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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

 

Marília, ó D. Marília estou aqui!

 

Menina, já vou, já vou, o meu homem anda a cavar e anda cada vez mais surdo, é da idade, e eu fico práqui a atender a tudo. Olá menina, beijinho, como tem passado? Olhe tenho os pintainhos a nascer, venha, venha ver.

 

Entrámos devagarinho, sem fazer barulho nenhum a fim de não interrompermos o parto dos ovos.

 

Ó D. Marília, que lindo! Que lindo!

 

Pois é! E tenho a ovelha quase a parir também. Andou-me inquieta de noite que eu bemnaouvi e é assim, este mês está-me a nascer tudo. Até a cadela já está a dar mama aos filhos. Quer ver? Não senalhincoste que ela é brava porque é boa mãe. Tudo isto é muito lindo, lá quisso é, é, mas dá muito trabalhinho. Inda ontem saí do feijão-verde às dez da noite. Ó marido, anda que está aqui a menina e temos de conversar, ós pois ajeitas o resto dos morangos, anda falar que a menina tem de ir à vida dela.

 

Pois é como a minha mulher lhe disse. A menina sabe que estamos a ficar velhos e já não podemos com tudo isto, é muito encargo prá gente. Os filhos ligam-nos pra virem ao dinheirinho, mas não prájudar e como somos do Norte, pensámos em ir lá práldeia. Pegamos aqui na carroça que comprei – disse, olhando orgulhoso para um carro novo – e pronto, lá vai a gente pregar para outra freguesia e ver se os compadres ainda estão vivos.

 

Ó menina, eu sou mulher de labuta, mas como diz o marido estamos aqui sozinhos a fazer as vendas prá praça num carrego diário. Alugámos a casa e dormimos naquela espécie de quarto ao lado dos pintainhos e de noite é frio e ainda temos de andar às raposas que nos vêm ao galinheiro e ós pois ofereceram-nos uma boa quantia para fazer aqui uma pensão de praia que a praia é perto sim senhora, e prontos, desta, a gente está a pensar ir pró Norte. Que acha?

 

E a D. Marília começou a chorar e o Sr. Carvalho olhava para as batatas plantadas com os seus braços e disse-me:

 

Desgosto tenho de deixar isto. Foram muitos anos. Mas trata-se do nosso futuro, sim estamos velhos mas ainda temos futuro e se ele for a coxear ao menos agora temos dinheiro para a bengala, não é?

 

Ó menina que desafio, não é? Levamos no carro os dois cães e o galo calçudo e o resto vendemos tudo. Tenho medo da viagem lá isso tenho, mas temos de sobreviver. Chegámos até aqui com muito trabalho e o futuro chama-nos.

 

E há que dizer ó Marília, que temos lá casa, é só dar-lhe um jeito e refazer o forno do pão, mas seremos livres, livres, não acha menina? Vai ser uma nova história e há muito que conversar com os vizinhos. Já soube que os novos não querem nada com a aldeia, mas aqui não querem nada connosco. É a visita da cortesia pró dinheirito dos velhos, e, às vezes até estou na missa e só os vejo no mês seguinte e olhe que moram aqui ao lado. É assim, vamos fazer o futuro! Foi uma luta grande, mas agora é o futuro e a liberdade. Só sairemos da cama quando tivermos o corpo descansado.

 

E pronto menina estamos então conversados. Vamo-nos escrevendo. É melhor não nos visitar não vá a coisa correr mal e ficarmos lá pior do que aqui.

 

A D. Marília estava em pé encostada à mesa e tinha a cara entre as mãos. Ainda não temos a certeza disto tudo – disse – mas vamos sim. E começou a chorar baixinho.

 

Sabe menina, eu nunca deixaria de me casar aqui com o marido e ele ontem também mo disse:

 

Ó Marília vamo-nos daqui, Temos de arriscar para fazermos o nosso noivado.

 

Afastei-me, fui ver a vaca já de cama feita a forrar-lhe o chão, a palha estava sacudida. Os porcos pareciam ansiosos que tudo isto acabasse e soubessem o destino. Apanhei um saquinho de espinafres e escutei o barulho do vento nos pinheiros altos. Pois seria tudo uma pensão ou rezórte como eles diziam. Cheguei-me ao portão onde me aguardava o casal: olhei-os com atenção, nada nos perguntámos.

 

Assinámos hoje o contrato a acabar, vamos ser livres, não somos daqui, disse-me a D. Marília a olhar para o chão. Chegámos a passar fome para não gastar dinheiro. Agora vamos ao futuro, de muitas maneiras enforcámo-nos aqui e agora só não quero uma casa pintada de branco que pareça um tratamento.

 

Dois meses depois passei lá. Chamei pela D. Marília. Tudo era um deserto. Nem galinhas nem cães à solta. A carroça de marca Opel já lá não estava. Desejei muito que estivessem a noivar num futuro que lhes acontecia de repente naquela idade.

 

Afinal fora um dia indefinível aquele em que os ouvi como quem escuta do que a ausência será feita quando se explicam os dias que hão-de vir.

 

Teresa Bracinha Vieira