CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM
Minha Princesa de mim:
Habituei-me a escutar a soprano francesa Sandrine Piau cantando árias de Haendel e Mozart, e revejo com alguma frequência o registo videográfico da ópera Alcina, em que o seu desempenho da personagem com o mesmo nome me comove profundamente. Esta manhã descubro-a noutras interpretações, que me encantam mais do que surpreendem : em canções de vários compositores franceses dos séculos XIX e XX, em que se faz acompanhar por Le Concert de la Loge, dirigido, ao violino, por Julien Chauvin. Mas não será deste álbum - que a editora Alpha intitulou Si j´ai aimé e publicou este ano - que te falarei aqui e agora. Esta presente carta minha vai curta, quero tão somente deixar-te o texto original e a minha versão portuguesa (que é muito simples e não pretende ser criativa) do poema de Victor Hugo - Extase - que, posto em música pelo meu homónimo Camille Saint-Saëns, abre esta colectânea. Não o faço por grande amor ao romantismo, ou a Victor Hugo em especial, mas porque bebi, no canto deste poema, um pensarsentir tão simples, tão lindo e tão forte - que logo o reconduzi à leitura desse passo do Livro da Sabedoria que nos é proposto neste primeiro domingo de Novembro, quando já se anuncia um tempo novo e nos vamos aconchegando à misteriosa ternura do Natal que vem aí. Vai este passo do capítulo 11 para o 12 :
Perante Ti, Senhor, o mundo inteiro é como um grão de areia na balança, como a gota de orvalho na manhã. De tudo Te compadeces, porque és omnipotente e não procuras ver os pecados, mas o arrependimento. Amas tudo o que existe e não odeias nada do que fizeste... ...Tu amas a vida, Senhor... ...o teu espírito incorruptível está em todas as coisas...
Assim me ocorreu como poderia ter sido Victor Hugo inspirado quando disse aos anos rápidos : A minha alma tem mais chama do que vós cinzas! / O meu coração mais amor do que vós esquecimento! Vamos então ao Extase:
Puis-que j´ai mis ma lèvre à ta coupe encore pleine; Porque aos lábios levei o teu cálice cheio;
Puisque j´ai dans tes mains posé mon front pâli ; E em tuas mãos pousei meu pálido rosto;
Puisque j´ai respiré parfois la douce haleine Porque fui respirando o hálito suave
De ton âme, parfum dans l´ombre enseveli; Da tua alma, perfume em sombras amortalhado;
Puisqu´il me fut donné de t´entendre me dire Porque tive a dita de te ouvir dizer
les mots où se répand le coeur mistérieux; palavras em que se verte o coração misterioso;
Puisque j´ai vu pleurer, puisque j´ai vu sourire Porque vi chorar, já que vi sorrir
Ta bouche sur ma bouche, et tes yeux sur mes yeux ; A tua boca na minha, os teus olhos nos meus;
Puisque j´ai vu briller sur ma tête ravie Porque vi cintilar e encantar-me a cabeça
Un rayon de ton astre, hélas! Voilé toujours; Um raio do teu astro, que triste fado encobre;
Puisque j´ai vu tomber dans l´onde de ma vie Porque vi cair na onda da minha vida
Une feuille de rose arrachée à tes jours Uma folha de rosa arrancada aos teus dias
Je puis maintenant dire aux rapides années : Posso agora dizer aos anos rápidos :
- Passez ! Passez toujours! Je n´ai plus à vieillir! - Passai! Passai quanto quiserdes, que velho não ficarei !
Allez-vous-en avec vos fleurs toutes fanées; E passai levando as vossas flores todas murchas, pois
J´ai dans l´âme une fleur que nul ne peut cueillir! Trago na alma uma flor que ninguém pode arrancar !
Votre aile en le heurtant ne fera rien répandre Nem lhe tocando poderá vossa asa entornar
Du vase où je m´abreuve et que j´ai bien rempli. O vaso que me mata a sede e trago bem cheio.
Mon âme a plus de feu que vous n´avez de cendre Tem mais chama a minha alma, do que vós tendes cinzas
Mon coeur a plus d´amour que vous n´avez d´oubli! Meu coração mais amor do que vós esquecimento !
O dom do amor, seja como ele for, é a primeira graça de Deus. E o poeta, qualquer poeta, é, na sua alma, um pastor que, como os bem aventurados puros de coração, durante toda a vida conduz, sem cansaço, medida ou duração, pelos longos caminhos da transumância, essa inicial e essencial memória da infância.
Nesta terça feira, 5 de Novembro, recebi um livro escrito pelo meu amigo José Manuel de Braga Dias: As Cores do Tempo (Causa das Regras, Oeiras, Outubro de 2019). Nele achei muitas coisas bonitas, talvez por me saberem a sentidas verdades de gente. Coisas que afinal todos partilhamos, como estas:
...Se não fossem os meus netos
Não recordaria como fazer contas
Juntar letras, criar palavras,
Alinhar palavras para construir frases
Juntar e dividir frases para fazer um conto
Que me recordasse alguém que também foi menino
E gostava de inventar a felicidade
Nos escritos e palavras que criava.
Bem hajas, Zé Manel!
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira