Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Afligido por dores insistentes - e que me vão acometendo com maior frequência - tenho todavia passado uma deliciosa manhã outonal, posto em casa e avistando os campos largos em redor, e que, aqui e ali, vão amarelecendo e despindo-se. Escuto música da Renascença e do Barroco nascente, interpretada por Il Giardino Armonico sob direção de Giovanni Antonini. Gratificante álbum este, reunindo peças de dezassete compositores, produzido e editado pela Alpha-Classics, sob o título genérico de La Morte della Ragione, claramente respigado de um verso do Cancioneiro do grande Petrarca (Canzoniere, CCXI): Reinam os sentidos, é morta a razão. Contudo, quer esta música, quer a sua ilustração por imagens de Hyeronimus Bosch, de Caravaggio, e doutros pintores dos séculos XVI/XVII levam-me a refletir sobre o ensinamento de Erasmo (Moriae Encomium, ou Elogio da Loucura, capítulo XXXVIII) sobre as duas formas da loucura (traduzo): Na verdade, há dois tipos de loucura: a primeira é a que as fúrias vingadoras fazem surgir dos infernos sempre que, soltando as suas serpentes, introduzem no coração dos mortais o ardor da guerra ou a insaciável sede de ouro... A segunda é muito diferente desta, já que é loucura filha da Loucura e, portanto, aquilo que no mundo mais desejável é. Produz-se de cada vez que uma doce ilusão do espírito liberta a alma de angustiantes cuidados e a mergulha em alegrias maiores.

 

   Haverá, quiçá, outras mais loucuras. Talvez as que são simultaneamente origem e fruto de prazeres vários, por regra geral ditos prazeres da carne. Ao contemplar, neste preciso instante, cenas do Jardim das Delícias, do Bosch, ocorre-me uma sentença de Stéphane Audeguy, escritor francês, no seu artigo sugestivamente intitulado L´Empire de l´Incandescense (Le Nouveau Magazine Littéraire, nº 21, setembro de 2019) sobre Georges Simenon, erotómano inveterado, que se gabava de ter conhecido carnalmente 10.000 mulheres. Traduzo: De facto, o jovem Simenon, aluno de padres, depressa perdeu qualquer vocação religiosa, posto que se impunha que escolhesse o seu campo em matéria da origem do mundo. Ou, mais precisamente: a partir do momento em que Simenon faz a experiência essencial dessa desordem do mundo que se chama prazer gozado, deixa de acreditar seja no que for.

 

   Gustave Flaubert, quando viajava por Itália em companhia de sua irmã Carolina e do marido desta, Émile Hamard, perturbou-se, em Génova, com a visão da Tentação de Santo Antão de Breughel, ao ponto de, em carta a seu amigo Alfred Le Poittevin, com data de 13 de Maio de 1845, confidenciar que a obra do pintor flamengo o incitara a escrever, para teatro, sobre tal tentação... ou loucura: A Tentação, de Breughel: uma mulher deitada, nua, com um Amor a um canto... Enquanto olhava para a Tentação de Breughel, chegaram um senhor e uma senhora que se foram logo embora. A expressão dos seus semblantes diante daquelas telas era algo de muito profundo como estupidez. Cumpriam um dever...

 

   Nos seus apontamentos de viagem (Notes de Voyage - Palais Balbi, à Gênes - La Tentation de Saint Antoine, de Breughel), o mesmo escritor diz mais: Ao fundo, de ambos os lados, sobre cada uma das colinas, duas cabeças monstruosas de diabos, meio vivos, meio montanhas. Em baixo, à esquerda, Santo Antão entre três mulheres, e ele a desviar a cabeça para evitar as carícias delas; elas estão nuas, brancas, sorriem e procuram envolve-lo nos braços. Frente ao espectador, mesmo na parte de baixo do quadro, a Gula, nua até à cintura, magra, com a cabeça ornada de ornamentos vermelhos e verdes, triste cara, pescoço demasiado longo e esticado como o dum guindaste, desenhando uma curva na direção da nuca, com clavículas salientes lhe apresenta um prato cheio de coloridos petiscos. Homem a cavalo num barril; cabeças surgindo do ventre de animais; rãs com braços e a saltar no chão; homem com nariz vermelho em cima dum cavalo disforme, rodeado de demónios ; dragão alado a planar, tudo no mesmo plano. Conjunto em formigueiro, grasnando e gargalhando, em jeito grotesco e arrebatado, sob a bonomia de cada pormenor. Tal quadro parece-nos inicialmente confuso, mas, depois, torna-se estranho para a maioria, divertido para alguns, algo mais ainda para outros: para mim, apagou toda a galeria em que está exposto, já nem sequer me lembro do resto...

 

   No próprio texto da Tentation de Saint Antoine, Flaubert escreve um monólogo do santo eremita, ao ler um passo da Bíblia que diz: «A Rainha de Sabá, conhecendo a glória de Salomão, veio tentá-lo, propondo-lhe enigmas». Como é que ela contava tentá-lo? Também o Diabo quis tentar Jesus! Mas Jesus triunfou porque era Deus, e Salomão graças, talvez, à sua ciência de mágico. E como tal ciência é sublime! Pois o mundo - assim me explicou um filósofo - forma um todo cujas partes todas se influenciam umas às outras, como órgãos do mesmo corpo. Trata-se de conhecer os amores e as repulsões naturais das coisas, e pô-las depois em jogo?... Poderemos então modificar o que nos parece ordem imutável?

 

   Eis a questão, Princesa de mim, que me ocorreu durante a leitura daquela afirmação do Audeguy, acima citada: a partir do momento em que faz essa experiência da desordem do mundo, que é o prazer gozado, Simenon deixa de acreditar seja no que for. Mas será assim o prazer desordem sempre e, concomitantemente, inimigo original da fé? Em cada vez que experimento e sinto prazer, será que o delicioso desabrochar dos meus sentidos é advertente sinal de rebelião e insurreição? Tal, na verdade, parece ter sido frequentemente a conclusão de muito pensamento moral e religioso. Daí a estima em que eram tidos os chamados exemplos de culpabilização, penitência, sofrimentos, sacrifícios e sevícias auto infligidos em castigo desse pecado, ou dessa fraqueza moral, que seria cair na tentação da carne, obra do diabo ou, simplesmente, razão primeira de relaxamento e desordem vital. Aliás, essas fraquezas da carne, em representações pictóricas ou literárias, são quase sempre a cedência e cadência de homens (machos) ao demoníaco poder de sedução de mulheres nuas ou fêmeas oferecidas... Tanto isto nos diz sobre a misoginia da nossa cultura, e de Santo Agostinho e o maniqueísmo... A tal ponto, que até o que, nos quadros de Breughel e doutros, nos pode parecer meramente cómico ou alegórico, se torna, nos comentários de Flaubert, numa profunda impressão de carne despida para o sexo. Pelo que me parece legítimo perguntar-nos, Princesa de mim, que obscuras razões levaram a que o prazer que Deus criou para que se fosse gerando a vida tivesse sido estranhamente "convertido" em algo abominável e digno do fogo de qualquer suposto inferno. Lê as Bem Aventuranças da Boa Nova, bem como - ainda segundo Jesus Cristo - o inquérito a que cada um de nós será submetido no dia do Juízo. Fala-se aí de sexo ou de misericórdia? 

 

   Noutra ordem de reflexões, também me pergunto porque é que o século XVIII, o das Luzes, do triunfo do iluminismo racional, terá sido, sobretudo na pátria dos filósofos, uma época tão prolífera da literatura libertina e da própria libertinagem dos comportamentos. Ordem e desordem, como as duas faces de Janus? Ou não será que um certo rigorismo moral é de per si provocador, catalisador de revoltas, ousadias e atos desordeiros? Como também poderemos pensar que, afinal, o pecado maior não estará nas fraquezas da carne, mas no orgulho do espírito, seja este religioso (iluminado pela revelação divina, tantas vezes mal entendida) ou laico (iluminado pela razão humana, tantas vezes abusiva). A primeira edição, que eu conheça, de La Philosophie dans le Boudoir ou les Instituteurs immoraux, do Marquês de Sade, data de 1795, e apresenta-se como obra póstuma do autor de Justine. O respetivo subtítulo elucida-nos de que se trata de Dialogues destinés à l´éducation des jeunes demoiselles. Isto é: uma obra, quase compêndio, de iniciação à libertinagem. Não vou comentá-la, nem observar de perto a pornografia ali descrita em cenas a que, com certeira ironia, Roland Barthes chamou "pornogramas." Mas como o livro está recheado de considerações filosóficas sobre o prazer, a liberdade, a natureza, a religião e a política, traduzo-te uma delas, referente ao filósofo Dolmancé, personagem que, provavelmente, representará Sade (como mostrarei adiante): Só sacrificando tudo à voluptuosidade é que esse indivíduo infeliz chamado homem, sem culpa de ter sido atirado para este triste universo, poderá conseguir semear algumas rosas sobre os espinhos da vida. Mas não esqueçamos o retrato do autor dessas afirmações: Alto e de bela figura, olhos vivos e espirituosos, mas em cujos traços também se desenha algo de duro e um pouco mau...   ...o ateu mais famoso, o homem mais imoral...   ...a corrupção mais completa e mais inteira, o indivíduo mais malevolente e celerado que pode haver no mundo... Afinal, parece que a raiz do mal estará num qualquer uso da nossa consciência. Ora, a consciência humana é um paradoxo entre a natureza, em sentido bruto, e a graça como destino. Pelo que pensossinto que os moralistas, em vez de pregarem códigos minuciosos e castigadores, talvez devessem promover a promoção das consciências da gente para a liberdade da vida.

 

   As línguas dos povos ou, melhor dizendo, a língua que o povo fala é, nos seus modos vários e evolutivos, nas suas modas vocabulares, sinal atento de como vão mudando os valores, com suas referências (a cultura), e os comportamentos das gentes. Recordo, Princesa de mim, como, há décadas atrás, ser relaxado significava ser descuidado, relapso, imoral; nos tempos hodiernos, relaxar é descontrair, procurar sentir-se bem, recuperar tranquilidade e gosto da vida. Independentemente das normas por que nos regemos, a aspiração universal do ser moral é ser feliz. Apesar de se ter enformado em igrejas e doutrinas viciadas na "delícia" da pregação e exercício duma certa "justiça imperial", o próprio Cristianismo, logo nos seus textos neotestamentários e patrísticos, ressuma a esse anseio de felicidade, gosto de viver, alegria de libertação. Este profundo e antiquíssimo impulso do ser humano para a vida (ou, como escreveu S. João, para que seja completa a nossa alegria) não deve, não pode, ser ignorado. Não te digo isto agora, Princesa de mim, em defesa e promoção de libertinagem, mas a pensar na ordem da caridade, ou progresso do amor, de que nos fala São Bernardo, o reformador cisterciense da Ordem de São Bento. Um milénio, ou quase, antes de nós. Noutro contexto cultural e não só. Mas, mutatis mutandis, e fazendo nós algum esforço de entendimento do dito na sua própria circunstância, talvez possamos animar-nos um pouco com o olhar da clemência divina sobre a nossa sempre paradoxal condição. Traduzo trechos dos Sermones in Canticum Canticorum,coisas que um monge medievo disse e escreveu sobre o poema erótico que é o Cântico dos Cânticos:

 

   O rei introduziu-me na adega do vinho e ordenou em mim a caridade (Cântico dos Cânticos 2, 4). Eis qual me parece ser o sentido literal do primeiro capítulo: em conformidade com os seus desejos, a esposa teve um interlúdio doce e íntimo com o seu bem amado e, assim que este se afastou, regressa para junto das moças. Foi de tal modo excitada e acesa pela vista e palavras do Esposo, que parece etilizada. E como as moças se espantam com tal novidade e lhe perguntam porquê, responde que não há que estranhar que ela tenha sido aquecida pelo vinho, já que entrou na adega. Eis aqui o sentido literal. Em sentido espiritual, ela também não nega estar embriagada, mas de amor, que não de vinho...

 

   A fechar esta parábola, ou enigma, não sei, chama-lhe o que quiseres, minha Princesa de mim, não resisto a traduzir-te, da versão original francesa da Bible de Jérusalem, os versículos 3, 4 e 5 da parte 2 do primeiro poema do Cântico dos Cânticos:

 

               Como macieira entre as árvores de um pomar,
               assim é o meu amante entre os rapazes.
               À sua tão desejada sombra me sentei,
               e é tão doce o seu fruto ao meu sabor.
               Levou-me à adega,
               e o estandarte que sobre mim levanta é amor.
               Sustentai-me com bolos de passas,
               reanimai-me com maçãs,
               pois que de amor desfaleço.
               Pôs o seu braço esquerdo sob a minha cabeça
               e com o seu direito me abraça.

 

Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira