Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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1. Desgraçadamente, como disse o cardeal Carlo Montini, antigo arcebispo de Milão, também jesuíta e que o Papa Francisco quer seguir, a Igreja anda atrasada pelo menos 200 anos.
Este atraso é infeliz concretamente no que à pena de morte diz respeito. É uma vergonha, mas até 1969 no Estado do Vaticano existia a pena de morte. Podia não aplicá-la, mas estava vigente e só foi derrogada formalmente na Lei Fundamental em 2001 pelo Papa João Paulo II. E ainda constava até 2 de agosto de 2018 no Catecismo da Igreja Católica a legitimação da pena de morte. Felizmente, como aqui escrevi na crónica da semana passada, o Papa Francisco reescreveu esse artigo do Catecismo e quer que a Igreja faça campanha a favor do fim da pena de morte em todos os países e pronuncia-se contra a pena de prisão perpétua. "Nunca se pode castigar sem esperança; é por isso que sou contra a pena de morte e também contra a prisão perpétua interpretada como sendo "para sempre". Porque a todos deve ser dada a possibilidade de regeneração, a todos deve ser restituída a esperança.
2. Evidentemente, aqui chegados, coloca-se, concretamente ao crente, a questão da doutrina do inferno, que seria a condenação definitiva, eterna. Pergunta-se: alguém merece a condenação definitiva, eterna? Qual a relação entre uma liberdade finita no tempo e uma eternidade falhada, definitivamente, eternamente falhada? Uma pergunta imensa e dramática. A pergunta tem sentido, ao pensar na inscrição que, segundo A Divina Comédia, de Dante, na linha do "dogma" católico, se encontra à porta do inferno: "Lasciate ogni speranza, voi ch"entrate" (abandonai toda a esperança, vós que entrais).
Dizia-me uma vez o filósofo Ernst Bloch, numa conversa em Tubinga: pensando no inferno, seria melhor não existirmos, e "todos os condenados no inferno estariam de acordo comigo". Aliás, o inferno seria o sofrimento eterno sem qualquer finalidade... De modo paradigmático, David Hume argumentou (socorro-me da citação feita pelo teólogo Andrés Torres Queiruga): "É inaceitável um castigo eterno para ofensas limitadas de uma criatura frágil, e, ainda por cima, esse castigo não serve para nada, uma vez que se dá quando toda a peça está acabada, concluída."
Na presença do Deus que é amor incondicional, como diz a Primeira Carta de São João, julgo que também é legítimo pensar e esperar que, seja qual for o mal feito, haverá sempre algum ato de amor de todos, de cada uma e de cada um, que permite a Deus recriar para a vida eterna feliz todos os homens e mulheres..., mesmo se as possibilidades não realizadas neste mundo - a vida aqui, na liberdade, tem de ser tomada a sério e com consequências - Deus não as possa eternizar, elevando-as à plenitude. Seja como for, a Igreja nunca declarou que alguém esteja condenado no inferno. A doutrina sobre o inferno diz apenas sobre a grandeza da liberdade e de como é necessário tomá-la eminentemente a sério.
Dada a importância do tema, permito-me explicitar. Seja como for, todas as pessoas, crentes ou não, perguntam pelo sentido último da sua existência, vivem a angústia da liberdade e a exigência radical da justiça - bem e mal não são equivalentes -, e foram atormentadas pelos horrores do inferno e sabem como isso serviu o poder da Igreja...
Houve um tempo em que o inferno era um tema central dos sermões. Teólogos e pregadores, aterrorizados por uma sexualidade reprimida, por dúvidas atrozes de fé, por uma agressividade latente, compensaram a sua própria angústia projetando-a sobre os outros. Tudo com a melhor das intenções. Afinal, se o que esperava os hereges, os judeus, as bruxas, etc., era sem dúvida o inferno (lembre-se a doutrina do Concílio de Florença, em 1442, segundo a qual quem está fora da Igreja Católica "cai no fogo eterno, preparado para o demónio e os seus anjos"), então deveriam arder desde já, até porque, mesmo que não fosse possível salvar as suas almas, pelo menos a sua morte, pela espada, pela tortura e sobretudo pelo fogo, serviria de advertência para outros e a sua salvação. Assim, escreve Hans Küng, "conversões forçadas, condenação dos hereges à fogueira, perseguições dos judeus, cruzadas, a paranoia das bruxas, guerras de religião em nome de uma "religião do amor", tudo isso custou milhões de vidas humanas". O terrorismo exercido sobre as consciências pelas torturas do inferno e a que se estava condenado por um único pecado mortal, um pecado que andava principalmente ligado ao sexo, serviu realmente para a manutenção do poder da Igreja, mas é bem possível que, como escreveu o historiador católico Jean Delumeau, "porque as Igrejas do Ocidente não prestaram atenção suficiente aos argumentos dos "hereges" que recusavam acreditar na eternidade do inferno, se produziu desde o século XVI um movimento de recusa do cristianismo, identificado pelos libertinos como uma teologia do Deus que castiga".
Mas bem e mal não se identificam. Se a história tem um sentido, ele só pode ser o da liberdade. Então, o que se chama o dogma do inferno, na sua dramaticidade, diz: és livre, não tens a salvação assegurada automaticamente, podes falhar radical e definitivamente o sentido da tua vida. Quando olhamos para a história da humanidade, com todo o seu cortejo de horrores, de crimes, de infidelidades, de crueldade gratuita, de suor, de lágrimas, de sangue, de desespero, de traições, de desprezo, de indiferenças, de guerras, de massacres, de genocídios, de aviltamento, de torturas, causados por homens e mulheres a outros homens e mulheres e, concretamente, inocentes, de tal modo que a existência se tornou para eles absurda, um verdadeiro "inferno", compreendemos e exigimos, desde a raiz do nosso ser, que o algoz e a vítima não podem ter a mesma sorte.
Por paradoxal que pareça, o dogma do inferno é a proclamação mais radical da liberdade. O inferno como possibilidade real para mim é advertência para a seriedade radical da existência livre, que de modo nenhum pode ser reduzida a bagatela ou vulgaridade. Neste sentido, o inferno não significa o castigo da tortura infligido "de fora" por um Deus implacável e sedento de vingança, mas o falhanço total da existência a que o homem pode autocondenar-se. Então, como interpretar teologicamente o inferno?
Deus não condena ninguém, porque Deus é só Amor. Pode a pessoa autocondenar-se ao inferno? Significativamente, a Igreja nunca declarou que alguém em concreto esteja no inferno, nem mesmo Judas ou Hitler. No caso-limite de haver realmente alguém que se feche radical e obstinadamente ao amor, excluindo definitivamente Deus, então, não podendo, na morte, ser encontrado por Deus, porque o não aceita, anula-se definitivamente. Este é o "inferno" enquanto "segunda morte", de que fala a Bíblia: o homem ou a mulher radical e obstinadamente maus não participam na plenitude da vida eterna de Deus, mas também não são eternamente torturados, pois, pela morte, simplesmente já não existem. Na morte, os maus são entregues à sua própria lógica: para eles, não pode haver vida eterna: a sua morte, escreveu o grande teólogo E. Schillebeeck, "é realmente o fim de tudo", o nada puro e simples, a morte definitiva, eterna.
O teólogo Andrés Torres Queiruga pensa, com razão, que se pode esperar mais e ir mais longe. Ninguém é absolutamente mau, e poderá a liberdade finita ter "uma opção tão absoluta que a leve a escolher o nada?". Assim, "conjugando os dois polos - um Deus que quer fazer tudo para salvar e uma liberdade que é limitada -, chegar-se-ia a uma autêntica mediação: Deus salva quanto e na medida em que "pode", isto é, quanto a liberdade finita lhe permite. Dado que esta não é total, Deus salva aquele resto de bondade que parece não poder ficar anulado por nenhuma ação má. Haveria, portanto, condenação real e definitiva, pois perde-se tudo aquilo que não se permite a Deus salvar, mas desapareceria a desproporção que parece intolerável entre o finito da culpa e o infinito das consequências". Há salvação, mas com "perda eterna de possibilidades, plenitude e felicidade": a pessoa empequeneceu-se por sua culpa e estará eternamente "menos realizada do que poderia".
Este é o sentido de eu dizer: não há inferno. Para maior explicitação, permito-me remeter para o meu recente livro: Conversas com Anselmo Borges.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 17 NOV 2019
Toda a arte é bicéfala: já vi, em muitos filmes, aparecer a cabeça do autor e rolar depois, no ecrã, outra cabeça, a da própria obra.
Em Outubro de 1986, no aeroporto de Lisboa, vi pela primeira vez aparecer a cabeça de Michelangelo Antonioni. Pareceu-me ver, na elegante serenidade da cabeça dele, a cabeça dos seus filmes.
Mesmo cercado pela simpatia de Luís de Pina e João Bénard, Antonioni, cujo ciclo na Cinemateca organizei, parecia o menos exuberante dos nossos convidados.
Os seus filmes, a começar pela célebre trilogia de silêncio angustiante em que até a paisagem tem crises existenciais, são filmes sobre a incomunicabilidade e a solidão.
Porque razão um homem de beleza adriática, discretamente hedónico, muito atraente para as mulheres, faria filmes tão misteriosamente escassos e rarefeitos?
Adiante. No fim-de-semana, levámos Antonioni a visitar a euforia arquitectónica do Palácio da Pena. Antonioni regalou-se com o exterior e seguiu para a visita guiada do interior. Éramos cinco ou seis e permiti-me ficar cá fora a fumar o meu cigarro imaginário.
O guia fechou a porta e eu desandei a pensar que a obscena verdura do Outono em Sintra mais depressa pedia um cineasta irlandês do que um italiano de Ferrara: em que deboche é que a natureza tinha passado o Verão para que agora montanhas e vales desabrochassem assim? Era o que pensava quando, sobre a minha perplexa cabeça, se abriu uma janela do Palácio e dela irrompe uma perna coberta pelo melhor corte italiano, a perna de Antonioni. A altura era razoável e a firme decisão dele para saltar pedia ajuda. Dei-lha e o cineasta aterrou são e salvo.
O que se passou o que não se passou, e Antonioni conta-nos que fechar-se atrás dele a porta lhe evocara um trauma terrível. Durante a Guerra, a militância política tornara-o um alvo para os nazis que controlavam Itália. Escapou escondendo-se numa cave. Ficou três meses entre quatro paredes, incomunicável. Nunca mais pudera ouvir fechar-se uma porta atrás de si.
É a memória desse medo que está em “L’Avventura”, “L’Eclisse” e “La Notte”? É a cabeça de Antonioni fechada numa cave o que vemos no olhar de Monica Vitti e Jeanne Moreau, no desterro arquitectónico dos filmes a que se chamou a “trilogia dos sentimentos”?
À noite, ao jantar dado pelo embaixador de Itália, veio também Manoel de Oliveira. Com a graça brejeira que a idade autoriza, Oliveira contou uma anedota, Antonioni respondeu com outra. E durante uma hora contou as mais impensáveis barzelette, sofisticadas, a roçar o obsceno, de carabiniere e maridos traídos. Vimos outra cabeça de Antonioni, a que nunca ele deixou aparecer em nenhum dos seus filmes.
(Não disse. No palácio, a minha linda mulher, claustrófoba impenitente, saltou logo a seguir. Se era rapto, acabou logo ali.)
Guilherme d'Oliveira Martins fez o elogio de Edgar Morin na sua presença no Instituto Piaget em Almada no passado dia 15 de novembro. Reproduzimos texto publicado pelo CNC em 2011.
A VIDA DOS LIVROS De 19 a 25 de dezembro de 2011.
Stéphane Hessel e Edgar Morin acabam de publicar «Le Chemin de l’Espérance» (Fayard, 2011), onde nos apresentam um alerta para os dias de hoje. A política, a economia, a sociedade e a cultura precisam de uma tomada de consciência cidadã no sentido da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade e da responsabilidade. Fala-se muito de indignação, e essa foi a palavra usada por Hessel, no entanto os dois autores, nonagenários mas de uma lucidez exemplar, propõem-nos uma nova esperança, assente na vontade emancipadora e da recusa da indiferença. O mesmo tem feito Eduardo Lourenço, agora justamente galardoado com o Prémio Pessoa!
FALAR COM EDGAR MORIN Foi há dias, em Paris, nas novas instalações da Fundação Calouste Gulbenkian, em La Tour Maubourg. Conversámos sobre o futuro da Europa. O convidado era Edgar Morin, e partilhei o diálogo com José Mariano Gago. Edgar Morin é um velho amigo de Portugal e recorda o momento, no início dos anos sessenta, em que, com Jean-Marie Domenach e nas proximidades do Congresso para a Liberdade da Cultura, de Pierre Emmanuel, começou a ter um contacto fraterno, que nunca mais seria interrompido, com António Alçada Baptista e o grupo de «O Tempo e o Modo». Depois das desconfianças dos anos quarenta e cinquenta relativamente a uma Europa de tecnocratas com conotações americanas, vieram novas circunstâncias. A Europa tornou-se oportunidade de aprofundar a democracia. A evolução a leste originou muitas perplexidades e dúvidas, a sul do velho continente havia uma opinião pública que se abria e se preparava para a democracia, depois, o choque petrolífero produziu uma nova consciência ecológica e obrigou a mudar de ideias e estratégias. Com Roselyne Chenu, braço direito de Pierre Emmanuel, presente no auditório de Paris, o pensador recordou esses encontros distantes, envolvendo oposicionistas ibéricos, tão diferentes como José Bergamín, Gil Robles, Dionísio Ridruejo ou Ruíz-Gimenez. Os jovens João Bénard da Costa e Helena Vaz da Silva tornaram-se facilmente referências de inovação e inconformismo e são lembrados com saudade. José Vidal-Beneyto vem à baila, como entusiasta de um projeto europeu, capaz de incorporar a história antiga do Mediterrâneo e a evolução moderna, desde às guerras civis às novas exigências da ciência, da educação e da cultura. É a memória de grandes amigos comuns que há pouco nos deixaram, mas cuja lição está bem presente. E como será possível falar hoje de Europa sem lembrar esses contactos, de diálogo e de afeto, de uma geração para quem estavam ainda bem vivos os efeitos dramáticos da Guerra e a exigência da construção da paz e da democracia, através da liberdade de homens e mulheres de cultura?
CRISE SEM ILUSÕES Hoje, a crise europeia é profunda e não admite ilusões. Morin não pode deixar de exprimir o seu pessimismo. Mas considera que não há saída pacífica e justa sem o aprofundamento dos elos europeus. A crise financeira que vivemos deve-se ao facto de a civilização do poder se ter sobreposto a uma civilização do diálogo. A ilusão, o imediatismo, o consumo exacerbado, o produtivismo, a indiferença ética, tudo isso contribuiu para chegarmos onde estamos. Em lugar de uma cultura de criação, impôs-se a especulação, a lógica de casino e a busca de ganhos sem sustentabilidade – enquanto outros poupavam nós gastávamos. A noção de um progresso sem interrupção nem limites gerou o fanatismo do mercado e a incompreensão sobre o facto de a humanidade ter de lidar com a consciência dos limites. Afinal, como o escritor diz na sua obra «La Voie. Pour l’Avenir de l’Humanité» (Fayard, 2011), celebrizada por Stéphane Hessel, há que compreender que existem elementos contraditórios que têm de ser articulados e tidos em consideração hoje: a mundialização e a desmundialização; o crescimento e o decrescimento; o desenvolvimento e o envolvimento; a conservação e a transformação. Edgar Morin fala-nos, por isso, de metamorfose como um processo complexo abrangendo a política, a sociedade, a economia e a cultura, em que vários fatores se influenciam, obrigando à compreensão da diversidade. Morin propõe, assim, a ideia de metamorfose, improvável mas possível, como alternativa à desintegração provável. A natureza está cheia de exemplos de metamorfoses – por exemplo, a lagarta encerra-se na crisálida, num processo de autoreconstrução. A noção de metamorfose é, deste modo, mais rica que a de revolução, uma vez que preserva a radicalidade transformadora, ligando-a à conservação da vida e à herança das culturas. Sendo impossível travar a tendência que conduz aos desastres, devemos pensar que as grandes transformações começam com uma inovação, uma nova mensagem marginal, modesta, tantas vezes invisível… Se a mundialização está na ordem do dia, não podemos esquecer que o local e o tribal existem como elementos, a um tempo, de coesão e de fragmentação, de proximidade e de distância. O crescimento económico torna-se insuficiente e perigoso, uma vez que desvaloriza a proteção dos recursos disponíveis e a sua renovação. O desenvolvimento humano tem de ser integrado e capaz de ligar a coesão, a confiança, o capital social e a solidariedade. Conservação e transformação vivem ligadas uma à outra, o que obriga à criatividade e ao «conhecimento do conhecimento», como impulsionadores da compreensão.
O PROVÁVEL E O IMPROVÁVEL O escritor considera que a catástrofe pode estar no horizonte, mas acredita em que é possível inverter o curso dos acontecimentos. E recorda dois exemplos marcantes de tempos muito diferentes. A resistência vitoriosa por duas vezes da pequena cidade de Atenas perante o poder formidável dos persas, cinco séculos antes da nossa era, foi altamente improvável, mas permitiu o nascimento da democracia e da filosofia. Do mesmo modo, foram tão inesperados como improváveis o atraso e o congelamento da ofensiva alemã em Moscovo no Outono de 1941 e depois a contraofensiva vitoriosa de Jukov em 5 de Dezembro, seguida no dia 8 pelo ataque a Pearl Harbour que fez entrar os Estados Unidos na Guerra. A História reserva-nos inúmeros exemplos que nos permitem alimentar esperanças, desde que haja capacidade de autocrítica e mobilização de vontades, em torno de objetivos inteligentes e justos. Terêncio é chamado – temos de entender que nada do que é humano nos pode ser estranho. E quando alguém pergunta o que é a identidade europeia, Edgar Morin recorda a sua ideia de uma «comunidade de destino», capaz de congregar a consciência das diferenças e a importância do outro. Prefiro usar a expressão comunidade plural (e democrática) de destinos e valores. E se falo de «comunidade», dou-lhe o sentido de pessoa em comum (gesamtperson, de que falava Landsberg). A cultura é o que diferencia e a civilização é o que difunde a criatividade humana. A identidade corresponde, assim, à exigência de um caminho comum e partilhado. Impõe-se perceber que, na expressão de Denis de Rougemont ou de Daniel Bell, o Estado atual é grande e pequeno demais para responder aos problemas contemporâneos. Quando surge, por fim, a pergunta sobre o que caracteriza uma ética europeia, na linha de Montaigne, E. Morin responde que o universalismo e a capacidade autocrítica são as características europeias fundamentais. Precisamos, no fundo, de uma Europa criativa e imperfeita, aberta ao mundo, universalista e cultora da crítica, capaz de incorporar um caminho que possa favorecer a ideia fecunda de metamorfose!
A obra de Mário Cláudio é multifacetada e rica. Eis por que os cinquenta anos de vida literária merecem especial atenção. Desde a poesia de “Ciclo de Cypris” (1969), encontramos uma criteriosa escolha de temas e uma permanente interrogação sobre vida, sentimentos, pessoas, artistas, escritores, poetas – certos de que o autor vai sempre descobrindo novos fatores para a compreensão do género humano.
ESCREVER E TRANSFORMAR-SE Tenho uma especial estima pessoal por Mário Cláudio, como o próprio bem sabe. Sou um seu leitor fiel, de há muito, e não esqueço a sua hospitalidade, em outubro de 2010, em Paredes de Coura, com Manuel Villaverde Cabral e Maria João Avillez, quando também pudemos falar dos edifícios desenhados por Joaquim Pedro Oliveira Martins, graças à influência do Conselheiro Miguel Dantas, sogro de Bernardino Machado. E, falando do Centro Mário Cláudio, não esqueço a longa evocação que fizemos dos nomes da literatura galaico portuguesa cuja memória encontramos dos dois lados da fronteira do Rio Minho: Aquilino Ribeiro, com a Casa Grande de Romarigães, Tomaz de Figueiredo, com a casa de Arcos de Valdevez; e do outro lado da fronteira, Camilo José Cela, Rosalía de Castro, Ramón del Valle-Inclan, Emília Pardo Bazán. Poderá, pois, compreender-se que a minha admiração por Mário Cláudio tenha raízes fundas… “Escrever é transformar-se continuamente. Não só escrever. A vida é uma constante transformação. Digamos que a escrita é mais o espelho dessa mutação em que nós estamos inseridos e que nos acompanha ao longo de toda a vida, e é um espelho onde se reflete uma imagem que, inclusivamente, não pode ser proveitosa, porque nos dá conta da dinâmica dessa evolução e nos permite corrigir determinados caminhos, aqui ou além, e enveredar por aquilo que nos parecer mais adequado, também de vez em quando” (JN, 19.7.17). Isso é evidente, quer quando o romancista descobre uma personagem histórica, quer quando se debruça sobre si mesmo, criando figuras imaginárias, que beneficiam da sua própria experiência. Lembramo-nos de Tiago Veiga e compreendemos como muitos leitores ficaram perplexos, com uma tão grande soma de elementos reais. Se Tiago Veiga não existiu, poderia ter existido; e se existiu é composto de vários elementos concretos, que encontramos nos meios literários e em figuras que resultam de vários elementos que se associam de modo verosímil, numa recriação notável da realidade humana.
AUTOBIOGRAFISMO… Se lermos “Astronomia” (2015) é, no entanto, a perspetiva claramente autobiográfica que prevalece, no sentido propriamente dito. Mas também deparamos com as verdadeiras biografias romanceadas de personalidades marcantes reveladoras não apenas de figuras reais, mas também de uma descrição rigorosa dos ambientes e da vida quotidiana – como nos casos de “Amadeo” (1984), “Guilhermina” (1986) e “Rosa” (1988). Como prosador dotado, Mário Cláudio faz da literatura um modo de compreensão da vida e da sociedade. Daí partir nestes três casos de perspetivas diferentes da criação artística – desde o modernismo erudito de Amadeo de Souza Cardoso à uma dotadíssima expressão popular de Rosa Ramalho, passando pelo talento único que tinha Guilhermina Suggia. E a aura da genial intérprete fica enriquecida com a prosa de Mário Cláudio. E sentimos que estamos a participar numa ação parcialmente verídica e imaginosa, que sentimos como possível. “Camilo Broca” (2006) é a invocação da genialidade de Camilo Castelo Branco através do meio em que viveu desde a sua infância. Mais do que a história é também uma subtil homenagem ao universo de Agustina, com que Mário Cláudio tanto se compara e que admira (com cuidosas distâncias), em estreita relação com o romancista de “Estrelas Propícias”. Quando lemos “Triunfo do Amor Português” (2004), prefaciado por Agustina, vemos como a culpa assume papel fundamental no intenso fundo lírico desta cultura aberta ao Atlântico, com a presença de Pedro e Inês, Leonor Teles e Andeiro, Camões e a Infanta D. Maria, Mariana Alcoforado e o Conde de Chamilly, D. João V e Madre Paula, Tomás António Gonzaga e Marília de Dirceu, a Severa e o Conde de Marialva, Camilo e Ana Plácido, D. Pedro V e D. Estefânia, António Nobre e Alberto Oliveira… E assim a imaginação do romancista resulta da capacidade de associar elementos aparentemente contraditórios que procuram fazer sentido, como no caso de “Memórias Secretas” (2018), no qual recorre à “banda desenhada” e reinventa personagens – Corto Maltese, Bianca Castafiore e o Príncipe Valente aproximam-se de nós e descobrimos relações inesperadas. E falando, por fim, do “Tríptico da Salvação” (2019), em que intervêm figuras históricas, como Lutero e Lucas Cranach, não é tanto o romance histórico que interessa, mas a consideração das personagens envolvidas. Lutero é o homem inconformista, a um tempo conservador e reformista, que interessa ao romancista, até porque entra em choque simultaneamente com o Imperador e o Papa. Por outro lado, a admiração de Lutero por um grande pintor como Cranach, leva-o a evoluir na reflexão sobre o sentido da representação de imagens contra o entendimento inicial.
ESCRITOR E PEDAGOGO A propósito de “Astronomia”, Mário Cláudio afirmou: “Quando digo que sou escritor incluo nisso todas as dimensões de atividades da minha vida. A docência é a continuidade da minha atividade de escrita. É como se estivesse a escrever a vida com outras pessoas ou a escrever na alma delas e elas na minha alma. Aprende-se muito através da docência. Aquilo que se recebe é talvez mais do que aquilo que se dá. Não era um professor facilitante, era bastante exigente, muito austero. Havia pessoas que se davam bem, outras não. Sempre validei as pessoas que trabalhavam mais. Não há que fugir a isso. E isso às vezes cria atritos. Mas devo dizer que olhando retrospetivamente, nos encontros com ex-alunos, tenho consciência que ficou uma réstia de amizade e afeto com todos eles”. É muito importante esta afirmação, de quem faz da sua escrita um caminho permanente de aprendizagem, vista como uma permanente troca de experiências. Longe da ideia do “magíster dixit”, o escritor, como o educador e o romancista têm de ganhar autoridade no modo como exercem o seu magistério – e o escritor que assim se apresenta refere a exigência como algo de natural e necessário, e o certo é que literariamente encontramos a mesma preocupação, bem evidente numa escrita rigorosa e atraente… Nesse ponto, apesar de admirar a figura e a obra e Agustina, põe as distâncias que o levaram naturalmente a trilhar caminhos diversos, nalguns pontos convergentes mas menos filosofantes, que um dia testemunhei, quando pudemos, de algum modo, partilhar um extraordinário convívio, com a própria Agustina, num memorável jantar portuense.
Lembrei-me agora de uma frase de Umberto Eco, mas não me recordo de quando nem onde a li:
«A galinha é um artifício de que o ovo se serve para produzir outro ovo».
Eis um mote para muitas glosas. Já li algures que até Aristóteles se pronunciou sobre o dilema, e terá concluído que a galinha antecedeu o ovo. Talvez, minha Princesa de mim, concluas o mesmo, pensando que Deus criou todos os seres, especialmente os vivos, entre eles os galináceos, dando-lhes os meios necessários à respetiva reprodução... Não vou discutir tal raciocínio, mas permitir-me-ás recordar-te de que, apesar de tantos cientistas se terem debruçado sobre esse facto-questão que é a origem da vida, e terem até concluído conjunções de fatores necessários à sua emergência, ainda ninguém explicou cabalmente a partir de quê e como elas se deram... Daí discorro que, «ovistas» ou «galinhistas», ficamos na mesma. Exceto no artifício... O evolucionismo propõe que um(a) pré-galináceo(a) tenha posto um ovo, o qual, em vez de pré-galinacear, tomou as suas liberdades e abriu-se em pinto. O criacionismo fecha-se então em copas, e clama que Deus só criou a vida, sem que saibamos bem como: ovo ou galinha, que importa? Assim, qualquer aborto voluntariamente provocado será um assassínio. E de artifício em artifício irá a nossa mente peregrinando.
Todavia, e não sei bem porquê, para mim foi sempre mais intrigante a questão da questão, isto é, a razão de nos interrogarmos sobre o ovo, a galinha e a vida... afinal, Princesa, sobre o que somos, donde viemos, para onde vamos. Jovem adolescente, comprei certo dia um postal que reproduzia um quadro de Paul Gauguin, pintado em Tahiti, em que a questão aparece posta pela própria inocência desnuda de corpos humanos. Comecei então a interessar-me pelo que Teilhard de Chardin investigava como La Place de l´Homme dans la Nature, isto é, por tentar perceber, não só como surgira a vida, mas como dela nascera a inteligência. Primeiro, enquanto capacidade potencial de entender e, finalmente, como estado ou condição humana, ou seja, enquanto propriamente entendimento, visão organizada, explicação da pessoa e da sua circunstância, o mundo à sua volta.
Nessa altura, fiz outra leitura da narrativa do Génesis sobre a expulsão do ser humano (homem e mulher) do Paraíso. Na verdade, deveu-se tal (e tão grande) castigo à desobediência ou violação do princípio divino de não poderem comer do fruto da árvore do conhecimento, pois assim se libertariam do estado original de inocência, e se poriam a caminho de uma nova condição: a de quem terá de padecer as torturas de sucessivas interrogações para ir tentando aproximar-se de um estado, conquistado a custas próprias e já não mais inocente, de participação do entendimento divino. Lê, Princesa de mim, este saboroso trecho bíblico (Génesis, 3, 4-11), que te traduzo a partir da resposta da serpente à afirmação de Eva de que «Nós podemos comer frutos das árvores do jardim, mas não da que está no meio do jardim, porque Deus disse: "Não comereis desse fruto, nem lhe tocareis, sob pena de morte!":
A serpente replicou: "Nada disso, não ireis morrer! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes,se abrirão os vossos olhos e sereis como deuses que conhecem o bem e o mal". A mulher percebeu que o fruto da árvore era bom de comer e agradável à vista, e que aquela árvore era desejável para adquirirem o discernimento. Colheu um fruto e comeu. Também deu um a seu marido, que com ela estava, e ele comeu. Abriram-se então os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus. Por isso ataram folhas de figueira para fazerem tangas. Ouviram os passos de Yahvé Deus, que passeava pelo jardim gozando a brisa, e o homem e sua mulher esconderam-se de Yahvé Deus, no meio das árvores do jardim. Yahvé Deus chamou pelo homem: "Onde estás?" Ouvi os teus passos no jardim, respondeu o homem, e tive medo porque estou nu, e escondi-me. "E quem te disse que estavas nu? Queres dizer-me que comeste do fruto da árvore proibida?".
