CRÓNICAS LUSO-TROPICAIS
7. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO
CRÍTICAS E MÉRITOS (IV)
Importa analisar uma das acusações que com maior frequência é dirigida a Gilberto Freyre: a de ter concebido uma teoria neocolonialista.
Em textos anteriores destas Crónicas Luso-Tropicais (n.ºs 4 e 5), está expressa essa opinião e o seu raciocínio.
Iremos agora, por confronto, usar o exercício do contraditório, deixando ao critério do leitor a sua opção.
Em Junho de 1962, numa conferência do Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, Freyre demarca-se da posição do governo português, quanto à questão colonial, decorrido um ano após o início da guerra em Angola. Diz que o seu conceito de comunidade luso-tropical não é de natureza política mas sim sociológica, aberto a integrar no seu interior várias presenças nacionais, mostrando compreensão pelas aspirações de independência dos povos sob soberania portuguesa. Fala em comunidade luso-tropical, por confronto com a comunidade luso-brasileira defendida por outros, para nela englobar outras presenças nacionais, para além das duas existentes (Portugal e Brasil). Fala em pátrias independentes numa comunidade interdependente.
O presidente do Senegal, Léopold Senghor, insuspeito humanista africano, reconheceu os esforços Gilbertianos no sentido de ajudar os movimentos nacionalistas africanos das ex-colónias portuguesas na sua luta pela libertação nacional, não tendo o luso-tropicalismo contrário ao desejo de independência das colónias portuguesas de África.
Também os argumentos que GF usava contra o eurocentrismo e a competição norte-sul, são usados para o qualificar como paladino de uma perspetiva terceiro-mundista. As suas advertências para os perigos representados com os conflitos com culturas tecnicamente superiores, desde a ameaça proveniente do nazismo e fascismo, até ao capitalismo norte-americano e outros “novos imperialismos”, são exemplos tidos, para os seus defensores, como contrários ao desejo de qualquer neocolonialismo.
Mesmo no seio do mundo que o português criou, argumenta-se que GF censura o português quando representante do papel de opressor.
Para vários investigadores foi bastante frontal e firme na denúncia que fez em relação a vários aspetos por ele observados na condução da política colonial portuguesa centrada e dirigida da então metrópole. É conhecida a crítica contundente em que é destinatária a Companhia de Diamantes de Angola, denunciando os processos incivilizados que a concessionária de extração de diamantes impunha ao pessoal de cor ao seu serviço.
No seu livro “Aventura e Rotina”, acusa o dirigente da Companhia, Ernesto Vilhena, de dirigir “um sistema que em algumas das suas raízes e em várias das suas projeções não é sociologicamente português, prejudicado, como se acha, por um racismo que é de origem belga e por um excesso de autoritarismo que é também exótico em sua origem e em seus métodos” (Univer Cidade Editora, edição brasileira, p. 379).
E acrescenta:
“A tendência da Companhia dos Diamantes - e das companhias e empresas do seu tipo que operam na África portuguesa do mesmo modo que nas outras Africas - talvez seja para reduzir as culturas indígenas a puro material de museu. Os indígenas vivos interessam-nos quase exclusivamente como elementos de trabalho, tanto melhores quanto mais desenraizados de suas culturas maternas e mecanizados em técnicos, operários substitutos de animais de carga. A proletarização de tais indígenas, sua segregação em bairros para “trabalhadores indígenas” dentro de comunidades organizadas em pura função desta ou daquela atividade económica, constitui um dos maiores perigos para a gente africana do ponto de vista social e, ao mesmo tempo, cultural” (p. 384).
Embora acreditando na expansão de um método português baseado na convivência de relações pacíficas entre nações europeias e não europeias, não deixava de censurar e lamentar que isso não acontecesse muito na prática, dado que muitos portugueses nas províncias africanas, à época, renegaram as melhores tradições lusitanas, imitando condutas e preconceitos de alemães, belgas, ingleses e sul-africanos.
Não obstante todas as denúncias e reservas de Freyre relativamente à censura do Estado Novo e às práticas racistas da Companhia de Diamantes angolana, os seus críticos, mesmo reconhecendo-as, não as têm como suficientes para questionar a sua colagem ao governo metropolitano sediado em Lisboa.
Mesmo que com sérias reservas, quiçá ambíguas, transcrevem-se estas palavras de Jacinta Baptista, em História de Portugal, O estado Novo (III), voluma XVII, p. 62/3:
“É certo que Freyre visita Portugal e as suas principais colónias em 1951, quando António Ferro já não é Secretário da Propaganda e se encontra a prestar serviço diplomático na Suíça. Mas não é menos certo que o primeiro convite (recusado, como o segundo) para o sociólogo se deslocar a terras portuguesas partiu do entrevistador de Salazar e foi semente que, a seu tempo, acabou por germinar. O escritor brasileiro, que nada tinha de tolo, receara que o convite de Ferro “fosse um tanto comprometedor, no sentido em que são, de ordinário, os convites dos Secretariados Nacionais de Informação, mesmo quando deixam de se intitular de Propaganda. E acabou por aceitar terceiro convite, este dimanado do Ministério do Ultramar - tão apolítico em Portugal como é o Itamarati no Brasil”.
Finaliza, nos seguintes termos:
“Embora redundando num convite prestado à situação política então vigente em Portugal, não o terá sido inteiramente, na maneira em que, por exemplo, denunciou o regime concentracionário observado na Lunda (Angola) e os incivilizados processos que a companhia concessionária da extração dos diamantes impunha ao pessoal de cor ao seu serviço. E foi tão frontal na denúncia que o comandante Ernesto Vilhena, todo-poderoso administrador da Diamang, se viu constrangido a defender a companhia diamantífera em páginas cerradas de argumentação compradas como espaço publicitário do Diário de Notícias”.
29.11.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício