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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O HORROR DO HUMANO AO HUMANO

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Se o erotismo é uma forma de aristocracia, então Anatole Dauman é um príncipe da Renascença. Há três décadas entrevistei-o no Expresso, jornal que ainda mais décadas teve a paciência de me aturar.

Dauman fora o prestigiado produtor de “Hiroshima, mon amour” de Alain Resnais, da perturbadora “Mouchette” de Robert Bresson, do sexuado “Masculin, Féminin” de Godard, das “Asas do Desejo” do sorumbático Wenders, para ir a jogo só com ases.

Conversámos no histórico Avenida Palace. Assentava-lhe bem a nostalgia do cenário. Vestia-se com uma elegância de faubourg Saint-Honoré, segurando um copo de vinho como se fosse um ceptro de imperador. Falava devagar, procurando as palavras por disciplinado amor à retórica e para se consolar com o som do que dizia. Pensei: há seres humanos que têm no narcisismo a maior virtude.

Parte eslavo, parte judeu, francês de cérebro, Dauman era sempre estrangeiro e no fio da navalha. Os filmes que produziu situam-se nos limites de amor e morte que, cúmplices, roçam já pelo crime.

Começo por “Nuit et Brouillard”, de Resnais. A noite e o nevoeiro desse filme, que faz da escuridão humana e das cinzas dela a sua matéria, leva-nos aos campos de concentração, dez anos depois do genocídio. Filma-se a paisagem bucólica de Auschwitz, a rasteira vegetação que cresce, o parvo sol distraindo-se por um fio de estrada: nem gritos, nem sangue, nem as cinzas de um osso ou da carne que já foi um braço, o ansioso seio do amor. Nada, ninguém, diria de forma mais horrenda a inutilidade do crime nazi do que a silenciosa amoralidade da natureza. Os carris sem uso, outrora de nocturno vómito, cães e medo, estão agora cobertos de ervas sopradas pela indolente brisa do Verão. Dizem que a Natureza tem horror ao vazio, mas o que ali se vê é o horror a um humano que a Natureza se obstina a apagar depressa.

Outro filme, de extremo horror do humano ao humano, foi o “Império dos Sentidos”. Dauman pediu ao realizador, o japonês Oshima, uma “tourada de amor”. Com sangue, vermelhíssimos quimonos, uma faca e uma estocada de morte.

Nessa história de ilimitada paixão entre uma criada de hotel e o dono dele, os amantes atacam o corpo um do outro como um exército um território ou o canibal a sua presa: atacam a boca, o sexo, a menstruação, o estrangulável pescoço. “O que sentes?” perguntam. E quando sussurram “não te posso ver sofrer!” é só para ir mais longe, buscar a inenarrável alegria da dor. Nesse filme, que tanto ensinou ao Arcebispo de Braga quando eu o programei na RTP 2, amor rima com morte, sexo com sangue.

Ascese, protestava Dauman, sentado na nobre decadência do Avenida Palace. A ascese de Van Gogh foi a de cortar a própria orelha. A dos amantes do “Império dos Sentidos” culmina na sufocada morte e no corte cerce desse apêndice que num homem é o ramo e os seus frutos.

Manuel S. Fonseca

 

A VIDA DOS LIVROS

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  De 30 de dezembro de 2019 a 5 de janeiro de 2020


«Ensaios em Persuasão» (Imprensa da Universidade de Lisboa, 2018) de John Maynard Keynes é uma notável coleção de artigos e ensaios publicada em 1931 sobre temas momentosos, onde fica demonstrada a extraordinária capacidade visionária do autor na compreensão da complexidade e das limitações da análise económica no contexto histórico, social e político.

 

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UM LIVRO NOTÁVEL
Em primeiro lugar, cabe prestar homenagem à Imprensa da Universidade de Lisboa, que preenche um espaço importante na divulgação científica e cultural, à semelhança das principais e mais prestigiadas instituições universitárias. E cabe uma referência grata aos órgãos académicos, e em especial a António Feijó, grande entusiasta e animador do projeto. Regressaremos a outras obras, mas hoje atemo-nos a este conjunto de ensaios, que não perderam atualidade, apesar de escritos há quase nove décadas. Lorde Keynes é um caso muito especial. Se não tivesse sido o maior economista do século XX, teria sido um notabilíssimo ensaísta em qualquer dos campos em que se tivesse aventurado, para além das artes e da dança, da filosofia e da história, da matemática ou do cálculo de probabilidades. A sua participação no grupo de Bloomsbury é essencial. Os génios são raros e só podem ser plenamente compreendidos quando a usura do tempo já produziu os seus efeitos. No caso de Keynes essa demonstração está feita. É certo que muitas vezes teve razão antes de tempo, mas na maior parte dos casos fez os avisos certos no momento adequado, sem que os seus contemporâneos o quisessem ou pudessem ouvir. Lembremo-nos dos Tratados de Versalhes ou de Bretton Woods, nesses casos o tempo veio claramente a demonstrar que a sua razão era insofismável. Hoje, ouve-se muitas vezes referência ao “keynesianismo”, no entanto conhecendo a obra do autor, fácil é de perceber que o próprio não se sentiria à vontade a integrar-se num grupo com tal designação. Assim como não criou uma teoria do desenvolvimento, privilegiou sempre uma análise dos fenómenos complexos sem retirar ilações genéricas. Segundo o autor, “a maioria destes ensaios foi escrita (...) num espírito de persuasão, numa tentativa de influenciar a opinião pública, embora muitos deles tenham sido considerados na altura declarações extremas e imprudentes”. Quando os releu encontrou, porém, mais subavaliações do que sobreavaliações em face do que os acontecimentos vieram a demonstrar – e assim a profecia foi mais eficaz que a persuasão.

 

MAIS DO QUE CASSANDRA…
Keynes compara-se a Cassandra, ainda que o seu objetivo não fosse esse, falando mesmo de uma autocontenção analítica, que apenas teve como efeito atenuar a profecia, mas não fazê-la esquecer. Quando abandonou a mesa das negociações de Versalhes (1919) previu que as imposições dos vencedores da guerra gerariam o colapso económico alemão e uma desesperada e irracional reação totalitária. Escreveu então o célebre “The Economic Consequences of the Peace”, que hoje se lê com um arrepio na espinha, pois aí estão palavras proféticas fundadas numa análise rigorosíssima. O primeiro ensaio do livro de hoje é exatamente sobre esse tema, completando as considerações de 1919 e procurando ainda encontrar uma saída que evitasse a tragédia alemã, que de facto ocorreu. E assim há uma tentativa para evitar a hecatombe: a educação e a imaginação poderiam mudar a opinião. Mas haveria que falar verdade, que desmascarar a ilusão, que dissipar o ódio, pela expansão e educação do coração e do espírito humano. Ao lermos o que o ensaísta nos diz, parece-nos encontrar algo de familiar para os nossos dias: “O método utilizado pelos estadistas modernos é o de dizerem todos os disparates que o público reclama, não praticando mais do que aquilo que é compatível com o que disseram, e confiando que os disparates assim postos em prática se revelarão em breve por aquilo que são, criando desta forma uma oportunidade de retorno á sensatez – uma espécie de método Montessori aplicado à criança que é o público. Aquele que contrariar esta criança terá rapidamente de dar lugar a novos tutores”. Mas ninguém quis ouvir. No presente volume temos intervenções sobre a inflação e a deflação (1919-31), sobre o regresso do padrão-ouro, além de textos sobre a Rússia e o Futuro. Aqui exprime “a profunda convicção de que o problema económico, como lhe podemos abreviadamente chamar, o problema da privação e da pobreza, e a luta económica entre classes e nações, não é senão uma terrível confusão transitória e desnecessária. Porque o mundo ocidental dispõe já dos recursos e da técnica (conseguíssemos nós criar a organização certa para os utilizar) capazes de reduzir a uma posição secundária o problema económico que agora absorve as nossas energias morais e materiais”.

 

PARA ALÉM DA ECONOMIA
E o homem de cultura acredita que é possível criar condições para cuidar do essencial: “os problemas da vida e das relações humanas, da criação, do comportamento e da religião”. Afinal, mais do que as questões materiais, importaria considerar a economia como realidade humana e instrumental. Além da crítica aos banqueiros sobre inflação e deflação (“estão tão habituados a que a sua posição não seja questionada que nem os próprios a questionam – até ser demasiado tarde”), temos o notável texto sobre o Padrão-ouro, que pode ser lido nos nossos dias, a pensar no “Brexit”. Eu sei que as questões são bem diferentes, mas há pontos de contacto, que têm a ver com o saudosismo imperial. O regresso do padrão ouro teve consequências dramáticas, que Keynes escalpeliza. Em nome das vantagens para o comércio e a indústria britânicos havia que acabar com os esforços para manter artificialmente a moeda acima do seu valor real mercê da referência ouro. As medidas adequadas não seriam aduaneiras, mas a libertação da moeda de um jugo artificial. O resultado de um câmbio elevado incentivava as importações e desincentivava as exportações, virando contra a Inglaterra o saldo da balança comercial. É o “common sense” baseado na ciência. E leia-se, com especial atenção o texto “Possibilidades Económicas para os nossos netos” (1930). “O ritmo a que poderemos alcançar este destino de felicidade económica será definido por quatro elementos: a nossa capacidade de controlar a população; a nossa resolução de evitar guerras e conflitos internos, a nossa disponibilidade para confiar à ciência a orientação das questões que são do domínio da ciência, e a taxa de acumulação fixada entre a produção e o consumo. Destes quatro elementos, o último cuidará de si mesmo, se os três primeiros forem cumpridos”. Após estes ensaios, sairia “The General Theory of Employment, Interest and Money” (1936), que criou a econometria e demonstrou que os governos podem gerir e prevenir depressões económicas. O génio compreendia a economia como cultura.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença 

 

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   O blogue do CNC entendeu que e reedição da carta que segue anexa à presente - e foi escrita há uns anos, e por ele publicada a 2 de agosto de 2015, quando eu, feito heterónimo, redigia correspondência de um tio meu para outra Princesa, isto é, uma Princesa dele  -  poderia ser um complemento de leitura a uma crónica do Professor Anselmo Borges, publicada, no Diário de Notícias e no mesmo blogue, a 12 e 13 do corrente, intitulada A Pena de Morte e o Inferno.  

                                                               

   Acontece que deparei com os textos que acima refiro, em certo dia desta semana (2ª de novembro de 2019) que me dera umas horas para escutar o oratório The Dream of Gerontius, de Edward Elgar, magnífica peça musical composta para um texto escrito pelo cardeal John Henry Newman, lá para finais do século XIX. O registo de que disponho deve-se, além dos três solistas (a mezzo Catherine Wyn-Rogers, o tenor Andrew Staples e o barítono Thomas Hampson), ao Staatsopernchor Berlin e ao RIAS Kammerchor, todos com a Staatskapelle Berlin, sob a direção de Daniel Barenboim. Não sei porquê - o que, aliás, me sucede com frequência -, talvez pela força da música, penseissenti a peça inteira e todos os momentos em que me envolveu, como uma e poderosa mensagem, a dizer que o valor divino do humano nos leva a celebrar a nossa vida como inesgotável oportunidade de renovação, como contínuo convite a uma conversão que sempre nos surge a ser destino nosso.

 

   Por isso mesmo há tantas maneiras de afirmá-lo e, todavia, o que diz o japonês Kenzaburo Oe, o anglo católico cardeal Newman, o tio meu heterónimo e o douto filósofo Anselmo Borges me parece indivisível na sua própria simplicidade: a vida humana, ela própria, é a quintessência da sua dignidade que se consubstancia nessa mesma vida. Nos escritos vários que nestes meus textos vou referindo ou citando, a consideração da vida humana pressupõe sempre pensarsentir que, independentemente das fraquezas e faltas de cada um, do maior ou menor poder coercivo de qualquer circunstância, a dignidade divina dessa mesma vida lhe é inata e inalienável. No Sonho de Gerôncio, ela própria é colocada já numa circunstância post mortem, em que a sua alma canta a conversão final - a pura, misericordiosa graça - como destino finalmente cumprido. Deixo-te o original inglês da lírica de Newman, acompanhado de tradução minha, feita para esta carta, apenas com alguma preocupação com encontrar palavras que nos ajudassem a meditar na nossa língua... Talvez por me ter lembrado de que me ditar poderia querer significar dizer-me, a mim mesmo, as palavras que iluminam.

 

   O sonho de Gerôncio é uma experiência onírica às portas da morte, uma vida que se redescobre na outra margem da corrente de Caronte - como se morrer fosse acordar de novo e nenhuma outra esperança ou simples expectativa pudesse ter sentido, além do cumprimento da promessa inicial da vida como destino. Atentar contra uma vida humana, seja como for, é apenas soberba loucura. Qualquer vida está recolhida no segredo de Deus.

 

   A abrir a parte segunda do oratório, a alma de Gerôncio canta:   

 

I went to sleep and now I am refreshed,
A strange refreshment : for I feel in me 
An inexpressive lightness, and a sense
Of freedom, as I were at length myself
And never had been before. How still it is!
I hear no more the busy beat of time,
No, nor my fluttering breath, nor struggling pulse;
Nor does one moment differ from the next
This silence pours a solitariness
Into the very essence of my soul;
And the deep rest, so soothing and so sweet, 
Hath something too of sternness and of pain.

 
Another marvel: someone has me fast 
Within his ample palm; 
A uniform
And gentle pressure tells me I am not
Selfmoving, but borne forward on my way.
And hark! I hear a singing ; yet in sooth
I cannot of that music rightly say  
Whether I hear, or touch, or taste the tones.                         
Oh, what a heart subdoing melody!

 

Fui dormir, dormi, e fiquei fresco,
Com bem estranha frescura: pois então me senti
Tão indizivelmente leve e livre  
Que nem de me cuidar soía,

Como dantes. Mágico silêncio este!
Já não ouço o reincidente bater do tempo,
Nem o meu respirar vibrante  e agitado pulso;
Já nenhum momento é diferente do próximo.
Este silêncio derrama soledade
Na quintessência da minha alma.
E a repouso tão carinhoso e doce
Não falta severidade e pena.


Maravilha nova: alguém me agasalha

Na palma da sua mão;
Uma pressão
Uniforme e gentil diz-me que não vim por mim
Mas que, a caminho, me trouxeram para     aqui.
Escutai bem! Ouço cantar; mas, na verdade,
De tal música ao certo não sei dizer 
Se a ouço, toco ou provo os tons.
É só melodia que subjuga o coração!

 

   Tal como, tantas vezes, no decurso desta vida, nos vemos perdidos, assim talvez seja ao descobrirmo-nos do lado de lá. Mas algo nos dirá que não chegámos ali por nossa auto moção, e que uma qualquer música, inaudita ainda, nos encherá e guiará o coração.

 

Camilo Maria

                

PS.- Queres então abrir o texto que partilho?

 

Camilo Martins de Oliveira

CENTENÁRIO DA MORTE DE MARCELINO MESQUITA

 

A Câmara Municipal do Cartaxo publicou muito recentemente uma coletânea de estudos  sobre Marcelino Mesquita, assinalando dessa forma o centenário da morte do dramaturgo, ocorrida em 7 de julho de 1919.

 

E para lá dos estudos, assinala-se a publicação de “Duas Peças do Espólio de Marcelino Mesquita. Assim se chama o volume editado pela CMC e que reúne, precisamente, dois textos: um deles, intitulado precisamente “Inédito sem Título”, o outro intitulado “Um Episódio de Guerra”.

 

Isto, para além de textos introdutórios do Presidente da CMC Pedro Magalhães Ribeiro, da Vereadora Elvira Tristão, de António Filipe Rato, que traça a biografia de Marcelino, e de mais 4 editores – Ana Catarina Azevedo, Ana Luísa Vilela, Maria Manuela Simão e Vítor Madeira Santos.

 

Marcelino nasceu no Cartaxo em 1 de setembro de 1856. E a primeira experiência de espetáculo a partir de uma peça de sua autoria ocorre nos seus 20 anos, com a estreia no Teatro de D. Maria II do drama histórico “Leonor Teles”, depois revisto e publicado em 1889.

 

Em qualquer caso, inaugura-se dessa forma uma vasta e significativa carreira de dramaturgo, que percorre a estética e a problemática da dramaturgia portuguesa, nessa fase de transição do romantismo para as outras expressões estéticas que marcaram o teatro da época e duram até hoje.

 

Aliás, a data de estreia não colide com alterações que foram sendo efetuadas à luz da vasta experiência cénico-dramatúrgica de Marcelino, e isto, ao longo de dezenas de anos e de dezenas de textos. Podemos então evocar peças que cobrem séculos da História de Portugal e dos seus nomes referenciais. E isto, insista--se, cobrindo a transição do século, num ciclo que dura até pela menos 1917.

 

Citamos designadamente peças como “Leonor Teles” (1889), “O Regente” (1897),  “ Sonho da Índia”, (1898), “Peraltas e Sécias” (1899), “Sempre Noiva”( 1900), “Petrónio” (1901), “O Rei Maldito” (1903), “Margarida do Monte” (1910), “Perina” (1913), “”Pedro o Cruel” (1916), ou “Frimeia” (1917).

 

É pois oportuno  lembrar que o teatro histórico constitui uma das dimensões marcantes da dramaturgia de Marcelino Mesquita.  Mas não só. Essa vasta dramaturgia assume também um temário que efetua a transição do romantismo para o realismo, tendo presente, note-se bem, a fase de transição que marcava na época o teatro, na alternativa da edição e dos espetáculo em si: sendo certo que a caracterização do teatro como arte envolve necessariamente a sua expressão espetacular, digamos assim.

 

Mas tendo bem presente que tantas e tantas vezes o texto vale por si mesmo e não exige a expressão espetacular: só que, então, em rigor, trata-se de poesia ou prosa dialogada, mas não propriamente de teatro!

 

Enfim: há que elogiar esta iniciativa da Câmara Municipal do Cartaxo, e destacar a recuperação dos textos inéditos e o conjunto de estudos que enquadra a respetiva publicação.

 

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS LUSO-TROPICAIS

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11. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO

Gilberto Freyre nunca se libertou das acusações de ter apoiado o regime de Salazar, após uma viagem ao Portugal continental e ultramarino de então, de que são seu retrato “Aventura e Rotina” e “Um brasileiro em terras portuguesas”.

De nada lhe valeu defender-se dizendo que se limitava a expor e lutar pelas suas ideias numa pesquisa sociológica e que o regime as utilizava, apesar das críticas às práticas racistas da Companhia de Diamantes de Angola e de criticar a existência da censura no regime salazarista.

Sobre esta temática, argumenta Adriano Moreira:
É notório que o luso-tropicalismo não conseguiria deixar de ser utilizado na crise colonial portuguesa, como não evitou sê-lo na crise social brasileira, pelos Governos respetivos, para legitimarem as suas políticas, mesmo quando a autenticidade não acompanhava os discursos. Mas isto não é uma novidade, é destino das doutrinas, como aconteceu aos federalistas inspiradores do discurso dominante do Estado americano que praticou o genocídio dos índios, como aconteceu aos liberais invocados pelas democracias da frente marítima europeia que criaram os impérios coloniais novecentistas, como aconteceu aos utopistas que enriqueceram o discurso do socialismo real soviético. O importante é a permanência das doutrinas, sobreviventes às contingências políticas que também as afetam, e o luso-tropicalismo deixou vigente um critério de identidade, para além da língua, que foi o de entender a cultura, soma de convergências, como a referência comum de povos que trocam padrões de comportamento, valores, experiências e vida”
(“A Relação privilegiada Portugal-Brasil”, in Estudos da Conjuntura Internacional, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 99, p. 398).

No que toca aos detratores do luso-tropicalismo, nomeadamente porque apologista da miscigenação (e sincretismo), uma das características essenciais do mundo lusófono (do “mundo que o português criou”, segundo Freyre), são significativas estas palavras de José Eduardo Agualusa: “Os portugueses não são outra coisa senão um bom fruto mulato do imperialismo romano, somado ao imperialismo africano, através dos árabes, somado ainda, mais tarde, a todos os encontros resultantes da grande aventura marítima. Um português racista é um português em confusa luta contra si mesmo - é um antiportuguês” (“Gatos que ladram”, “Pública”, in Público). Fala, por experiência própria, que para muitos genuínos neonazis qualquer português é preto e qualquer moreno é cafre. Na época do apartheid, na África do Sul, os boéres apelidavam os portugueses de cafres brancos. Sugestivo também que a palavra “moreno” venha de “mouro”.

Hoje, como se sabe, tem predominância o bloco anglo-saxónico, pese embora, estudos recentes apontem para a perda progressiva desse monopólio. A este propósito Samuel Huntington - cujo conceito de choque de civilizações ganhou notoriedade após os atentados do 11 de Setembro - prevê, no seu novo livro “Who are we?” (Quem somos nós?), uma nova colisão cultural, que terá como resultado a morte do sonho americano nos Estados Unidos pelos imigrantes hispânicos. Baseia o seu prognóstico com a alta taxa de natalidade desses imigrantes, a sua não aceitação dos valores anglo-protestantes e a dificuldade em aprender inglês. Para Huntington, a maior ameaça que hoje pesa sobre a identidade americana é a imigração contínua e massiva proveniente da América Latina, em especial do México.

Daqui se conclui que os Estados Unidos, principal potência mundial, tenderão para uma sociedade multiétnica, o mesmo se indiciando na Europa, dada a imigração (e quebra da natalidade nos países acolhedores), também tida como fonte de criação (atente-se que a população de países europeus, como a França e Alemanha, é cada vez mais, numa percentagem crescente, de origem imigrante, sendo em Portugal cada vez mais miscigenada, ao que não será alheia a imigração das ex-colónias). Tudo a apontar para a miscigenação e o sincretismo em associação com o que defende o luso-tropicalismo, não sendo este um valor despiciendo.

Mesmo entre nós, os luso-tropicalistas permanecem, como o exemplificam estas palavras:
“Sou um luso-tropicalista encartado. (…) Não nego nada da realidade que pareça desmenti-la, nem creio que essa fosse a ideia de Gilberto Freire - como pode um brasileiro negar a favela? Ou as desigualdades do seu tempo? Acolho o luso-tropicalismo como um olhar não só benigno, mas bondoso. Penso que é bom para o futuro e um potencial conformador positivo. (…) Uma cultura que se crê mestiça e valoriza a capacidade de se enriquecer por receber, absorver, integrar é uma cultura boa, não só porque não segrega, mas porque acolhe e cresce. É assim que entendo a maneira de ser portuguesa e a nossa cultura” (José Ribeiro e Castro, “O Público”, 16.07.19).

Ame-se ou deteste-se o luso-tropicalismo permanece e sobrevive em permanência às contingências temporais, com ele sobrevivendo GF à polémica e à não indiferença. Anote-se, por fim, que Freyre sempre ultrapassou a fase de estarmos permanentemente descontentes com aquilo que somos, exemplificando-o com o Brasil e o mundo que o português criou, afirmando-se sempre, no essencial e no geral, pela positiva (o que não significa ausência de espírito crítico), quer em relação a Portugal, ao Brasil e aos demais e atuais lusófonos, o mesmo sucedendo com Agostinho da Silva, cujas ideias (de ambos) permanecem, sobrevivendo e ultrapassando as contingências.

Registe-se ainda que o luso-tropicalismo inspirou a formação da comunidade luso-brasileira, a comunidade luso-afro-brasileira e a atual CPLP, sem esquecer a comunidade lusófona.             

27.12.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CINCO POEMAS - A

 

1

Se hoje amamos é porque muito amámos ontem com e sem razões
Só porque se o amor não for isto de amar mais
De cada vez que se amou
Então o amor não seria esse imenso saber amar
A cada dia que mais não é do que aprender
O quanto amar ontem hoje e sempre
É amar no amor o núcleo lá onde ele
É a pele da alma que nos envolve
Num ar bordado a felicidade e a dor
Permeável e afinal múltiplo de tão fixo
E alimento em nós sua espessura tanta
Qual seara
Nela tu meu tempo
Sempre

 

2

Procuro dentro do que nome não tem
Uma linguagem que me não deixe perdida
Ao atravessar o espaço que conheço e sinto
Não como aparência
Antes realidade a toda a volta de mim e dentro
De uma oficinal consciência que volve nela para se oferecer ao meu canto
Naquele recanto que se nomeia cheio de uma voz
Que sabe que o poema existe lá
Tão impossível quanto coerente de não ser de ninguém
Mas me persegue sem hiato numa infatigável
Alegria

 

3

Se o mais desconcertante for o peso da memória
Que o voo carrega
É sem esforço que o apanho nos braços
Habitando-o num género novo de mistério maior
Que visto e logo permuto roupagens de oiro por aves doridas
Sem berço de mãe nem essências a confluir no piar
Ou o entender do fantástico visceral me não coubesse
No embrião das palavras que principiam e são
Afinal virgens e úberes
No vai-vem de um ângulo

 

4

A noite que digere a noite
Tem uma língua de água com a qual corta
Os muros num sinal anfíbio
De tão bem conhecer mares e pontos cardeais
Tudo tão verosímil como o rio que se inclina
De dentro da ânfora e me submerge com espessura de mar
Nascida escada até onde o ar me colhe
Óvulo é certo
Obsessão afluente
Seguramente
Que não resume tamanho nem conflito

 

5

Sobre o dorso de um sentimento
Eu quero dizer plátanos vitríolos
Quero dizer que nada é sítio e que o dia também nem sempre
É diurno
Ou a ausência não fosse um glóbulo incapaz de se levantar
E quero dizer contorno
Gineceu da flor
Época
Das pedras que sabem contemplar
A morte num estar
No hálito dos poemas não lidos

 

Teresa Bracinha Vieira

JEAN-PAUL SARTRE E O NATAL

 

1. Ninguém pensa a partir do nada, melhor, a partir de zero. Quando damos por nós, já cá andávamos e estamos sempre marcados pela nossa história desde o ventre materno, pelas experiências fundas dos nossos primeiros encontros e desencontros na vida, na família, numa determinada língua, com os vizinhos, com os amigos, ...

 

Há os pressupostos no sentido negativo: ir para um encontro, para um debate, já com preconceitos malévolos. Mas ninguém está na vida sem pressupostos no sentido indicado, positivo: a nossa história toda que nos marca positiva e negativamente. Ninguém se encontra na vida puro, sem pressupostos, sem preconceitos. Ninguém parte de um ponto inaugural puro e neutro.

 

Também o filósofo Jean-Paul Sartre foi marcado pelas suas experiências, desde tenra idade. Segundo Charles Moeller, ter ficado órfão de pai muito cedo e viver com o padrasto como um estranho foi uma experiência marcante. A sua posição face à fé é bem conhecida e essa sua experiência de órfão não lhe foi indiferente.

 

Para ele, o mundo é sem sentido, o ser está a mais, é “viscoso” — leia-se A Náusea. Na sua obra estritamente filosófica, O ser e o nada, quer explicar como é que o desejo do ser humano é ser Deus, mas o próprio conceito de Deus é contraditório. Por isso, é absurdo ter nascido, é absurdo viver, é absurdo morrer. Reclamando uma liberdade absoluta, nega a alteridade, o mundo, Deus.

 

Houve, no entanto, uma espécie de interregno neste seu posicionamento intelectual e existencial. Com a derrota do exército francês, foi feito prisioneiro, e precisamente em 1940, num campo de prisioneiros escreveu um auto de Natal — Bariona, ou le Fils du tonerre (Barjonas, ou o Filho do trovão), para ser representado num barracão, um auto que unisse cristãos e não cristãos.  Ele próprio desempenhou o papel de uma das personagens, mas que se trata de uma espécie de interregno prova-o o facto de a sua primeira publicação, em 500 exemplares não comercializáveis, só se ter dado em 1962. Mas também escreveu a Simone de Beauvoir: “Parece que fiz um mistério de Natal muito comovente, de tal modo que um dos actores, quando representava, chegava a chorar.”

 

Não vou desenvolver o desenrolar da peça. Mas do que se trata, em vários níveis e desenvolvimentos, é do confronto entre, por um lado, o niilismo existencialista, colocar um ponto final ao absurdo e à Humanidade, e, por outro, a luminosidade de um novo nascimento, que abre esperança para um mundo novo, um recomeço, “um novo início”, como diz Massimo Borghesi, que estou a seguir.

 

Barjonas, que quer convencer Sara a eliminar o filho que tem no seu ventre, diz-lhe: “Mulher, essa criança que queres deixar nascer é como uma nova edição do mundo. Por meio dela, as nuvens, a água, o sol, as casas, as dores dos homens existirão mais uma vez. Tu recriarás o mundo. Fazer um filho é aprovar a criação do mundo do fundo do próprio coração, é dizer ao Deus que nos atormenta: ‘Senhor, tudo é bom e dou-vos graças por terdes feito o universo’. Queres realmente cantar esse hino? A existência é uma lepra horrenda que nos corrói a todos, e nossos pais foram culpados.”

 

Mas lá está também o rei mago Baltasar, personificado em cena pelo próprio Sartre e que representa o momento da esperança: “É verdade, somos muito velhos e muito sábios e conhecemos todo o mal da Terra. Por isso, quando vimos aquela estrela nos céus, os nossos corações alegraram-se como o das crianças, e tornámo-nos crianças e pusemo-nos a caminho, pois queríamos cumprir o nosso dever de homens que esperam. Quem perde a esperança, Barjonas, será expulso do seu vilarejo. Mas a quem espera tudo sorri e o mundo é dado como um presente.”

 

A esperança de Baltasar é como a esperança de Sara. Também ela quer ir a Belém: “Lá em baixo, há uma mulher feliz e satisfeita, uma mãe que deu à luz por todas as mães. É como se me desse uma permissão: a permissão de pôr no mundo o meu filho, dando-o à luz. Quero vê-la, vê-la, essa mãe feliz e sagrada.”

 

Em Belém, diante do estábulo, Barjonas encontra Maria de costas, não vê Jesus, vê apenas José: “Mas vejo o homem. É verdade, como ele olha para o Menino! Com que olhar! O que pode haver por trás daqueles dois olhos claros, claros como duas profundezas límpidas nesse rosto doce e marcado? Que esperança será essa?”

 

Sartre está mesmo à porta do mistério cristão, pondo Barjonas a afirmar: “Um Deus-Homem, um Deus feito da nossa carne humilde, um Deus que aceitaria conhecer este gosto de sal que existe no fundo das nossas bocas quando o mundo inteiro nos abandona, um Deus que aceitaria antecipadamente sofrer o que eu sofro hoje.”

 

2. E aí fica outra parte belíssima, a mais bela, do texto de Jean-Paul Sartre. Todas as mães olharão para o seu bebé com um encanto que só elas poderão sentir perante aquele milagre que vem delas e as ultrapassa infinitamente. Neste texto, Sartre descreve-nos o maravilhamento terno e a ternura maravilhada e também ansiosa, inexcedíveis, de Maria diante do seu “pequenino”.

 

“A Virgem está pálida e olha para o Menino. Seria preciso pintar no seu rosto aquela admiração ansiosa que se viu apenas uma vez num rosto humano.

 

Porque Cristo é o seu Filho, a carne da sua carne e fruto do seu ventre. Ela teve-O em si própria durante nove meses e dar-Lhe-á o seio e o seu leite tornar-se-á sangue de Deus.

 

Há momentos em que a tentação é tão forte que esquece que Ele é Filho de Deus.

 

Aperta-O nos braços e sussurra-Lhe: ‘Meu pequenino’.

 

Mas noutros momentos fica perplexa e pensa: ‘Deus está ali’ e é invadida por um religioso temor por este Deus mudo, por esta criança que, num certo sentido, incute medo.

 

Todas as mães ficam perplexas, por um momento, diante daquele fragmento  da sua carne, que é a sua criança, e sentem-se exiladas perante esta nova vida feita da sua vida, habitada por pensamentos alheios. Mas nenhum filho foi arrancado à sua mãe de forma tão cruel e radical, porque Ele é Deus e ultrapassa completamente tudo o que ela poderia imaginar... Mas penso que houve também outros momentos, rápidos e fugazes, em que ela sente que Cristo é o seu Filho, o seu menino, e que é Deus.

 

Olha-O e pensa: ‘Este Deus é meu menino, meu filho. Esta carne é a minha carne, é feito de mim, tem os meus olhos e a forma da sua boca é semelhante à minha, parece-se comigo. É Deus e parece-se também comigo’.

 

E nenhum ser humano recebeu da sorte o seu Deus só para si, um Deus tão pequenino para apertar nos braços e cobrir de beijos, um Deus quentinho que sorri e respira, um Deus que se pode tocar e que ri.

 

É nesses momentos que eu, se fosse pintor, pintaria Maria.”

 

3. Sartre, conclui Massimo Borghese, “nunca mais escreveria assim, nem de Deus nem do homem. A obra do Natal de 1940 continuará a ser, deste ponto de vista, uma ‘excepção’, como se a atmosfera peculiar do campo de prisioneiros o tivesse tornado mais próximo do mistério da existência. Mas isso bastou para nos conceder uma das mais belas representações do Natal na literatura do século XX.”

 

4. Bom Natal! Feliz, habitado pela esperança que Jesus é para todos! No final da peça, Barjonas reúne os seus homens e está disposto a bater-se para salvar a vida de Jesus, que Herodes mandou matar. Como escreveu M. Perrin, “os homens de Barjonas vão em frente, talvez para morrer, mas morrerão para que não seja assassinada a esperança dos homens livres”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 22 DEZ 2019

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

MEMÓRIA DE FERNANDO BENTO

 

A edição que hoje vos apresento é preciosa. Trata-se do número do Natal de 1954 do “Cavaleiro Andante”. Representa um vitral da autoria de Fernando Bento (1910-1996), o grande ilustrador da revista dirigida por Adolfo Simões Müller. Nota-se o traço inconfundível do autor. O número especial vendia-se em duas versões: normal e encadernado, sendo que um custava 10 escudos e o outro 16. Em primeiro plano, fora da representação, está o Cavaleiro Andante (símbolo da revista) ajoelhado. No quadro central está a Sagrada Família, no painel da esquerda estão os três magos e do lado direito, figuras exóticas de pastores com feições tipicamente orientais. E assim lembramo-nos das ilustrações de Bento sobre narrativas em terras distantes. Trata-se de um presépio que procura representar o momento histórico da Natividade de Jesus, e não, como normalmente, a encenação recriada por S. Francisco de Assis, que corresponde normalmente ao que nos é familiar. Se nos lembrarmos dos presépios tradicionais portugueses, como os de Machado de Castro e da sua oficina, vemos os pastores vestidos com roupas tradicionais, bem portuguesas. Não é este o caso. O desenhador quis dar um toque de originalidade e de exotismo ao seu desenho. De facto, a originalidade do traço de Fernando Bento associa-se muitas vezes a figuras com traços marcados. A cada passo, notamos no desenho inconfundível do autor uma preocupação de movimento, bem evidenciada em obras-primas, como “Beau Geste” (1952) e “Emílio e os Detetives” (1957-58). Como afirma João Paulo Paiva Boléo: “Fernando Bento é um dos maiores autores, um dos maiores desenhadores da BD portuguesa. Fernando Bento marcou o imaginário de milhares de leitores, fê-los sonhar, fê-los descobrir mundos ‘da Terra à Lua’, histórias de emoção e de coragem… Em síntese, abriu-lhes (abriu-nos), em simultâneo, o mundo da aventura e o mundo da literatura. Deu-nos a magia de uma arte de corpo inteiro, que vive da sugestão da ação e – como repetidamente se tem sublinhado – do preenchimento do espaço branco entre imagens, da elipse, de uma forma original de contar histórias através da utilização singular, sugestiva e sintética do desenho e do texto, e abriu-nos o caminho para outra arte, mais sugestiva ainda, mas convocadora ainda da imaginação, a literatura, assente na maior e mais distintiva criação da inteligência humana – a palavra”. Esta apreciação constitui uma análise rigorosa das características de Fernando Bento. Com efeito, a aventura e a literatura encontram-se intimamente relacionadas. E o exemplo que hoje aqui trazemos, permite-nos compreender que cada figura representada pode muito bem estar associada a uma aventura literária: a viagem dos três reis magos, a presença dos jovens pais Maria e José, com o filho recém-nascido e a presença misteriosa dos pastores, que se assemelham a berberes do deserto… No fundo, é a magia da Banda Desenhada que aqui está toda – a ilustração, o movimento, a aventura, a literatura, o enredo, a palavra… E lembro um poema de Miguel Torga para ilustrar este vitral, que nos lembra um tempo antigo, um autor profícuo e um artista, o desenhador Fernando Bento, merece muito ser lembrado   

 

Foi tudo tão pontual
Que fiquei maravilhado.
Caiu neve no telhado
E juntou-se o mesmo gado
No curral.

Nem as palhas da pobreza
Faltaram na manjedoira!
Palhas babadas da toira
Que ruminava a grandeza
Do milagre pressentido.
Os bichos e a natureza
No palco já conhecido.

Mas, afinal, o cenário
Não bastou.
Fiado no calendário,
O homem nem perguntou
Se Deus era necessário...
E Deus não representou.

 

Agostinho de Morais

A VIDA DOS LIVROS

De 23 a 29 de dezembro de 2019

 

No âmbito do centenário de Eduardo Teixeira Coelho (1919-2005), foi com muito gosto que aceitei o convite do Clube Português de Banda Desenhada, com sede na Amadora, para, mais uma vez, partilhar despretensiosas reflexões nessa prestigiada instituição.

 

LEMBRAR EDUARDO TEIXEIRA COELHO
Desta vez, com José Ruy, mestre indiscutível da nona arte, e João Manuel Mimoso, cultor desse apaixonante tema, tratou-se de homenagear Eduardo Teixeira Coelho (1919-2005), referência fundamental nas histórias aos quadradinhos em Portugal, o mais internacional dos nossos autores, cujo centenário do nascimento ocorre em 2019. Se é certo que a popularidade da Banda Desenhada em Portugal não oferece dúvidas, a verdade é que no panorama mundial não temos referências essenciais reconhecidas. Mas tal não significa que passe despercebido o lugar de Portugal – e, no tocante a autores nacionais, Eduardo Teixeira Coelho (ETC) é uma exceção, uma vez que trabalhou em França e em Itália, a partir de 1953, ano em que “O Mosquito” (1ª série) deixou de se publicar. Então teve uma atividade intensa em relevantes publicações dos países onde esteve, destacando-se pessoalmente pelas qualidades demonstradas no plano artístico e no domínio das narrativas ilustradas, com uma identidade própria e uma especial originalidade. No entanto, quando saiu de Portugal já atingira uma inequívoca maturidade, afirmando-se como um autor reconhecido por todos pela sua excecional qualidade. Nascido em Angra do Heroísmo, começou a colaborar no “Sempre Fixe”, com apenas 17 anos, e a partir de 1943 vemo-lo nas páginas de “O Mosquito”, ao lado de Raul Correia, constituindo uma dupla influente e talentosa. “O Mosquito” foi lançado em 1936, dirigido por António Cardoso Lopes (Tiotónio, autor de Zé Pacóvio e do Grilinho) para responder a “O Papagaio” de Adolfo Simões Müller, criado em 1935 – onde foram publicadas as primeiras aventuras de Tim-tim, tendo na sua equipa pessoas como Júlio Resende e José Viana. “O Mosquito” atingiu uma tiragem de 70 mil exemplares (o que é impressionante), ao preço de cinquenta centavos, metade de um escudo, o preço da concorrência. Foi inicialmente semanário até 1942, e depois bissemanário, às 4ªs e aos sábados, dias em que os liceus não tinham aulas à tarde… “O Mosquito” publicou estórias de autores britânicos, como Roy Wilson; espanhóis, como Jesus Blasco (criador de Cuto), americanos como Harold R. Foster (autor de “Príncipe Valente”) – além dos portugueses ETC, Vítor Péon, José Garcês e José Ruy. A lista de publicações de ETC em “O Mosquito” é notável, devendo referir-se “Os Guerreiros do Lago” (1945); “Os Náufragos do Barco sem Nome” (1946); “Falcão Negro” (numa tentativa de lançar um herói, que pudesse perdurar, mas apenas se manteve até de 1946 a 1949): “O Caminho do Oriente” (1946-48); “Sigurd, o Herói” (1946); “A Lei da Selva” (1948); “Lobo Cinzento” (1948-49); “A Torre de D. Ramires” (adaptado da “Ilustre Casa” de Eça); “O Defunto” (1950); “Suave Milagre” (do conto também de Eça); “Os Doze de Inglaterra” (1950-51) e “A Ásia” (1952). Assina algumas capas do “Cavaleiro Andante”. O esmero e a qualidade vão-se afirmando, quer no tratamento gráfico, quer nas narrativas e na escolha dos temas. A vida dos celtas e dos povos nórdicos, a presença dos animais na natureza, a História de Portugal, as tradições culturais – de tudo encontramos numa versatilidade fantástica e numa inesgotável capacidade de trabalho, sem cedências no tocante à exigência artística.

 

UM PORTUGUÊS ALÉM-FRONTEIRAS
O caso de “Os Doze de Inglaterra” merece atenção. Trata-se de uma das obras-primas de ETC – recentemente reeditada (Gradiva, 2016), graças ao inexcedível trabalho de recuperação de José Ruy, sobre o episódio relatado em “Os Lusíadas” no canto VI por Fernão Veloso, no qual se contam as aventuras do célebre “Magriço”, Álvaro Gonçalves Coutinho, que passa por mil aventuras e glórias e chega a Inglaterra, quando todos os onze companheiros desesperavam, para defender, com sucesso, a honra de doze donzelas ultrajadas, que haviam solicitado o auxílio de tão intrépidos cavaleiros. ETC baseou-se em Camões de na obra de António Campos Júnior, “Ala dos Namorados” (Edições Romano Torres, 1905) e daí resultou o magnífico álbum disponível nas livrarias. Nele se sente a influência de Harold Rudolf Foster (1892-1982), o célebre autor do “Príncipe Valente”, série iniciada em 1937. Aliás, os anos trinta são decisivos para o desenvolvimento moderno dos “comics” nos Estados Unidos e dos quadradinhos (BD) na Europa. Em 1939 foi criado o “Super-homem”, graças a Jerry Siegel e Joe Schuster, e em 1928 nasceu o Rato Mickey de Walt Disney, para concorrer com o Gato Felix de Otto Messmer (1919). Dez anos antes nascera Tintin e a Escola da Linha Clara, com Hergé, e a revista Spirou (da chamada Escola de Marcinelle) surge em 1938… Voltando a Harold Foster e a ETC, ambos dispensam os balões para os diálogos, enquanto Foster escolhe o período compreendido entre o final do Império Romano e o início da Idade Média, integrando-se no ciclo bretão que envolve a tradição céltica, o rei Artur, os Cavaleiros da Távola Redonda, Camelot, Merlin, Sir Galahad e Lançarote do Lago, o português escolhe o início da dinastia de Avis e a Ínclita Geração, invocando a Rainha vinda de Inglaterra e a origem da mais antiga aliança do mundo. Pode dizer-se que ETC atinge aqui a sua maturidade, o momento mais fecundo e de mais nítido domínio da ilustração. Há uma articulação perfeita entre a evolução da aventura e a apresentação das imagens, que se sucedem a um ritmo cinematográfico (como o autor desejava), impulsionando o movimento, a intensidade da identificação e a representação das personagens. E se as influências de H. R. Foster são evidentes, ETC cedo se libertou das amarras de qualquer seguidismo, demonstrando a sua excecional personalidade artística.

 

AO ENCONTRO DO ELDORADO
Quando ETC decide emigrar para França em 1953 vai usar o pseudónimo Martin Sièvre e colabora no semanário “Vaillant”, depois “Pif Gadget”, até 1970, com “Ragnar, o Viking”, “Till Ulenspiegel”, “Davy Crockett”, “Yves Leloup”, “Robin Dubois”, “Le Furet”, “Ayak”, “Erik le Rouge” e “Pipolin les Gaies Images” (1957-63), para os mais novos. É um período de grande produtividade, notando-se uma evolução na técnica usada, que corresponde à influência sentida pela moderna Banda Desenhada europeia, que ETC bem conhecia. No entanto, as grandes qualidades mantêm-se evidentes, continuando a ser reconhecido pelos melhores cultores. Em Portugal foi o “Mundo de Aventuras” que publicou a tradução de algumas dessas obras. A partir de 1970, trabalha em Itália, também com reconhecimento, sendo premiado como o prestigiado “Yellow Kid” do festival de Lucca. Jorge Molder, no magnífico Catálogo da Exposição organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em fevereiro de 2000, “Banda Desenhada Portuguesa Anos 40 – Anos 80”, comissariada por João Paulo Paiva Boléo e Carlos Bandeiras Pinheiro, faz justiça à importância da obra de ETC, apresentando-se na capa uma genial ilustração tirada de “O Mosquito”, número 673 (1945).

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença 

FELIZ NATAL DE ANO BOM E FUTUROS MELHORES!

 

   Pela sua própria etimologia latina, e na linguagem corrente, profecia quer dizer predição, quase como adivinhar o futuro. Todavia, a figura do profeta, bíblica e não só, desenha-se mais pela sua inspiração divina do que por habilitações de pitonisa. Nesse sentido, a profecia é sobretudo o anúncio ou transmissão de desígnios divinos sobre a vida e a história dos seres humanos. Não tem termo certo, é sempre o início de um percurso de conversão, a partir de uma nova leitura dos sinais dos tempos. Assim também, as narrativas bíblicas, tantas vezes inspiradas ou copiadas de tradições antigas, serão mitos, tal como os seus respetivos originais. Mitos, sim, mas não no sentido de fantasias pretensamente reais. Antes como interrogações sobre a nossa humana condição. Frei Philipe Lefebvre, frade dominicano e professor de teologia e exegese bíblica na Universidade de Friburgo (que é, como outras na Suíça, uma universidade do Estado) realça bem que há pais assassinos na Bíblia, como nos mitos, como na vida real.

 

  Resumindo, a questão não é saber se tal caso aconteceu, mas se a parábola mítica nos faculta uma palavra mais fundamental sobre a condição humana. Respondo que sim e que, por isso mesmo, os autores bíblicos retomaram e utilizaram os mitos por conta própria. 

 

   A celebração do Natal de Jesus é, profeticamente, em cada aniversário, o anúncio da glória celestial de Deus que se irá realizando na terra pela boa vontade dos humanos na construção da justiça e da paz. Na verdade, cada festa desse Natal é afinal um apelo, uma vocação, a que tudo façamos para que o novo ano que se aproxima seja, como lhe chamavam os nossos antigos, ANO BOM... e assim também sejam todos os mais em tempos da nossa vida. Eis o que quero acentuar quando dou um jeito especial aos meus votos e desejo Feliz Natal de Ano Bom: peço que este Natal seja nascimento de um Ano Novo Bom e com vista para outros, melhores ainda, que hão de vir! Faço votos de um Feliz Natal de tempos novos!

 

   Talvez por pensar e senti-lo tanto assim este ano, me ocorreu concentrar o meu olhar sobre sinais dos tempos que vivemos. Dizem-nos, diariamente, os noticiários que este mundo se vai cobrindo de dramas da migração de infelizes, e, por outro lado, de greves e reivindicações de tudo e sobre o mais que houver... E à chuva noticiosa vem depois ainda acrescentar-se, mais ou menos conformemente aos variegados indignados em moda, uma invasão de comentários que falam de tudo sem o fôlego requerido por qualquer alma que queira mesmo chegar ao fundo das questões. Ficamos sem perceber porque permanecem tantas perguntas sem resposta capaz.  

 

   Dos muitos sinais que por aí se vão  intermitentemente acendendo escolhi, para esta breve mensagem de Natal, os muitos afrontamentos que se agitam em redor da distribuição dos rendimentos e, nas avaliações de orçamentos de receitas e despesas públicas, sobre a questão do jurado equilíbrio das contas ou da fugidia sustentabilidade da segurança social. Conflitos que, aliás, surgem num cenário geral de desigualdade económica e social, mesmo em sociedades afluentes ou relativamente abastadas, cujas populações já não padecem situações de grande pobreza e necessidade, violência infligida, esquecimento ou ostracismo. Na verdade, nos países ditos desenvolvidos ou industrializados, as contendas mais comuns e frequentes traduzem sobretudo contradições inerentes ao modelo em voga do chamado capitalismo liberal. A desenfreada promoção do consumismo  -  fomento de compras muitas vezes supérfluas para aumentar lucros do capital e seus agentes, correndo até o risco da facilitação do crédito ao consumo que já tantos "buracos" financeiros gerou  -  não tem tido apenas efeitos económicos, pois atinge confusamente a própria racionalidade das opções do comportamento do mesmo homo economicus, e cria fantasiosas visões do mundo, da vida, do futuro, que cativam as mentes e comprometem a liberdade interior de cada um e a boa relação de pessoas e comunidades. A outra face dessa bússola moral e social em que se tornou a prossecução do lucro, é já hoje a generalizada orientação das gentes para o máximo usufruto e conforto dos bens oferecidos nos mercados. Consequentemente, o desejo de encontrar e garantir maior aumento das suas posses, através do crescimento máximo dos seus rendimentos próprios. Só marginalmente, na periferia dos debates próprios do sistema político, social e económico, vem finalmente ocorrer qualquer chamada à responsabilidade pública e coletiva - preferiria chamar-lhe comunitária - na solução de situações puramente humanas de abandono por desleixo. Os cuidados paliativos que tantas organizações civis e muitas pessoas generosamente providenciam são, para além do seu mérito próprio, mais gritos de alerta do que reformas eficazes de um sistema político e social, cuja cultura inspiradora e envolvente temos de rever urgentemente. Para um cristão, por exemplo, o tempo do advento e a celebração do Natal anunciam claramente que o Evangelho de Jesus é o anúncio da Boa Nova aos pobres.

 

   Perante tantas insolúveis questões sobre concórdia, justiça e paz nos sistemas vigentes, impõe-se que saibamos rever o atual modelo económico e social e, inspirados pela profundíssima humanidade do nascimento de Jesus, Deus e Palavra feito carne, e que trabalhemos pelo bem por vir.  Bem lembrados ainda das desutilidades, deseconomias e mais desastres que tal sistema vai provocando, sobretudo nas regiões do globo em que se esquecem as pessoas pela ganância do proveito, e se exploram riquezas naturais, sem cuidar dos prejuízos que, em consequência, possamos causar à casa de todos nós. As reformas necessárias a um sério esforço de melhoria da situação global, que inevitavelmente passará pelo estabelecimento da justiça económica e social não são essencialmente problemas técnicos a resolver. Antes radicam, devem radicar, em considerações humanistas e fortaleza moral. É hora de escolhermos, contra o princípio do lucro ou da riqueza como medida de todas as coisas, uma economia humanista em que seja o ser humano a nossa medida e a nossa bússola. Como já disse o Prof. Adriano Moreira, pobres de nós que substituímos o valor pelo lucro.

 

   Façamos votos de que o carinho que reunir, na noite deste Natal, tantas famílias tradicionais - e tantas outras que a emoção do momento ou a cultivada generosidade do amor fraterno conseguir congregar - nos aqueça, a todos nós, o coração. E que esse maravilhoso instante de comunhão não nos deixe esquecer o cumprimento do dever cívico de trabalharmos, com inteligência e vontade, pela realização dessa profecia que nos anuncia ser glória de Deus o anúncio da boa nova aos pobres. E pobres somos todos, sobretudo em tempos tão carenciados de solidariedade e da inteligência e boa vontade necessárias à sua construção.

 

   Mando-vos um abraço a dizer Feliz Natal!

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

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