Pessoalmente, gosto de continuar a leitura bíblica deste texto bem mais adiante, já no capítulo 12 do Génesis, 1, quando se fala da vocação de Abraão: Yahvé disse a Abraão: "Deixa o teu país, a tua parentela e a casa de teu pai, pelo país que te indicarei!" Teologicamente, penso eu, pode enraizar-se, neste passo, o início do discurso bíblico da Redenção, que desde logo surge, também, como aventura humana de regresso do exílio - tema que, aliás, vai estando presente, de várias formas e narrativas, em toda a Bíblia, incluindo na voz de Jesus, quando repetidamente fala do seu próprio regresso ao Pai. Condenados a ganhar o pão com o suor dos nossos rostos, também pela procura do conhecimento, em cumprimento da nossa vocação de descobridores, nos vamos chegando à visão final do princípio da vida e do percurso da história.
Pesar-nos-á, entretanto e sempre, a sucessão de ovos e galinhas que vai pautando o andamento lento, por vezes sinuoso, ou mesmo hesitante entre tantos semáforos, do trânsito da nossa aprendizagem e conhecimento. Mas não esqueçamos que a própria ciência humana é um artifício, como galinha para ovo. E até acontece não sabermos, nem tampouco prevermos, o que sairá do ovo que tal galinha põe. A evolução da nossa ciência tem fases de desenvolvimento quase linear e previsível, enquanto se vai esgotando uma opção, um método, uma tecnologia. E também tem crises, ou tempos de rutura e mutação, quando se lhe abrem outros horizontes, aproximáveis por métodos diversos, exploráveis por tecnologias novas. Em vários campos do labor científico, desde a investigação do cancro à aventura espacial. Assim continua interrogando o pensarsentir humano, e será, quiçá, no tempo, o nosso modo de perseverar no ser que somos. A ciência não nos dá, creio que jamais dará, o ser, mas vai mantendo em andamento, de ovo para galinha e de galinha para ovo, este misterioso aparelho do nosso entendimento. É por fazê-lo que muitos cientistas se abrem à contemplação do mistério, aqui entendido como realidade presente no nosso horizonte, e que incessantemente interrogamos sem por agora chegarmos à resposta final, isto é, à que plenamente seja certeza que nos satisfaça. Por aí também poderemos perceber que nenhuma religião consegue ser fábrica de certezas definitivas, mas que a fé pode alimentar as forças do nosso percurso em busca da verdade, por quanto possa ser esse sustento das coisas que hão de vir. A fé - aquela que nos anima de contemplação e perguntas e torna ser crente mais estimulante e laborioso do que ser ateu. A famosa frase «nunca encontrei a alma na ponta do meu bisturi» não está errada, está certa - mas também não serve de critério epistemológico. Tal como pretender-se que «ser cristão (e, acrescento eu, outro crente ou agnóstico ou ateu) é um risco e ser humano um grande risco» é uma banalidade pretensiosa, já que a condição humana é, evidentemente, uma condição inata e involuntária, enquanto qualquer opção religiosa ou filosófica, como todas as orientações que tomemos na vida, são opções pessoais e, nessa medida, arriscadas. Aliás, em qualquer caso, não se podem sobrepor os motivos: posso declarar-me cristão por receio ou temor, por tradição, educação ou necessidade de certezas abonadas, como por livre escolha de um caminho de descoberta. E todas essas opções, como todas as outras, são um risco assumido, nunca podem ser uma condição imposta. Aqui e agora, a nossa inteligência padece das suas próprias limitações, e das da sua circunstância. Habitando o tempo e o espaço, é posta a funcionar no e com o mensurável. Assim me parece, atrevo-me a dizê-lo, um artifício natural - o qual é, evidentemente, condição paradoxal. Mas, na verdade, discorremos necessariamente no tempo e no espaço, categorias mentais artificiais que, todavia, surgiram como indispensáveis ao funcionamento intelectual do ser humano naturado. Ora, no infinito, como na eternidade, nem tempo nem espaço fazem qualquer sentido, pois apenas a imensidão será medida certa. Quando ouço falar de vida eterna - ou da sua negação - pensossinto sempre que, quer a imaginemos como este mundo que conhecemos finalmente despido de todo o mal, quer como fim definitivo de todos os nossos horizontes atuais, nos esquecemos, nessa fé ou na sua negação, de que a vida eterna não tem duração nem limite, habita algo que a nossa inteligência atual não é capaz de compreender: o Reino de Deus, já Jesus nos dizia, não é deste mundo, porque é imenso. E imenso quer precisamente dizer sem medida.
A talho de fouce, recordo, Princesa de mim, como aquele dito de Jesus a Pilatos, que o interrogava, tem sido - até por muitos católicos - interpretado como se não enquadrasse neste mundo o Reino de justiça, amor e paz, reservado para o "outro mundo". Mas a Boa Nova ensina-nos que só neste tempo e nesta hora nos é dada a oportunidade de praticar esse amor do próximo que, de acordo com os relatos evangélicos das bem-aventuranças e do juízo final, será o critério de entrada de qualquer de nós no Reino do Imenso onde, sem constrangimentos, só a Vida está e, finalmente, é. Aliás, a esta carta que, alegremente encetada como glosa a uma frase do Umberto Eco, acabei por levar às portas de uma meditação especulativa, falta acrescentar a funda impressão, que já tantas vezes te confidenciei, em mim aberta e em mim deixada por pensarsentir, no caso da humana vida e morte, como entre esta e a vida que temos não há que procurar nem ovo nem galinha : ambos intimamente se confundem. Na verdade, a vida só nasce da morte depois da morte da vida, posto que, no seu início terrenal, esta é transmitida por outra vida. Ou, quiçá, em razão da necessidade fatal de gerar vidas que possam suceder a outras mortes futuras, já que também só neste mundo se faz história. Lembro sempre a assertividade de Georges Bataille: L´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort... E, afinal, não poderemos nós dizer, parafraseando o começo do Evangelho de S. João, que no princípio era a Vida ? Noutra carta, talvez contigo me interrogue sobre quem nasce primeiro: se o beijo que o revela, ou o amor que o dá. Por alguma razão muitos de nós toda a vida se recordam do seu primeiro amor, do primeiro beijo. E alguns sussurrarão o refrão daquela tão simples canção do Georges Brassens: Jamais de la vie / on ne l´oubliera / la première fille / qu´on a pris dans ses bras... Foi esse beijo que deu vida ao amor, ou o amor que acendeu o beijo?
Aqui se invoca a criação e produção dramática de Jorge de Sena, no centenário do seu nascimento, referido numa vasta série de artigo de diversos estudiosos, publicados no jornal Público. E desde já se recorda que Sena, nascido em 1917, faleceu em 1978, decorridos então exatos 40 anos.
Foi, pois, uma morte prematura. Mas, prematura também foi a primeira criação dramatúrgica, chamemos-lhe assim, de Sena, a peça, “Luto”, escrita em 1938 numa linha realista-naturalista, tal como tivemos já ensejo de referir.
Assinale-se que Sena tinha então 18 anos e que na época o teatro português nem sempre marcava pela inovação: daí que tenhamos já sublinhado nesta peça uma “toada realista – naturalista” que de facto destaca-se no conjunto da obra dramática do autor.
Eugénia Vasques, num livro dedicado a Jorge de Sena, assinala uma série de projetos teatrais não concretizados ou pelo menos não publicados. Cita alguns títulos: “Luto”, “Origem”, “O Arcanjo e as Abóboras”, “Bazajeto e a Revolução”, “A Demolição”... em qualquer caso, assinala-se o notável estudo dedicado ao autor e à sua vasta obra. (Eugénia Vasques, “Jorge de Sena: Uma ideia de Teatro”, ed. Babel 2015).
No que me diz respeito, dediquei ao teatro de Jorge de Sena uma referência desenvolvida na “História do Teatro Português” publicada em 2001 (ed Verbo): na altura própria retomarei a análise então efetuada. Mas entretanto, vejamos outras referencias e análises.
Assim, como adiante se desenvolve, Luiz Francisco Rebello destaca certa influência do surrealismo subjacente à dramaturgia de Jorge de Sena. De certo modo, a linguagem implica como que uma modernização da expressão dramática, dentro dos condicionantes do próprio temário, por um lado, e da estética coerente com a expressão literária do autor, aqui obviamente condicionada pelo potencial cénico subjacente.
Nesse sentido, Luiz Francisco Rebello em “O Jogo dos Homens” (ed. Ática 1971) refere concretamente que o teatro de Jorge de Sena assume expressões que, citamos, “direta ou indiretamente se reconduzem à estética e à ética do surrealismo”. E mais acrescenta, agora em “O Teatro Simbolista e Modernista” (ed. ICP 1979), que esse grupo efetivou transição/modernização, pelo espetáculo, de obras e autores que, na potencialidade dos textos e na efetivação das encenações, marcaram uma à época bem significativa renovação do teatro em Portugal.
Não por acaso, o conjunto do teatro de Sena, se em certos títulos efetivamente reflete estéticas e expressões dramatúrgicas marcadas por certas opções, no seu conjunto e na coerência expressa ou implícita, assume uma constante de modernidade e inovação que marca dessa forma o teatro português.
Refira-se o conjunto dessa dramaturgia, tal como dela há noticia:
“Luto” (1938), “O Indesejado-António Rei” (1945), “Amparo de Mãe” (1948), “Ulisseia Adúltera” (1948), “A Morte do Papa” (1964), “O Império do Oriente” (1964), “O Banquete de Dionísios” (1969), “Epimeteu ou o Homem que Pensava Depois” (1971).
Retomaremos o tema sobretudo a partir da reanálise desta dramaturgia, que já desenvolvemos na “História do Teatro Português”.
Aí referiremos então as colaborações dramatúrgicas de Jorge de Sena na rádio, no Teatro Experimental do Porto e nos então denominados Companheiros do Pátio das Comédias.
E nesse sentido, retomaremos a análise abrangente do teatro de Jorge de Sena no ponto de vista da sua própria criação.
5. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO CRÍTICAS E MÉRITOS (II)
Cláudia Castelo emerge com a sua análise crítica na tese de mestrado “O Modo Português de Estar no Mundo: O luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961)” (Porto, Edições Afrontamento, 1998).
Entende que o Estado Novo usou o luso-tropicalismo para fundamentar a presença de Portugal em África, com a aceitação de Freyre.
Sublinha que duas obras que versam sobre a temática do luso-tropicalismo, como “Integração portuguesa nos trópicos” e “O luso e o trópico”, de 1958 e 1961, respetivamente, foram “encomendadas” e publicadas por organismos do Estado português. A primeira, pela JIU, fazendo parte da coleção ECPS. A segunda, pela Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, no decurso do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos. Segundo as suas palavras “O Estado Novo utiliza estes livros, supostamente científicos, como instrumento de propaganda e de legitimação da sua política colonial. Se a manipulação político-ideológica é exterior aos textos, no interior dos textos radica a sua possibilidade. O autor não deixa de ser conivente com esse processo” (p. 37).
Tendo o luso-tropicalismo como uma ideologia, em face da manipulação feita pelo Estado Novo do pensamento de Freyre, sustenta que a sua natureza supostamente científica resulta, sobretudo, graças à propaganda salazarista, adquirindo então uma credibilidade excessiva, ajudando a perpetuar uma imagem mítica da identidade cultural portuguesa. Critica os pressupostos de que parte, baseados em lugares comuns sobre o caráter positivo e imutável do português, bem como os apriorismos sobre o seu modo de ser e de estar no mundo, via anunciação de uma civilização ideal.
Assim, “A comunidade luso-tropical de que fala GF nunca deixou de ser um mito e uma aspiração. O luso-tropicalismo (à semelhança dos seus “sucedâneos” portugueses) foi inventado “de costas voltadas” para os factos históricos e para a totalidade concreta. No entanto, perante a existência de práticas que “desmentiam” o modelo luso-tropicalista, Freyre ilude o problema: considera que não é a validade do modelo que está em causa; essas práticas é que contrariam a “tradição portuguesa”” (p. 140).
Critica também a tendência gilbertiana de tomar como referência a bem sucedida experiência da colonização portuguesa no Brasil, generalizando-a no sentido de dela tirar semelhanças aplicáveis às restantes colónias lusitanas. Esta tendência para a generalização, não se coaduna com a especificidade de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Índia Portuguesa, etc., porque “Realidades geográficas, étnica e culturalmente diferentes são-nos apresentadas como partes de um todo coeso e coerente” (p. 39).
Já o investigador e jornalista português Jacinto Baptista, após se referir a convidados e propagandistas estrangeiros do salazarismo, afirma que casos houve em que a “festança e papança” não se limitou ao retângulo continental europeu, tendo tido como caso mais notório o da viagem de Freyre, “o inventor e propagandista do luso-tropicalismo, a grande parte de o mundo que o português criou (…) e de que veio a resultar a alentada obra intitulada “Aventura e Rotina” (“História de Portugal, O Estado Novo (III), volume XVII”, p. 62).
De novo aqui venho com a escrita de Maria Judite de Carvalho e a unidade perspicaz que o seu movimento interior expõe e que continua, desmedidamente, a revelar um frondoso poder de comunicar, também na constante descoberta do ser-se singularmente estranho às ideias e aos sentires dos quais nascemos e àqueles face aos quais somos obrigados a fazer frente.
Uma noite, um mosquito marcou a sua presença, acordando-a de um forte pesadelo. Imaginou-se ainda sem vigília total, a aguardar entender o ruído de um fantasma?, de uma dor que tinha pés?, de uma madeira a estalar?, de um grito?, daqueles que se nos atravessam na garganta porque não o possuímos na totalidade?, de um estalo de tempo mais curto que o tempo, impercetível de ser entendido?, e não, nada disto, eis, agora de luz acesa, bem visível um mosquito que passa, leve como um destino sem angústia.
Todavia o ruído que a acordou enerva-a, e montando uma breve cilada, mata com destreza o mosquito imprevidente ou optimista.
O sono não voltava. O minúsculo ser tinha-a libertado do horrível pesadelo. Ela matara-o. Restou pó no lençol? Se sim, sopra-se.
Sopramos igualmente as pessoas e elas sopram-nos: às vezes sem que tenhamos sido sequer irritantes.
O Mosquito, encontra-se no IV volume das obras completas de Maria Judite de Carvalho para a Minotauro, e são estas obras também a possibilidade de analisarmos o tratamento aberto da acutilância com que ela espelha o seu anónimo quotidiano, a sua solidão profunda, a razão pela qual se morre por causa da razão dos outros, ou, «O Homem no Arame» não constituísse outra obra na obra em que a escritora se refere a Passárgada de Manuel Bandeira – Passárgada, Kelevim e outras terras – e não concluísse ela que o caminho aberto para Passárgada, face àquele homem, e a muitos, seria um caminho em que a descoberta fulcral…
(…)um homem para ter inventado o seu país mágico e para ter até ao fim da vida uma vergonha imensa de o dizer seja a quem for(…)
tem de nele
flutuar um sorriso em forma de barco,
apesar de todos os inúmeros apesares que vida diária lhe faça carrego, mas se por razão de nos seus olhos ferver uma luz, nada lhe deve ser possível perguntar e
Em 2017, celebrou-se os 150 anos da abolição da pena de morte em Portugal. Tive então na Universidade de Coimbra, a convite de José de Faria Costa, ex-Provedor de Justiça, uma intervenção sobre o tema, com o título “Teologia e Pena de Morte”. O que aí fica é uma síntese dessa intervenção, com alguns acrescentos posteriores, e gostaria, à maneira de intróito, de lembrar que os cristãos são discípulos de um condenado à morte, executado na cruz…
1. O que diz a Bíblia sobre a pena de morte? Há o mandamento: “não matarás”, com o sentido de “não assassinarás”. Mas, no Antigo Testamento, estavam sujeitos à pena de morte não apenas o assassinato, mas muitos outros delitos, como a idolatria, a blasfémia, a violação do Sábado, o homicídio, vários actos do domínio sexual, como o adultério, o incesto e a homossexualidade… “Se um homem cometer adultério com a mulher do seu próximo, o homem adúltero e a mulher adúltera serão punidos com a morte”. “Se um homem coabitar sexualmente com um varão, cometeram ambos um acto abominável; serão os dois punidos com a morte”. Etc. Mas, note-se, no Antigo Testamento, também se pode ler que a justiça de Deus é diferente da dos homens e, por exemplo, Caim, que matou o irmão, Abel, vai para o exílio e é marcado para que ninguém o mate.
Pelo contrário, no Novo Testamento, não há afirmações que refiram de modo claro, unívoco e contundente a pena de morte. De facto, por exemplo, a tentativa de justificá-la, recorrendo à citação de São Paulo na Carta aos Romanos, na qual se refere a obediência devida à autoridade do Estado que tem o poder da espada, é indevida, pois trata-se apenas de uma constatação e não de um estar de acordo com a pena de morte.
O que realmente verificamos no Novo Testamento é um salto qualitativo em relação ao Antigo Testamento. Pense-se na adúltera: “Quem entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra”, e Jesus enviou-a em paz. Toda a pregação do Sermão da Montanha, com as Bem-aventuranças, é um apelo ao perdão e à renúncia à violência. Contra a lei de talião: “Ouvistes o que foi dito: olho por olho, dente por dente”, Jesus diz: “Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra face. Ouvistes o que foi dito: deves amar o teu próximo e odiar o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem… Não julgueis para não serdes julgados. Pois com o juízo com que julgardes sereis julgados e a medida com que medirdes será a que servirá para vós.” Pedro perguntou: “Devo perdoar sete vezes? E Jesus: setenta vezes sete”, o que significa: perdoar sempre. Jesus na Cruz rezou: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, lição aprendida pelos discípulos, pois Santo Estêvão, por exemplo, nos Actos dos Apóstolos, enquanto o apedrejavam, também fez a mesma oração.
2. Neste enquadramento, é, portanto, necessário dizer que, para este debate sobre a pena de morte e o seu fim, o cristianismo foi fermento decisivo… No entanto, é preciso ao mesmo tempo dar conta da constatação de que, com excepção da Igreja primitiva, ao longo dos tempos, depois da viragem constantiniana da Igreja, a maioria dos teólogos não só não se opôs como foi favorável à pena de morte, e essa atitude ainda hoje é defendida por alguns.
Assim, no Catecismo da Igreja Católica, lê-se no nº 2266: “Preservar o bem comum da sociedade pode exigir que se coloque o agressor em estado de não fazer mal. A este título, reconheceu-se aos detentores da autoridade pública o direito e a obrigação de castigar com penas proporcionadas à gravidade do delito, incluindo a pena de morte em casos de extrema gravidade, se outros processos não bastarem. Por motivos análogos, foi confiado às autoridades legítimas o direito de repelir pelas armas os agressores da cidade. As penas têm como primeiro efeito compensar a desordem introduzida pela falta. Quando a pena é voluntariamente aceite pelo culpado, tem valor de expiação. A pena tem como efeito, além disso, preservar a ordem pública e a segurança das pessoas. Finalmente, tem também valor medicinal, posto que deve, na medida do possível, contribuir para a emenda do culpado.”
Já no nº 2267 lê-se: “A doutrina tradicional da Igreja sempre se exprimiu e exprime tendo em conta as condições reais do bem comum e dos meios efectivos de salvaguardar a ordem pública e a segurança das pessoas. Na medida em que outros processos, que não a pena de morte e as operações militares, bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a paz pública, tais processos não sangrentos devem preferir-se, por serem proporcionados e mais conformes com o fim em vista e a dignidade humana”.
Recentemente, a posição da Igreja começou a mudar. Assim, na Encíclica “Evangelium Vitae”, de 1995, João Paulo II escreveu: “Há também a questão da pena de morte, em relação à qual tanto na Igreja como na sociedade civil se observa uma tendência crescente a reclamar (exigir) um uso muito limitado e sobretudo a total abolição da pena de morte.” E a razão é uma consciência maior do respeito pela dignidade humana, que corresponde ao plano de Deus. Só em casos extremíssimos, quando a defesa não fosse possível de outro modo, se aplicaria a pena de morte ao culpado, mas acrescenta: “Esses casos são hoje, por causa da organização jurídica mais adequada, muito raros e praticamente inexistentes”.
O Papa Bento XVI, na mensagem enviada ao terceiro congresso mundial sobre o tema, que teve lugar em Paris, em Fevereiro de 2007, pronunciou-se contra a pena de morte nestes termos: “A pena de morte não só representa um ataque à vida, mas também um ataque à dignidade humana”. Mesmo se a Igreja continua a manter a posição de que o Estado tem o dever de defender a sociedade, a mensagem declara que a pena de morte é hoje dificilmente justificável. Os Estados dispõem hoje de métodos mais eficazes para combater a criminalidade, sublinha Bento XVI, que aponta que medidas preventivas e métodos de castigos que não levam à morte correspondem mais ao bem comum e à dignidade da pessoa humana. A decisão a favor da pena de morte tem o risco de castigar inocentes bem como a tentação de, em vez de promover a justiça social, atiçar a violência. “A pena de morte é um ataque claro contra a inviolabilidade da vida humana e, para os cristãos, uma violação da doutrina bíblica do perdão”. O Papa apelou aos Governos para abolirem a pena de morte e, respectivamente, entenderem-se no sentido de uma moratória universal contra a pena de morte.
Na obra de Dominique Wolton, Société et Politique, o Papa Francisco, no contexto de explicar, contra uma concepção fixista da tradição, uma visão da tradição viva, em movimento, deu o exemplo da pena de morte: “A propósito da pena de morte. Os nossos bispos decretaram a pena de morte na Idade Média. Hoje, a Igreja diz mais ou menos — e trabalha-se para mudar o Catecismo neste ponto — que a pena de morte é imoral. A tradição mudou? Não, a consciência evolui, a consciência moral evolui. O mesmo acontece com a escravatura, Há escravos, mas é imoral.”
Concretizando esta exigência, Francisco veio, em 2018, reafirmar o que já declarara no Discurso aos participantes no encontro promovido pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, 11 de Outubro de 2017: “A Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.” Assim, o nº 2267 do Catecismo, revisto, agora diz: “Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum. Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente a possibilidade de se redimir. Por isso, a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa, e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.”
É de sublinhar a afirmação: a dignidade é inerente à pessoa humana e não se perde nunca, nem sequer depois de ter cometido os mais graves crimes. Fica, pois, eliminada qualquer possibilidade de aprovação da pena de morte. Numa Carta enviada aos bispos de todo o mundo pelo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Luis Ladaria, Francisco vai citando Papas anteriores, concretamente, João Paulo II e Bento XVI, que, como vimos, já tinham dado orientações neste sentido, constatando que, independentemente das modalidades de execução, ela “implica um tratamento cruel, desumano e degradante” e sublinhando ainda “a possibilidade de erro judicial”.
“A nova formulação do nº 2267 do Catecismo da Igreja Católica”, diz ainda a Carta, concluindo, “quer ser um impulso para um compromisso firme, inclusive através de um diálogo respeitoso com as autoridades políticas, para que se favoreça uma mentalidade que reconheça a dignidade de cada pessoa humana e se criem as condições que permitam eliminar hoje a instituição jurídica da pena de morte onde ainda está em vigor.”
Há no mundo 57 países que ainda aplicam a pena de morte. O Catecismo agora modificado quer ser uma autoridade moral a favor da tese abolicionista.
O Papa Francisco também se opõe, como aqui escrevi então (“O não de Francisco à pena de morte e à prisão perpétua”) à prisão perpétua: “privar um ser humano da possibilidade, ainda que mínima, de ter esperança, significa matá-lo duas, três, quatro, cinco vezes.”
3. Aqui chegados, é preciso referir e sublinhar a neotenia (nascemos prematuros, por fazer…), que é uma característica essencial, constitutiva, do ser humano, condição biológica de possibilidade da liberdade. O ser humano aparece no mundo, não feito, mas como conjunto de possibilidades. Por isso, os seres humanos têm como tarefa, fazendo o que fazem, fazerem-se a si mesmos e, dada a liberdade, como se mostra na experiência de autoposse — cada um é senhor de si e das suas acções —, fazerem-se bem, para que resultem como obra de arte. A identidade humana não é fixa, estável, mas processual, narrativa, aberta a um futuro aberto: temos raízes, estamos enraizados, vivemos no presente, mas abertos a um futuro. Assim, por maior que seja o crime, ainda há possibilidades…, incluindo o arrependimento e a mudança. Este é o constitutivo do ser humano. Ora, a pena de morte fecha as possibilidades, quando o processo de cada homem, de cada mulher, mesmo feito o mal, ainda não transitou em julgado definitivo… É preciso, portanto, deixar o processo aberto…
Para Ludwig Wittgenstein, um dos maiores filósofos do século XX, o mundo é o conjunto dos factos, verificáveis. Mas, para lá do verificável, há “o místico” (das Mystische), que “se mostra” (es zeigt sich), o metafísico, o absoluto. Não que o mundo é, mas que o mundo seja, isso é o místico. Deus também não é deste mundo nem a ética, que é da ordem do dever-ser. O morrer é deste mundo, mas a morte não é deste mundo. A morte, digo eu, é uma das faces do absoluto (a outra é Deus), e, por isso, não é deste mundo. Ora, a pena de morte é a condenação à morte eterna para este mundo, fechando a abertura à continuidade do processo de possibilidades inclusive de arrependimento e emenda, de retomar a existência na sua dignidade, incluindo, repito, a do arrependimento e emenda, de retomar a existência na sua dignidade. Nenhuma instância terrena poderá, pois, fazer o juízo final, definitivo, de uma pessoa. Aliás, um juiz, por exemplo, julga actos das pessoas, não julga as próprias pessoas.
Aí está a razão por que não se pode ser a favor da pena de morte. Cito, neste contexto, a afirmação de Vergílio Ferreira, por ocasião do I Centenário da abolição da pena de morte em Portugal: “E acaso o criminoso não poderá ascender à maioridade que não tem? Suprimi-lo é suprimir a possibilidade de que o absoluto conscientemente se instale nele. Suprimi-lo é suprimir o Universo que aí pode instaurar-se, porque (…) a nossa morte é efectivamente, depois de mortos, a morte do Universo.” (continua).
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 10 NOV 2019
Há mistérios insondáveis que jamais saberemos como e porquê ocorreram. Celebrámos há dias a queda do muro de Berlim. Hoje parece-nos quase natural aquilo que se passou há 30 anos, no dia 9 de novembro. No entanto, ninguém poderia prever o que se passou. E talvez fosse digno das aventuras de Max e Moritz, dois travessos petizes que faziam as delícias dos jovens alemães há mais de cem anos… Talvez tenha sido um erro, pode ter sido um acaso, uma inadvertência, ou, quem sabe?, um mero ato de loucura… O certo é que o acontecido foi providencial. Resolveu-se então um inextricável dilema de impossível solução. Na cena internacional a pressão era muito grande na Hungria e na Checoslováquia. Muitos cidadãos desejavam movimentar-se, passar as fronteiras e chegar aonde havia liberdade e prosperidade. Gunther Shabowski era membro do politburo da República Democrática Alemã e foi destacado para anunciar aos jornalistas de Berlim-Leste uma nova política de entradas e saídas. Não estava em causa, o derrube do muro, mas apenas uma flexibilização das viagens. E havia um texto (há sempre um texto) que Schabowski devia ter lido, mas parece que não o fez – pelo menos com a devida atenção. Aí se previa um complexo sistema de autorizações que evitasse em todo o caso um colapso. A RDA deveria continuar a ser um bastião de fidelidade ao modelo do leste. No dia seguinte, só no dia seguinte, quem quisesse sair deveria pedir uma autorização. Havia, é certo, ordem para maior flexibilidade, mas a lógica burocrática deveria manter-se firme no essencial. Tudo ocorreria apenas depois das 10 horas da manhã. E Schabowski deveria dizer isso mesmo aos jornalistas naquele fim de tarde. Não se sabe por que bulas, porém, ele estava mal informado. Faltara a um encontro de preparação, e displicentemente pegou no papel que deveria ler, olhou-o na diagonal e avançou para a boca de cena… Perante os jornalistas, começou por ler o começo do escrito. De facto, havia um sinal de abertura, que ele deveria transmitir. O recém-nomeado Egon Kranz deu-lhe o papel, e havia que apresentar um sinal na linha da “glasnost”, da transparência. Mas o porta-voz Schabowski apenas leu o início e esqueceu-se dos pormenores essenciais da segunda página. Aí assegurava-se que a burocracia controlaria as saídas, a conta-gotas… E foram os pormenores que ditaram o desastre, o colapso. Abençoados desastre e colapso. Num instante o membro do politburo julgou que a burocracia e a polícia, firmes nos seus postos, assegurariam que a ordem não seria alterada. Puro engano. A burocracia sabia menos do que ele. E naquele momento o que ele dissesse seria a lei. O diálogo é ilustrativo e patético. Os jornalistas pressionam-no. Burocraticamente diz: “hoje tomou-se uma decisão para que as pessoas possam sair da República”. Os jornalistas estão incrédulos e perguntam: “Com passaporte?”. E insistem: “E desde já?” Schabowski fica por um minuto algo confuso. Que deve responder? Neste ponto entramos numa aventura absurda de Max e Moritz, mas estes não tem de fazer nada, não precisam de qualquer diabrura… E os jornalistas continuam a perguntar: “A partir de agora?”. E mais: “é preciso apresentar as razões para viajar?” Schabowski está a suar, nervoso, folheia os papéis, nada vê, mas tudo está lá – o pedido formal, as 10 da manhã… Max e Moritz nem têm de roubar essa página… É tudo muito rápido. A certa altura, para se ver livre do pesadelo, responde: “Pode ser imediatamente! (Ab sofort)… E já não pode voltar atrás. Felizmente para a humanidade acabara de condenar o muro a um inexorável colapso. Dentro de pouco tempo as pessoas precipitam-se para as aberturas do muro. Os soldados deixam-nos passar. Muitos começam a destruir o muro de cimento, entre gritos de alegria. O burgomestre de Berlim aproveita a onda e participa nesse momento histórico único. E eis como um aparente equívoco, uma distração, deu lugar a um movimento histórico!