CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM
Minha Princesa de mim:
Hoje em dia, quando tanto se apregoam - sobretudo em Portugal - cultores sentimentalistas do que chega a pretender ser "uma exegese poética" da Bíblia (?), diverte-me evocar um subtítulo da obra de Umberto Eco que te referi: São Tomás e a liquidação do universo alegórico. E até te traduzirei uns trechos desse autor, sobretudo uns que me parecem ajudar à diferenciação entre simbologia e "liberdades poéticas" (título, aliás, dum poema do Saramago).
Interroga-se São Tomás, em primeiro lugar, sobre a licitude de metáforas poéticas na Bíblia, concluindo pela negativa, visto que a poesia mais não é do que «infima doctrina» (Summa Theologiae, I, 1, 9): Poetica non capiuntur a ratione humana propter defectus veritatis qui est in eis. (A poética escapa à razão humana pela falta de verdade que nela está - Summa Theologiae, 1-11, 2 ad 2). E comenta Umberto Eco: Tal afirmação não deve todavia ser entendida como um rebaixamento da poesia, nem como definir-se o ato poético, como na terminologia do século XVIII, enquanto «perceptio confusa». Antes se trata de reconhecer à poesia o direito de figurar entre as artes (isto é, a sua qualidade de «recta ratio factibilium»), sem deixar de admitir, por outro lado, que essa operação - esse «facere» - permanece inferior, por natureza, ao depurado conhecimento que nos trazem a filosofia e a teologia. A Metafísica de Aristóteles ensinara a São Tomás que as tentativas de efabulação dos primeiros poetas teólogos tinham constituído uma maneira ainda infantil de tomar conhecimento racional do universo. Na verdade, tal como todos os pensadores escolásticos, ele não sente qualquer interesse por uma teoria da poesia: assunto bom para especialistas de retórica, que ensinavam na Faculdade das Artes e não na Faculdade de Teologia. Quanto a si, São Tomás foi poeta (e poeta excelente); mas em todas as páginas em que fala de conhecimento poético e de conhecimento teológico, ele nunca se desmarca de um tipo de oposição canónica, nem se refere à maneira dos poetas como algo para além de simples termo de comparação (que não é objeto de análise).
A dado passo do trecho dos seus Scritti sul Pensiero Medievale, sobre O Alegorismo nas Escrituras, Umberto Eco aconselha-se com Henri de Lubac - grande teólogo jesuíta, contemporâneo e amigo do dominicano Yves Congar, com quem, aliás, trabalhou em tempos do Concílio Vaticano II e foi igualmente feito cardeal por João Paulo II; mais recentemente foram ambos lembrados pelo papa Francisco que, nesse período de renovação da Igreja, acompanhou, como discípulo, a obra deles. Recorrendo a Henri de Lubac, sobre o modo expressivo e cognitivo medievo, Eco escreve (traduzo):
Na sua tentativa de contrariar a sobreavaliação gnóstica do Novo Testamento em detrimento do Antigo, Clemente de Alexandria estabelece uma distinção e uma complementaridade entre ambos, diligência que Orígenes aperfeiçoará ao proclamar a necessidade de uma leitura paralela das duas escrituras. O Antigo Testamento é esboço do outro, e nele se precisa a letra cujo espírito o Novo encerra. Ou, para falarmos em termos de semiótica, é a expressão retórica do que, no Novo Testamento é o conteúdo. Por sua vez e parte, o Novo Testamento contém uma significação figurativa, já que é promessa de acontecimentos por vir. É com Orígenes que nasce o «discurso teologal», um discurso que deixa de ser - apenas e tão somente - discurso sobre Deus, para ser também sobre a sua Escritura.
E é assim que já desde Orígenes se começa o ouvir falar de sentido literal, de sentido moral (psíquico), e de sentido místico (pneumático). A partir daí se constitui a tríade que associa o literal, o tropológico e o alegórico, que nos conduzirá progressivamente à teoria dos quatro níveis de significação da Escritura: o literal, o alegórico, o moral e o anagógico.
Cabe lembrar-te aqui, Princesa de mim, o título da monumental obra de Henri de Lubac: Éxégèse Médiévale: les quatre sens de l´Écriture (Aubier, Paris, 1959-1964). Esta 1ª, como todas as outras edições seguintes, hoje praticamente esgotadas.
E vou levar-te, por Umberto Eco (agnóstico já quando escreveu a sua tese de doutoramento sobre São Tomás de Aquino), ao dominicano patrono da nossa teologia. Não seguiremos pelo caminho da análise mais profunda da evolução do pensamento medieval sobre os quatro sentidos da Escritura, surpreenderemos um momento revelador do foco e do rigor aquinenses.
Eco considera que São Tomás admite ser normal as Escrituras apresentarem-nos realidades divinas e espirituais - precisamente porque estas ultrapassam a nossa compreensão - sob o aspecto de coisas corpóreas: conveniens est sacrae scripturae divina et spirituali sub similitudine corporalium tradere (Summa Theologiae, I, 1,9). Quanto à nossa leitura do texto sagrado, Aquino diz que devemos procurar o seu fundamento literal e histórico: na verdade, tratando-se de história sacra, o literal é histórico, pois que relata um acontecimento compreensível (a saída dos Hebreus do Egipto, p. ex.) e este determina a narrativa. Illa vero significatio qua res significatae per voces, iterum res alia significant, dicitur sensus spiritualis, qui super litteralem fundatur, et eum supponit - "chamamos sentido espiritual a essa forma de significação pela qual as coisas significadas por meio de palavras vão, por sua vez, significar outras; tal sentido espiritual assenta no sentido literal, e pressupõe-no" (Summa Theologiae, I, 1, 10, resp.)
E Umberto Eco, percebendo que São Tomás designa por sensus spiritualis os diversos supersentidos que podem ser atribuídos a um texto, também entende que o Aquino vai direito à questão fulcral de interpretar o sentido literal como sendo precisamente a intenção do autor, ou seja, o sentido quem auctor intendit. E comenta então: Tal precisão é da maior importância para apreciarmos as posteriores manifestações da sua teoria de interpretação das Escrituras. Ao falar de sentido literal, São Tomás não fala de sentido do enunciado (do que um enunciado exprime pelo código linguístico a que se refere), mas, certamente, ao sentido que lhe é atribuído pelo próprio autor da enunciação. Em linguagem hodierna, se, numa sala cheia de gente, eu disser que «há muito fumo aqui», pode ser para afirmar (é o sentido do enunciado) que há fumo demais na sala; mas também posso querer exprimir a ideia (em função das circunstâncias da enunciação) de que seria oportuno abrir a janela, ou, então, deixar de fumar. É evidente que, para Tomás de Aquino, os dois significados são parte integrante do sentido literal, pela simples razão de que ambos pertencem a um contexto que o enunciador se propunha enunciar. Como duvidar então de que Deus, sendo o autor das Escrituras e, simultaneamente, capaz de apreender e interpretar uma data de coisas ao mesmo tempo, nada obsta a que possamos supor que haja, nas Escrituras, uma pluralidade de sentidos - plures sensus - nem que apenas em virtude só do rudimentar sentido literal?
Creio que poderei dizer-te, Princesa de mim, que esta análise é também pedagógica, porque nos desarma de preconceitos e nos põe a procurar responder às nossas próprias interrogações. Mas, sobretudo, pensossinto que nos ensina o respeito pelo texto e a humildade na sua leitura. Se reparares bem, é por assim nos tornarmos mais pequeninos que ganharemos altura para mais largo e livre entendimento do que nos é dado ler.
E quiçá algum recolhimento reflexivo sobre hiatos, obscuridades e interrogações, com que vamos diariamente deparando na babel leviana da "comunicação" contemporânea, nos pudesse ajudar - não só nem principalmente - a falar e escrever melhor, mas - sobretudo - a conseguir pensar e discorrer com mais construção e associação de ideias, em vez de repetirmos (ainda por cima através, tantas vezes, de neologismos disparatados e dispensáveis estrangeirismos que, para quem estiver atento, são denunciadores de ignorância e relaxamento mental) o que por aí se vai considerando e apregoando convencionalmente correto ou "poeticamente hermenêutico".
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira