CRÓNICA DA CULTURA
Entrava-se no salão das inúmeras janelas daquele solar e mesmo sendo verão, logo se antecipava a recordação dos cheiros e dos sabores de Natal que começavam a bater na porta da memória aquando do final das vindimas.
A revelação de que o sabor do leite-creme era uma lição de afeto da bisavó e que os bolinhos de bolina teriam a exata dose de canela que lembrava o abraço-lugar-doce onde se adormecia seguro como em nenhum local, sendo este o dos braços da avó, e eis as surpreendentes realidades que nos diziam sem palavras, o que só os cheiros e os sabores sabem dizer transformando os ambientes em amor e paz.
A verdade é que o cheiro do trabalho das cozinhas espalhava-se pela casa abraçando todos no inicial silêncio dos manjares. Era um silêncio muito espiritual, era um silêncio de segredo infalível, pois nele as verdades expunham-se sem medo de que as mentiras ou deturpações ou sofreres do dia-a-dia, não fossem por elas vencidas de tanta compreensão.
E eis que este ano, em Miranda do Douro, as sopas e outros condutos servidos na Balbina deram azo ao ouvir da história de uma avó, que, passando todas as possibilidades de receitas dentro de um único pão de saberes, multiplicou as recordações das épocas tutelares, em que bastava o vapor dos caldos para que, na memória, se desenhasse a distinção entre o puro e o impuro, a inocência e a toalha de mesa, como uma salvação aos dias duros do resto do ano.
Não há dúvida de que de norte a sul de um país, de norte a sul do mundo, a comida é algo que ousa conviver com a vida dando-lhe cores, tráficos de sentido, poesias sem ornamentos, e leva à vida, não apenas a mera saciação, mas sobretudo o louvor sossegado das recordações tranquilas dos sabores, dos cheiros, das orações, dos entusiasmos, do contributo do dizível e do indizível e expõe-se também como ética e estética reabilitando o que nos faz feliz como dantes. Entenda-se este dantes como o tempo da experiência sem medo.
Assim, neste sentido, qualquer manjar, ainda que só de pão, é um ensaio humano exposto aos dias e às noites das nossas fragilidades e vulnerabilidades; é uma procura conjunta de cintilação na paisagem que nos liga ao mais fundo.
Há que saber que com ou sem épocas festivas marcadas no calendário, à mesa, o silêncio e os olhares dizem muito do que não sabemos. Os chãos destas mesas estão postos também com a toalha da terra, tudo é um convite ao exercício da atenção, um tempo que relata o eu e o nós, enquanto entregamos ao outro, o azeite, o sal, a possibilidade do reencontro com o que afinal julgáramos perdido.
Enfim, o leite-creme ou os bolinhos de bolina, a roupa velha do bacalhau do dia anterior, o peixe fresco ou a fruta de qualquer época do ano, todos afinal dialogam connosco em compromisso.
Resta-nos saber partilhar. Resta-nos saber que em tudo isto há excesso que se deve doar em doação doada e que possamos perceber quase tudo sem necessidade de dizer muito.
Cremos que um dos grandes desafios é, em cada dia, voltar a olhar e a saborear tudo pela primeira vez, como um acolhimento mútuo, uma intimidade, uma morada, uma resposta, uma visita à oficina dos sonhos reais.
Teresa Bracinha Vieira