreender e a mimar, enquanto ele lhe penteava os cabelos e as lágrimas lhe permitiam descansar os minutos horríveis dos dias de trabalho que suportava. Ficava ela grata ao trabalho desesperante que fazia, não apenas pela possibilidade de o desempenhar bem, mas porque esse trabalho a compensava do pior que nela era a ebulição de suportar raiva e ternura, tentando sempre que esta última fosse a vencedora.

 

A cada dia restavam as cinzas do dia anterior e arrancar a partir daí para outra e mais outra cratera de dor era o injustíssimo destino a aceitar.

 

E tudo é verdade neste filme. A proposta das sociedades de hoje é para que cada um se despeça de uma parte de si e a mecanize irrecuperavelmente até que perder o seu todo seja o desígnio único.

 

As políticas oxidadas candidatam-se ao voto na fúria do poder, e, enquanto este, e a privação, ditam quem é quem, uma teia de sangue oculto acossa e esquece que até os corações se tornaram temíveis, e íntegro, mas desfeito, Ricky, a mulher e os filhos já só cartilagem e não osso, podem perder ainda o telhado tenebroso que os cobre.

 

É então esta a última morada que se oferece. 

 

Teresa Bracinha Vieira

PROFUNDÍSSIMA E REVERENDÍSSIMA REFORMA

 

1. Participaram dois cardeais, duas dezenas de bispos, muitos fiéis, entre os quais o Presidente da República, na Sé de Braga completamente cheia. Foi no passado dia 10 deste mês de Novembro, na canonização de Frei Bartolomeu dos Mártires, antigo arcebispo de Braga. Marcelo Rebelo de Sousa disse o essencial: “Foi um bispo reformador, pobre e amigo dos pobres, pastor, intelectual e, dos pontos de vista teológico e sociológico, um homem muito à frente do seu tempo.”

 

Nesse mesmo dia, o Papa Francisco, na recitação do Angelus, disse dele que foi “um grande evangelizador e pastor do seu povo”. Pessoalmente, não duvido de que, se vivesse hoje, Frei Bartolomeu dos Mártires seria um apoiante firme de Francisco e das suas reformas, de que foi aliás precursor. Se vivesse hoje, aplaudiria, com todo o coração e inteligência, Francisco, pois foi com um Papa como ele que terá sonhado. Não se pode esquecer que, no encerramento do Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI ofereceu a cada um dos bispos uma das suas obras, o célebre Estímulo dos Pastores. Na sua essência, uma canonização só pode ter por finalidade apresentar um modelo de vida a seguir, e não há dúvida de que Frei Bartolomeu dos Mártires é um exemplo vivo de pastor para todos os pastores. Ele foi, pela sua vida e pela sua palavra, com desassombro e frontalidade, uma das figuras mais eminentes para a reforma de uma Igreja que, no século XVI, atravessava uma profundíssima crise. Não pregou só pela palavra, pregava pelo exemplo. Quando confrades dominicanos e outros o tentavam demover dos rigores que a si próprio se impunha, respondia: “Permanecerei contumaz numa única coisa: conservar-me-ei afastadíssimo de todo o fausto e esplendor da casa e da família. Hei-de manter como bispo a mesma humildade e cuidado do meu corpo, na mesa e coisas semelhantes, que observei como frade. Nenhuma força me desviará deste propósito.”

 

2. Nasceu em Lisboa, na freguesia dos Mártires, onde os pais, pessoas piedosas e abastadas, viviam, em 1514. Tornou-se dominicano e, convidado a assumir a arquidiocese de Braga, por três vezes disse não à rainha, reafirmando que renunciara às honrarias do mundo. Foi por obediência ao Provincial da Ordem que acabou por aceitar tornar-se arcebispo de Braga.

 

O poder não o deslumbrou. O seu biógrafo, Frei Luís de Sousa, conta que numa das suas visitas pastorais durante o Inverno — não se deve esquecer que, na altura, o território da Arquidiocese de Braga abrangia o que hoje são quatro Dioceses: Braga, Viana, Vila Real e Bragança — deparou com um miúdo que guardava o rebanho. “Ofereceu-se-lhe à vista, não longe do caminho, posto sobre um penedo alto e descoberto, ao vento e à chuva, um menino pobre e bem mal reparado de roupa, que vigiava umas ovelhinhas que, ao longe, andavam pastando. Notou o arcebispo a estância, o tempo, a idade, o vestido, a paciência do pobrezinho e viu juntamente que, ao pé do penedo, se abria uma lapa que podia ser bastante abrigo para o tempo. Movido de piedade, parou, chamou-o e disse-lhe que descesse abaixo, para a lapa, e fugisse da chuva, pois não tinha roupa bastante para esperar. — Isso não, respondeu o pastorinho, que em deixando de estar alerta e com olho aberto, vem o lobo e leva-me a ovelha, ou vem a raposa e mata-me o cordeiro.”

 

No caminho, comentou como este miúdo era exemplo para ele: “Este esfarrapadinho ensina Frei Bartolomeu a ser arcebispo. Este me avisa que não deixe de acudir e visitar as minhas ovelhas, por mais tempestades que fulmine o Céu. Que, se este, com tão pouco remédio para as passar, todavia não foge delas, respeitando o mandato do seu pai mais do que o seu descanso, que razão poderei eu dar se, por medo de adoecer ou padecer um pouco de frio, desamparar as ovelhas, cujo cuidado e vigia Cristo me confiou quando me fez pastor delas?”

 

A divisa que adoptou e sempre o norteou como bispo foi: “Ardere et Lucere” (Arder e Iluminar). E foi-lhe fiel, preocupando-se continuamente não só com as necessidades espirituais do seu rebanho mas também com as necessidades materiais, chegando a vestir e alimentar 400 pobres, distribuindo alimentos às famílias carenciadas e cuidando dos doentes.

 

3. Ficou famosa a sua presença na terceira e última fase do Concílio de Trento. E, aqui, sirvo-me da comunicação do académico Aires do Nascimento na Academia das Ciências de Lisboa.

 

Saiu de Braga em 1561, tendo percorrido 2200 km de Braga a Trento, durante 49 dias. A fama da sua participação no Concílio provém do seu exemplo de humildade, do seu saber teológico e do combate corajoso a favor das reformas que se impunha operar na Igreja. A trave mestra do seu pensamento era a instauração de “poder pastoral” por parte dos bispos, a partir da transformação do homem interior, despojado de honrarias e de bens materiais, “capaz de repartir as riquezas do corpo e da alma”. Não eram precisos mais dogmas: o que se impunha com urgência era a reforma eclesiástica, programada segundo “padrões de piedade e de mudança de costumes”. A caminho de Trento, foi-se apercebendo do descalabro em que mergulhara a cristandade, constatou que a crise da sua Diocese não era caso único, convencendo-se, por isso, cada vez mais, da urgência da reforma: com humildade, sentiu que — palavras dele — “está o mundo de maneira, cá, que convinha que andássemos todos descalços e com cilícios”.

 

Até o Papa quis ouvi-lo em privado, ainda que poucos tenham seguido os seus conselhos. Mas não hesitou em verberar a vaidade, o fausto e a ostentação dos eclesiásticos. Denunciou de modo veemente a Cúria Romana que, escreve Aires do Nascimento, “se burocratizou e se valia de expedientes para assegurar dinheiro que se tornara necessário para manter serviços inúteis”. Perante clivagens e críticas, não esmoreceu em zelo e apelava para o direito divino que opunha às tradições romanas: “Invocando autoridades consagradas, aos bispos que não cumpriam as suas obrigações pastorais, nomeadamente o dever de residência e de visitação, não hesitava em compará-los a meretrizes, por apenas se interessarem com usufruir de benefícios materiais.” Sobre as reformas urgentes e se os cardeais também precisavam delas, respondeu: “Vossas Senhorias ilustríssimas são as fontes de onde todos bebemos e por isso impõe-se uma profundíssima e reverendíssima reforma”.

 

Ainda sobre os cardeais escreveu: “Não se elejam senão aqueles que se destaquem pela excelência de vida e doutrina. Entre o seu número, escolham-se alguns maximamente idóneos que com o Papa governem a Igreja.” Quando lhe mostravam “os faustosos palácios e jardins que permitiriam convívio regalado, respondia que melhor fora preocupar-se com os pobres e que, mais que resguardar-se em edifícios sumptuosos, importava visitar e cuidar dos desamparados e acolhê-los nas dependências vazias.”

 

4. Pediu a renúncia, invocando 22 anos de serviço intenso, e o rei acedeu. No dia em que recebeu a autorização do Papa, regressou ao convento, para viver numa cela como se fosse o último dos frades. O povo chorou a sua partida, mas para ele era uma alegria: “Perdoai-me se me aparto de vós com alegria, porque é só porque sempre me achei indigno de ocupar a cadeira. Não me levam amores novos nem vos deixo para servir outro ou amar outra mais do que a vós, senão porque desejo que venha outro que supra os meus defeitos, emende as minhas faltas.”

 

Morreu em Viana do Castelo em 1590, tendo sido a formação do clero outra das suas preocupações fundamentais. Aires do Nascimento sintetiza: “Procurava viver na ascese de quem vivia do interior, mas sabia sobretudo inteirar-se dos mais necessitados (de corpo e de espírito), sem lhes regatear acolhimento... Dera ele testemunho de vida pelas demonstrações de humildade, de desprendimento pessoal e de piedade sincera para com Deus e de devoção para com os homens.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 NOV 2019

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Anne Hardy e os espaços que ficam entre.

 

The city is one gigantic instrument to me.’, Anne Hardy

 

Cell’ (2004) de Anne Hardy encerra um espaço que expõe a pura e dura verdade das coisas que assim se relacionam sem artifícios.

 

Anne Hardy usa como matéria prima os bocados de cidade esquecidos e tudo o que neles está contido. São por natureza espaços sombra porque são ignorados e desprezados intencionalmente. São espaços restantes, que se situam à margem e que acumulam aquilo que se deseja eliminar.

 

Porém para Anne Hardy estes espaços expectantes, que ficam entre, têm o grande potencial de sugerir algo novo e inesperado, algo que não existia antes. Ao estarmos oprimidos pelas nossas rotinas diárias, estes espaços podem representar o escape - pelo diferente ritmo, pela capacidade de poderem estimular a imaginação. Os espaços urbanos que percorremos diariamente são propositadamente concebidos para limitar e direcionar as nossas ações, de modo a tornar os nossos movimentos e comportamentos mais rápidos, eficientes e previsíveis. Os espaços a que Anne Hardy se refere revelam a possibilidade do imprevisível, do desconhecido.

 

Anne Hardy coleciona materiais, coisas, restos do que fica entre, do que fica atrás, por baixo, que flutua, que é considerado inútil, que de repente fica inusitadamente à mostra. E com isso Anne Hardy constrói intuitivamente novos espaços. Como se de um envelope para o que se coleciona se tratasse.

 

‘I see them (the places I create) as a kind of mapping process of these areas: ones that I think of as the soul of the city or place they are part of, where all the loose ends, feelings and thoughts collect.‘, Anne Hardy

 

O novo espaço criado, ao ser fotografado e mostrado, destabiliza porque nos transporta para um ambiente saturado de objetos acumulados que nos são familiares mas que ficaram esquecidos, que foram deixados para trás. Anne Hardy fala na possibilidade destes espaços representarem a alma da cidade (com tudo o que tem de positivo e de negativo). De mostrarem as coisas tal como elas são (obrigam a uma ligação à realidade e assim poderão mostrar o verdadeiro sentido da vida). São como um inconsciente coletivo - porque todas as coisas abandonadas transportam memórias, revelam o que se quer esconder, projetam pensamentos que estão no fundo de nós mesmos, mas que nos formam e que determinam quem somos. E ‘Cell’ (2004) é a imagem do inesperado, do que está para lá do nosso controlo, feito de coisas encontradas à deriva. A atmosfera particular criada é feita de coisas de todos nós. É um todo fechado e consistente mas feito de partes e fragmentos que a todos nós pertenceram. É como se fosse a negação de um espaço porque é formado por coisas descartadas, e refere-se a sítios que preferíamos que não existissem. E por isso é um espaço livre, selvagem, descontrolado e um espaço orgânico por excelência - está cheio e parece que se encontra em constante mudança, mutação e adaptação.

 

When I begin, I don’t know how the end result will be, as it’s the result of a process of working with materials, sounds, as well as the particular characteristics of the space the piece will exist in.’, Anne Hardy

 

Os espaços criados por Anne Hardy, tal como ‘Cell’ revelam um processo. É através de um processo de ações de procura e descoberta que os espaços vão tomando forma. A construção física dos espaços é feita por uma série de acidentes e erros produtivos. A lógica espacial é a lógica do processo e do tipo de relação que as várias partes e objetos vão ter. O espaço ao ser fotografado passa a estar encerrado, fechado, completo, limitado e passa a ser uma realidade paralela, uma possível versão do dia-a-dia.

 

Cell’ é um espaço fora do tempo, deixado em aberto, totalmente subjetivo, vulnerável, sensível, em mudança, em desenvolvimento (com ritmo e pulsação própria). E que tem o tudo e o nada, o finito e o infinito, a acumulação e a negação em simultâneo.

 

Ana Ruepp

A VIDA DOS LIVROS

De 25 de novembro a 1 de dezembro de 2019

 

O número 202 da revista “Colóquio-Letras” (Gulbenkian, 2019) é deliciosamente ilustrado pelo Herbário de Lourdes Castro e começa por um texto inesquecível de Agustina.


UM MONÓLOGO A DOIS
“Correspondências” é o prato forte do último número da revista “Colóquio – Letras” (202, setembro – dezembro de 2019). Num tempo em que a correspondência está a sofrer uma profunda mudança, pela emergência das novas tecnologias de informação e comunicação, do correio eletrónico, da internet e da digitalização, é essencial lembrar o significado da comunicação escrita. Como afirma Marcello Duarte Mathias: “a correspondência é um monólogo a dois; o diário uma correspondência a várias vozes. Ambos apresentam, contudo, um traço comum: são formas disfarçadas de autobiografia, porquanto a procura que lhes subjaz obedece a uma idêntica demanda de identidade – uma mesma realidade focada de ângulos diferentes. Ou, dito de outro modo, singularidade de testemunhos que equivalem a uma semelhante aventura de espírito”. Veja-se, aliás, a lista de exemplos dados por Miguel Real relativamente ao uso da correspondência na cultura portuguesa: Pero Vaz de Caminha na descoberta do Brasil apresenta uma “carta civilizacional”; Afonso de Albuquerque e António Lobo Antunes, cartas de guerra, em momentos e com motivações muito diferentes; Wenceslau de Morais, cartas sobre a saudade; Frei António das Chagas e o Padre António Vieira, cartas espirituais; Mariana Alcoforado e Eça de Queiroz, cartas de amor; Luís António Verney, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, missivas sobre o atraso português. Os exemplos ilustram a natureza e a importância da correspondência. Por muito que oiçamos queixas sobre o vazio criado pela ausência da correspondência tradicional, a verdade é que teremos de encontrar novas formas de registar esses diálogos, indispensáveis para melhor nos compreendermos. É verdade que há riscos fortes. Marcello D. Mathias diz mesmo: “com o desaparecimento das cartas desaparece de igual modo um estilo de vida, a par de espólios e arquivos que lhes dizem respeito – é toda uma prática civilizacional que se perderá. A título definitivo”. Temos, de facto, de ter isso em consideração, mas certamente, encontraremos novos modos de fixar a necessária comunicação, que corresponde a um verdadeira demanda de identidade.

 

O MUNDO DIGITAL
Leia-se, aliás, o texto, de grande interesse atual, de Manuel Portela intitulado “correio @ eletrónico: escrever cartas na rede”. De facto, o correio eletrónico sofre com a aceleração do tempo e com a compressão do espaço, de acordo com a lógica das culturas de rede. A distância espacial e temporal correspondente à tradicional carta de papel teve uma completa alteração de escala. A comunicação passou a ser instantânea, com consequências na linguagem, no cuidado e na clareza das mensagens, o que obriga a uma alteração radical no método e na análise. Daí que tenhamos de lidar no futuro com uma escrita e uma linguagem adaptada ao correio eletrónico. Por outro lado, “a necessidade de conexão permanente interfere com a capacidade introspetiva - limitando a conversa que os indivíduos mantêm consigo mesmos e a consequente reflexividade - e, simultaneamente, diminui a capacidade de imaginar o lugar dos outros, já que estes se fazem presentes mais como representações gráficas na interface sob controlo do utilizador do que como seres independentes dessa figuração simbólica”. Vários exemplos são apresentados pelo autor, o que contribui para se compreender não só as potencialidades mas também as limitações deste meio, que indiscutivelmente ganhará importância no futuro, terá os seus cultores e até possuirá uma nova qualidade literária. Os temas do tempo e da reflexão são cruciais quando falamos desta questão. Evidentemente que os progressos trazem mudanças profundas, como se nota em dois textos sob o efeito do tempo na comunicação epistolar, de Fernando Cabral Martins sobre os modernistas e de António Cândido Franco relativo à epistolografia negra do surrealismo. E se dúvidas houvesse, temos a publicação das cartas de Mário Cesariny e M.S. Lourenço. De facto, como “correspondências” que são, há uma grande variação consoante as diferentes gerações. E as cartas imaginárias apresentadas, da autoria de António Mega Ferreira, Rita Taborda Duarte, Nuno Júdice, Julieta Monginho, Alexandra Lucas Coelho e Afonso Reis Cabral ilustram muito bem modos muito diferentes de comunicar. É verdade que os tempos das grandes epístolas passaram, mas a necessária reflexão precisa de existir e terá, por certo, de se ir adaptando às novas tecnologias e mentalidades.

 

RUBEN E TORGA
E vejamos o estimulante diálogo entre Ruben A. e Miguel Torga. Antes do mais, é inesperado, mas muito atraente, considerando a riqueza cultural das duas personalidades. Cinco cartões, quatro postais, um telegrama e 34 cartas foi o que Torga enviou. E são a prova provada de uma admiração correspondida. E fica-nos na memória a afirmação de Torga, sempre exigente, sobre “A Torre da Barbela”: “confesso-lhe que ainda não consegui sair da confusão de tanto sonambulismo. O que já sei de ciência certa é que agradaram deveras os inúmeros achados expressivos que enxameiam o livro. Parei vezes sem conto no caminho, boquiaberto com a graça e a originalidade de certas maneiras de dizer. Que rica imaginação verbal a sua!”. E quanto a “O Mundo à Minha Procura”: “Você tem nele páginas admiráveis, de mão de mestre…”. E Ruben A., com um critério sempre exigente, diz ser Torga “o último grande escritor da tradição clássica da língua portuguesa. A sua contribuição criadora encerra na mais sublime forma expressões definitivas de clareza, profundidade e de valor humano”… E se este diálogo intenso e afetuoso se lê com grande agrado, perante um Miguel Torga próximo e afável (como eu próprio conheci), fica-nos a ilustração plena da força das “correspondências”. E neste ano dos centenários de Sophia e de Jorge de Sena, temos presente o filme de Rita Azevedo Gomes, no qual emerge um diálogo que confirma as considerações de Marcello D. Mathias. Este número da revista é deliciosamente ilustrado pelo Herbário de Lourdes Castro e começa por um texto inesquecível de Agustina. E assim a “Colóquio - Letras” confirma uma história de prestígio. Nasceu com a designação de “Colóquio, Revista de Artes e Letras”, por iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian, em janeiro de 1959, sob a direção de Reynaldo dos Santos e Hernâni Cidade e a direção gráfica de Bernardo Marques. José-Augusto França e Jacinto do Prado Coelho associaram-se à direção da revista em fevereiro de 1970. Então, autonomizaram-se a “Colóquio – Letras”, que começou a sua publicação em 1971, sob a direção de Hernâni Cidade (1971-1975) e de Jacinto do Prado Coelho (1971-84), e a “Colóquio – Artes”, também nascida em 1971 e dirigida por José-Augusto França, coadjuvado por Carlos Pontes Leça, que se publicou até dezembro de 1996. A “Colóquio – Letras” foi depois dirigida por David Mourão-Ferreira (1984-96), Joana Morais Varela (1996-2008) e agora por Nuno Júdice, desde 2009. E diga-se, o tempo das revistas de qualidade é o futuro.   

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença 

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Da releitura que vou fazendo, em vale de lençóis, de A Dance to the Music of Time, de Anthony Powell, apontei, na passada semana, uns trechos do 2º volume, A Buyer´s Market, que te traduzo:

 

   Imaginava outrora a vida dividida em compartimentos separados, nos quais introduzia, por exemplo, abstrações aos pares, como prazer e dor, amor e ódio, amizade e hostilidade, e também termos mais materiais, como trabalho e jogo. De acordo com tal conceito, aceite sem preconceito, pelo menos aparentemente, por pessoas díspares, profissão ou ofício são coisas totalmente diferentes de "lazer". Tal ilusão (posto que, mais tarde, assim vim a considerar esse ponto de vista) estava estreitamente ligada a outro conceito, segundo o qual a vida penetra indefinidamente em novas zonas de experiência, enquanto que qualquer nova relação nos introduz quase sempre num mundo desconhecido, com os seus acasos e os seus encantos. Mas torna-se claro, à medida que o tempo passa, como esses mundos ditos diferentes na realidade se aproximam, se não uns dos outros, pelo menos de um modelo comum a todos; de tal modo que, afinal, a sua diversidade - se é que ela verdadeiramente existe - acaba por parecer quase impercetível, exceto nos seus aspetos grosseiros e exteriores, e nos parece mesmo inconcebível na sua figuração antecedente, como relação de causa a efeito. Por outras palavras: quase todos os habitantes desses impérios aparentemente autónomos se revelam definitiva e estreitamente ligados entre eles. E assim, o amor e o ódio, a amizade e a hostilidade, ganham um aspeto menos nitidamente definido e parecem amiúde possuir características das quais o mínimo que se pode dizer é que entre elas há numerosas parecenças, enquanto o trabalho e os divertimentos se fundem completamente num complexo tecido de prazer e aborrecimento.

 

   Se tiveres gosto nisso, Princesa de mim, poderemos ambos discorrer sobre este trecho duma saga romanceada, completa há mais de setenta anos. Para já, creio recordar-me de que o mesmo autor disse, alhures, que quando encontramos outra pessoa, sobretudo se essa relação tiver alguma carga amorosa, nos debatemos a nadar entre duas águas: naquela em que vislumbramos a pessoa real, e na que nos promete a sua imagem ideal. [Powell não o disse tal e qual, mas assim, pobre de mim, pensossinto]. Mais ou menos opostas ou cinzeladoras, tais visões podem suceder-se, a entreter a razão, no percurso desse comboio de corda que chamamos coração, como diria Pessoa; ou, para nosso cansaço, quiçá desespero, confrontam-se entre si, sem que saibamos bem, aliás, se não irão, finalmente, cair no poço egoísta e alheio do nosso esquecimento... Seja como for, Pascal tinha razão quando teimava em que o coração tem razões que a razão desconhece. Ora, acontece ser igualmente certo que a razão teima em esconder, ao coração, as suas razões. Talvez para dele não ter que ouvir as razões que prefere obscuras.

 

   Mas, afinal, serão razão e coração assim tão diferentes ou, melhor ainda, tão dificilmente comunicantes? [Faço-te esta pergunta, Princesa de mim, numa época em que se descobrem e estudam os neurónios dos nossos intestinos...] Um exame, atento e sem preconceitos, das relações humanas talvez nos possa ajudar a entender melhor como a personalidade de cada pessoa, e a sua vulnerabilidade à mudança circunstancial, são certamente função da dialética entre aquilo que é chamado coração e o que se chama razão. Poderá tal parecer paradoxal mas, na realidade, só paradoxalmente o ser humano pensassente. Os signos do zodíaco são todos diferentes, mas todos têm, em comum, serem sinais de contradição.

 

   Começo, com intenção mais profunda, por te citar o exemplo curioso do atleta Braima Dabó, cidadão da Guiné-Bissau, que estuda em Portugal e concorreu na prova dos 5000 metros dos últimos campeonatos mundiais de atletismo. Antes de se precipitar para a meta, foi ele o samaritano que ajudou e carregou um concorrente que, exausto, caíra na pista. Comovido, não comento. Tampouco especularei sobre o caso, ou o tema, que muito respeito e melhor meditação me merece. Apenas observo que talvez seja um exemplo raro, infelizmente, duma atitude tão humana e, para quem deva assim considera-la, tão evangélica. Tal como a Manuela Silva, competentíssima economista agora falecida, procurou sempre que o percurso da sua vida se fosse aproximando cada vez mais do espírito do Evangelho, e muito conscientemente da celebração da dignidade humana - ou de filhos de Deus - na atenção e na justiça a prestar aos pobres. No muito que a vi dizer, defender e fazer, não consigo separar a obra do coração da obra do pensamento: ambos se uniam em operações de radical inspiração personalista, espiritual. Nem sempre discernível nos planos e cursos de gestão da nossa "Católica".

 

   Voltando a motivações mais prosaicas e correntes, pensossinto muitas vezes em ilusões ou confusões de amores surtas de impulsos de piedade (e carência) ou de interesse (e sujeição). Todos nós conhecemos histórias de amores e matrimónios falhados pela insistência em vincular vidas na sequência de momentos de crise ou abandono dumas, de períodos de fasto ou de fortaleza doutras. Mas a necessidade de carinho e apoio sentida por uma, e a disponibilidade de outra para prestação de socorro, ainda que possam estar na origem de duradoura relação de entrega mútua, nunca serão suficientes nem sequer necessárias à sua formação e fortalecimento. Seja qual for a graça ou gratuidade de que se revistam, essa não é a mesma que o amor conjugal ou a companhia duma vida partilhada exigem. Tal como (ou menos ainda) a conjunção de interesses patrimoniais não será necessariamente a base ou a tessitura duma vida em comum.

 

   A graça do amor humano que sustenta um casal ou uma parelha, curiosamente, estará até mais próxima da que alimenta uma vocação religiosa ao percurso duma vida entregue à contemplação orante ou ao serviço ativo de Deus. Em ambas as situações - amor humano e vocação religiosa -, o amor que se entrega é intrinsecamente gratuito, não sabe quanto custa, nem tal calcula ou pergunta. Mas na sua misteriosa origem ele não é, em boa verdade, movido por qualquer pretexto, facto ou pretensão que o impulsionem: é uma opção exclusiva e zelosa, à imagem do que Jesus tantas vezes repete, nos evangelhos, sobre a rutura radical exigida a quem deseja o Reino de Deus. Já me aconteceu interrogar-me sobre a partilha como generosidade e comunhão e, paradoxalmente, como divisão e separação. Por disparatado que possa parecer o que seguidamente digo, é verdade que o amor é partilha, no sentido de entrega e união, mas há amores, ou modos do mesmo amor, que não se podem partilhar, não por obra do diabo, daquele que divide e separa, mas por vocação do Deus zeloso, ciumento, que é o nosso. Falo, por exemplo, da monogamia do amor humano e da entrega religiosa exclusiva. [Abro aqui este breve parêntese para sublinhar o que já bastas vezes tenho repetido : o exercício, a capacidade de exercício, de serviços ou ministérios eclesiais não deveriam ser considerados nem confundidos com vocações à vida religiosa exclusiva, já que são funções comunitárias que, não só não implicam necessariamente a renúncia a condições normais da vida humana (por voto ou obrigatoriedade de castidade e pobreza, por exemplo), como ainda se realizam no seio e em serviço de comunidades eclesiais, e em comunhão visível, que exclui qualquer separação ou segmentação.]

 

   Definindo então o paradoxo que tento descrever-te, Princesa de mim, dir-te-ei que a vocação universal da condição humana é a busca da verdade, que eu aqui quero entender como a visão da unidade fundamental de todas as coisas. E afinal, pergunto-me se, no fundo, não será isso também que Anthony Powell quer exprimir no texto que acima traduzi. E ocorrem-me agora os dois primeiros parágrafos do romance da Agustina intitulado Joia de Família (primeiro da trilogia O Princípio da Incerteza). Esse primeiro capítulo chama-se, significativamente para mim, neste momento, Exame Pré-Natal: 

 

   Não se escreve melhor porque se escreveu muito. Às vezes vou surpreender nas páginas antigas assinadas pelo meu punho um tom perfeito em que a imaginação ronda como uma madrinha incapaz de envelhecer e de perder a razão. A razão é a mesma, a coberto das longas provações das deceções, da experiência, de tudo.

 

   Mas, se há um progresso na arte de escrever, ele deriva de um solitário voto de castidade talvez. De reduzir a um simples detalhe o coração humano, fora das suas obrigações de palpitações e de vida. 

 

   Acontece-me interrogar panoramas de vida social que conheço para descortinar como foi possível enaltecer tanto paixões estrondosas mas efémeras, tal como aprovar o arranjo de casamentos por interesses patrimoniais ou relacionais de famílias, com a bênção de autoridades eclesiásticas.

 

  Talvez outro parágrafo de A Dance to the Music of Time do Powell nos proponha uma reflexão consequente da proposta acima. Traduzo:

 

   No decurso da vida, certas etapas podem ser comparadas ao bilhar russo que jogamos em mesinhas verdes cujo ventre esconde, em secretas profundezas, um alçapão que cede e se fecha ao fim de, creio eu, um quarto de hora. Assim que tal alçapão funciona, as bolas brancas e a vermelha deixam de voltar ao tabuleiro para poderem ser jogadas e todos os pontos contam a dobrar. Talvez se deva ver aí um símbolo da vida humana. Por razões às vezes inexplicáveis na altura própria, ocorre que certos acontecimentos subitamente se revestem de um sentido até então insuspeito: mesmo antes de sabermos exatamente o que se passa, a vida parece finalmente ter começado para nós, e desde logo, recém conscientes de uma mudança, descemos a louca velocidade, levados por irresistível movimento, as escorregadias avenidas da eternidade.

 

Camilo Maria 

Camilo Martins de Oliveira

NOVA REFERÊNCIA A JORGE DE SENA


Retomamos a análise do teatro de Jorge de Sena, no centenário do seu nascimento, tal como assinalei no artigo anterior, citando hoje a análise que efetuei na “História do Teatro Português” sobretudo acerca da complementaridade  e continuidade entre o surrealismo e o classicismo da sua criação dramática.

 

E isto porque como já tenho aliás referido também em estudos diversos sobre o conjunto da obra teatral de Jorge de Sena, com eventual exceção do iniciático ato algo prematuro intitulado “Luto” (1938), nos 18 anos do autor, e na sequência desta iniciação aliás interessante, o que encontramos, na vasta dramaturgia de Sena, é uma modernização estética e linguística no conjunto vasto de peças que oportunamente analisámos no artigo anterior.

 

Merece pois desenvolvimento a referência à renovação que a obra dramática de Jorge de Sena, hoje de certo modo como tal esquecida, trouxe para o teatro português. E é novamente de assinalar o envolvimento percursor que já foi referido na sua ligação a certas expressões dramáticas de surrealismo e modernismo em geral.

 

Nesse aspeto, assinala-se a colaboração modernizante no movimento denominado Os Companheiros do Pátio das Comédias, no Teatro Experimental do Porto, e talvez mais do que isso, na adaptação/dramatização para o Rádio Clube Português de 13 romances policiais emitidos em 1948 num programa dirigido por António Pedro.

 

Cita-se o estudo de Eugénia Vasques precisamente intitulado “Jorge de Sena – Uma Ideia de Teatro” (Edições Cosmos – 1988), onde se  qualifica, e bem, “O Indesejado (António Rei)” como “um dos casos mais magistrais de individualidade criativa no quadro do teatro, anterior à introdução das coordenadas do teatro épico em Portugal”.

 

Esta referência é relevante pois documenta uma expressão modernizante e percursora da estética de criação teatral, atribuindo-a com justiça a um autor injustamente algo esquecido como dramaturgo.

 

E mais ainda: que marcou o teatro português tanto como autor, como inovador e produtor de espetáculos. O que muito o singulariza, e torna ainda mais injusto o relativo esquecimento que marca a sua intervenção no teatro.

 

E como bem vimos, se na intervenção de espetáculos a sua obra é menos marcante, a sua dramaturgia é de excelente qualidade/modernidade. Pois, como já referi, representa a mais completa continuidade entre classicismo e modernização, designadamente no surrealismo de muitos das peças.

 

Merece por isso maior destaque. Mas, como infelizmente acontece no teatro português, Jorge de Sena está algo esquecido como dramaturgo...!

 

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS LUSO-TROPICAIS

 

6. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO
CRÍTICAS E MÉRITOS (III)

 

Torna-se necessário expor alguns argumentos em defesa de Freyre.

 

É de sublinhar, em primeiro lugar, o seu contributo fundamental para a reabilitação dos “trópicos”.   

 

Durante décadas foi uma expressão equiparada pelos europeus a exotismo, algo de estranho, uma realidade que era tida como alheia à denominada “civilização ocidental”, transportando consigo conotações negativas. 

 

Também o termo “tropical” nos aparece como sinónimo de exótico, abrasador, diferente e marginal, fora do que é usual e comum, associado negativamente a estigmas de doenças tropicais, a primitivismo, a decadência, a barbárie, a selvajaria, ao degredo, ao anti-desenvolvimento, à negação da saúde, da agricultura, do comércio, da indústria, da civilização, porque anti-civilização. 

 

Esta leitura está bem patente no livro “Tristes Trópicos”, do francês Claude Lévi-Strauss, com a particularidade de fazer uma descrição do Brasil. 

 

Como é enfatizado pelo próprio título da obra, os trópicos são tristes, sendo sugestivo o seu início, onde se lê:

 

“Odeio as viagens e os exploradores. E aqui estou eu disposto a relatar as minhas expedições. Mas quanto tempo para me decidir! Quinze anos passaram desde a data em que deixei o Brasil pela última vez e, durante todos estes anos, muitas vezes acalentei o projeto de começar este livro; a cada vez, era detido por uma espécie de vergonha e de repulsa, pois será mesmo necessário contar minuciosamente tantos pormenores insípidos, tantos acontecimentos insignificantes?” (edições 70, p. 11).   

 

E acrescenta, prosseguindo:  

 

“É possível, (…), consagrar seis meses de viagens, privações e lassidão fastidiosa para se recolher (…) um mito inédito, uma regra de casamento nova, uma lista completa de nomes clânicos, mas esta escória da memória: “às 5 e 30 da manhã entrávamos na doca de Recife em meio ao grasnar das gaivotas e uma frota de mercadores de frutas exóticas que enxameava ao longo do casco”, essa recordação tão débil, merece que eu erga a minha pena para fixá-la?.   

 

E, no entanto, esse género de narrativa goza de uma aceitação que para mim continua inexplicável” (idem, p. 11/2).    

 

Trata-se de uma careta de escárnio, de um ponto de vista carregado de tédio e enfado, num tom desinteressante, entediante, angustiante e penoso, emitido por um francês oriundo de um centro da civilização, a França, com a missão de “civilizar” a periferia dos trópicos e as suas populações, tristemente depreciadas, baseando-se Lévi-Strauss na noção de alteridade. 

 

Sendo “Tristes Trópicos”, de 1955, um livro de viagens, não deixa de ser curioso que Freyre, em 1953, tenha publicado “Aventura e Rotina”, de igual modo uma obra de viagens.

 

Para Gilberto Freyre, ao contrário de Strauss, os trópicos não são tristes e enfadonhos,  nem periferias marginais, antes sim o lugar por excelência onde floresce uma civilização original, mais humana e universalista em muitos aspetos, com especial incidência nos espaços marcados por aqueles que em seu entender são portadores do verdadeiro destino tropicalista, os portugueses. Eis os trópicos e a civilização lusa condensados no luso-tropicalismo. 

 

À alteridade de Lévi-Strauss, contrapõe Freyre uma proclamação pública de similitude, procurando anular e superar distâncias e antagonismos, elogiando e defendendo a possibilidade de ultrapassar esse dualismo e oposição do Outro. 

 

Freyre, fala-nos numa língua não dominante e do hemisfério sul, tido como não hegemónico; Lévi-Strauss, fala-nos numa língua tida então como hegemónica e partindo do hemisfério norte, tido como dominante.     

 

Isso não o impede de defender que o mundo tropical não é um mundo “antiquado”, “arcaico”, “enfadonho”, “entediante”, “desinteressante” e “exótico”, face a um tido como “desenvolvido” e “normal”.     

 

Que não é um mundo “estático e parado” face a um outro “dinâmico e em movimento”. Tropicalismo não é equivalente a primitivismo.   

 

Eis um inquestionável contributo de Gilberto Freyre, diferenciando os “trópicos” pela positiva, sem complexos.        

 

22.11.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício 

CRÓNICA DA CULTURA

 

É-me difícil entender como se vai gerindo a idade do corpo quando tão distinta da idade da mente. Há pessoas que parecem envelhecer na totalidade, ou seja, tudo em “harmonia” e ao mesmo tempo: corpo e mente estão de acordo e pim! é um “sossego”! tudo tem artroses até o coração e alma juntos, e eis o facto do qual se está dormente num todo: dizem-me.

 

Surpreende-me, contudo, que querendo muitos de nós entender a velhice, referindo-me a esta que vive a discrepância entre corpo e mente, devamos contar sempre que os outros não olham para o fundo dos nossos olhos onde se enche de perguntas a aflição dos desejos lúcidos; onde se pode ainda cartografar o que inclui experiências vividas e que geram os futuros de atuarmos de acordo com as interpretações que nos proporcionaram. Afinal, refiro-me a quem o envelhecimento físico é pesadíssimo face à jovem mente que ainda se questiona, e, assim sendo, está-se significativamente disposto a viver com o compromisso da defesa filosófica predisposta à visão atenta e particular da natureza humana.

 

Assim sendo, como é possível ouvir tanta palermice despudorada acerca da velhice, como se se tratasse de um simples período ao qual correspondem uns vagos direitos oferecidos, talvez, porque quem os recebe deu a estas gentes da tal palermice despudorada, a possibilidade de se sentarem numa confortável cadeira e de perna traçada, traçarem o caminho que se deve obedientemente percorrer, de preferência, sem queixa, doa o que doer?

 

Registo que em todas as versões dos discursos e posturas desta “fulanagem”, mora um vácuo numa qualquer versão que seja dos seus ADN, que não pede, nem emprestada, uma regra moral que impeça a perversidade e o alheamento com que se debruçam sobre a velhice alheia, já que a deles, seja em que tempo for do seu viver, em consciência, lhes não acode, nem quando comparada com a dos primatas inferiores.

 

É certo que não existe nenhum computador gigante programado para estes seres com a devida antecedência – no mínimo, antes de lhes chegar o tempo das suas falas - a fim de que soubessem que se aprende e nunca paramos de aprender, e que nos ensinamos uns aos outros a raciocinar.

 

Julgo fazer parte da tal “lógica operativa” o nosso desenvolvimento por tentativa e erro, criando ferramentas que nos ajudam a entender o cântico de um pássaro consoante habite na cidade ou no campo; consoante demonstre a sua experiência e com ela a sua idade.

 

A natureza humana altera-se consoante o mundo em que vivemos, as culturas, e consequentemente as normas de comportamento. Todavia, pergunto: não inclui a dieta de muitos dos mais jovens, a grande análise da sua envolvência com os mais velhos? A capacidade de imaginarem o colocar-se no lugar do outro, e o desejo de que lhes seja atribuído, um dia, o direito de se defenderem a si mesmos, sendo escutados e amados e respeitados e não atirados à solidão abandonada de um muro escorado num mercado de hipocrisias também de afetos?

 

Proteger as fragilidades e as forças de qualquer tipo de velhice, chegue ela em que idade chegar, é a possibilidade de começar a acreditar num mundo mais justo, mais inteligente, mais humano que impeça uma conversão maciça ao fatalismo dos campos de concentração do sofrer.

 

Em verdade, a submissão à lógica da máquina criada por seres humanos, e a entrega do seu domínio a uma força bruta, coerciva da vida, corrói as próprias constituições da liberdade, a impérios de extrema parcialidade, qual cleptocracia que sempre protege e enriquece um grupo de poder que atribui a última e desesperada trincheira a viver, com meia dúzia de silenciosos euros, a todos os restantes mais frágeis, continuando ausente a estratégia política que a impeça, e sendo que nem ao início da solução do problema principal constatamos que alguém se abeire.

 

É difícil entender como se pode gerir a idade do corpo quando tão distinta da idade da mente. Quando sem que se tenha tido sequer acesso ao código do jogo, qualquer ecrã é uma extensão da realidade da velhice mais triste, e os musculados de hoje não entendem sequer o que veem os seus olhos, onde está a bola, a pá, o significado.

 

Teresa Bracinha Vieira

Pág. 1/4