REDENÇÃO E SANGUE EM SCORSESE
Martin Scorsese estreou agora, numa fórmula heterodoxa ou
quase herege, o seu “The Irishman” na Netflix, sem ir à sala de cinema.
Sigo-lhe as pisadas heterodoxas e olho para o seu “Taxi Driver”
através do livro que a Taschen lhe dedicou
É um livro, “Taxi Driver”, e começa exactamente onde o filme começou. Começa na cabeça de Paul Schrader. Da página 12 à 24, numa entrevista catártica, o livro mostra os miolos do seu criador.
Lemos e vemos a cabeça de um tipo que tem dificuldade em dormir, sempre acordado até às 4, até às 5 da matina. Inquieto, esquizo, esconde uma garrafa de whisky no bolso do casaco, e mete-se no carro, a deambular pelas wee-wee hours de Los Angeles. Pára nuns antros a ver pornografia, a essas horas a que se via pornografia, antes da web barrar com ela as nossas torradas do pequeno-almoço. Não consegue dormir, não consegue comer. Schrader quer escrever filmes e traz no corpo um livro de desassossego. A esta excelente cabeça salvou-a um mau estômago. Paul Schrader teve uma úlcera e a abençoada úlcera parou com aquele ultraje aos princípios calvinistas bebidos no leite materno. Pensava redimir-se abandonando L.A., quando se lhe desenha no cérebro a metáfora do táxi, como a Álvaro de Campos a da tabacaria, e escreve o guião de “Taxi Driver”.
Paul Schrader era pouco mais do que um desgraçado. Ninguém lhe ligou nenhuma até escrever “Yakuza”, argumento que um estúdio comprou por um balúrdio. Com milhares de dólares a aquecer-lhe o ego e os bolsos, voltou a “Taxi Driver”. Arranjou um par de produtores idealistas, faltava-lhe o realizador. Foi ele que descobriu Scorsese. Viu “Mean Streets”, essa meia-dose de coca pura, e disse aos produtores que queria o pacote inteiro: queria o realizador, Martin Scorsese, e o actor, Robert De Niro.
Está tudo neste livro, mas é preciso ter algum músculo para o lermos. Com 38 centímetros de altura, por 25 de largura, quase 4 centímetros de lombada, este é um dos casos em que o tamanho conta. Ou seja, nem pensem levá-lo para a cama. Abra-se em cima de uma mesa, que ninguém aguenta andar a ler com 5 quilos nos braços. São 400 páginas de pouco texto e muitas fotografias assinadas por Steve Schapiro. Quem é Schapiro? Não sei. Esta monumental edição da Taschen dá-lhe honras de capa e depois não lhe liga pevide. Nem uma nota biográfica, um rodapé autoral. Olha, foi um tipo que teve a sorte de fotografar o que aconteceu. Vamos então ao que aconteceu.
Os meus generosos leitores têm para aqui um cronista, tira da vida e mete no cinema, que até parece que só há filmes americanos. Ora vai-se a ver e todo o verdadeiro artista americano é um mariconço afrancesado. Basta voltar à cabeça de Schrader que deixámos lá em cima. A cabeça dele andava assim por estar embebida de “A Náusea”, de Sartre. Schrader, nascido no Michigan, objecto de austeridade pulsional protestante durante a infância, quis escrever um guião sobre o herói existencial à europeia. Mamou Sartre, e ele não diz, talvez por vergonha, mas se calhar também se enfronhou no Bernanos, vendo depois nas cinematecas o “Journal d’un Curé de Campagne” do esquecido jansenista que é Robert Bresson. Ora, o que um padre de Bernanos ou de Bresson mete para dentro em despojamento e leituras de breviário, o protagonista de “Taxi Driver” mete para fora a Magnums.44 – ele que visivelmente, de si mesmo, tem dificuldade em meter seja o que for.
“Taxi Driver” era, portanto, um filme de Schrader. Chega Scorsese e, de americano para americano, rouba-lhe o filme. “Fui eu que escrevi isto”, disse Scorsese ao ler o guião. “Cada uma destas palavras arde debaixo da minha fuckin’ skin.”
Mas roubou como? Mudando de franceses. Dou exemplos e vou ser generoso. Schrader desunhara-se a descrever pormenores do quotidiano, pequenos-almoços, ruas, silhuetas das pessoas que passam, sacando-as ao Bresson de “Pickpocket” e “Mouchette”, coisinhas mais íntegras e éticas do que estéticas. Scorsese pulverizou as ideias depressivas e a conceptualização de Schrader: passou tudo a ser godardiano, imagens nervosas, trabalhadas a travellings e panorâmicas. E há outra coisa: Schrader tinha escrito um filme calvinista, despido, ascético. Está no Robert De Niro do filme, naquele braço tenso e teso que De Niro mostra ao espelho e que podemos ver, no livro, nas 22 páginas de fotos, de beleza devastadora, do capítulo “total organization is necessary”.
Era o que Schrader queria, mas o coração de Scorsese, formado em Virgem Maria, romarias, procissões e comunhão solene, crismou aquela trampa seca e gélida de Schrader com, digo eu, um renascentismo siciliano: Nova Iorque, a cidade do filme, converte-se numa igreja católica. Néones como se fossem altares, multidões de peregrinos em noites de 42nd Street, semáforos e faróis que parecem a procissão das velas. Scorsese meteu um calor mediterrânico onde a Schrader fazia um frio escandinavo.
Há sempre um ladrão que rouba outro ladrão. Ironia das ironias, Robert De Niro roubou a Scorsese, que já a roubara a Schrader, a melhor cena. Lembram-se? Frente ao espelho, o actor experimenta as armas, corpo magro, seco, que jamais pensaríamos que viesse a dar a bola redonda e balofa de “Raging Bull”. Schrader via a cena quase como uma ascese, via De Niro como uma frígida Teresa d’Ávila que tirasse um Colt 38 de entre as pernas.
Mas Scorsese filmou tudo com o baixo-ventre de Godard, numa linha “montage, mon beau souci”, numa fragmentação meio experimental. Um a roubar ao outro e, do nada, a olhar-se ao espelho, o cabrão do actor começa a dizer coisas, “are you talkin to me, are you talkin to me!”, num improviso que não estava escrito, nem planificado, deixando os donos do filme a tinir. De Niro, nessa cena, vale uma década de cinema.
Roubou mais. De Niro roubou a cabeça ulcerosa que fizera Schrader escrever tanta solidão. Numa foto, na página 13, vê-se De Niro, a pé, com o disco que vai oferecer a uma putativa namorada. Há um tipo atrás dele, de fato azul, e é tudo igual, a abertura de braços, o mesmo botão apertado do fato, as pernas cambaias. Esse tipo é Paul Schrader e vê-se que é, como De Niro, o mesmo tipo de rato que, a pé ou de táxi, se move bem no esgoto mais escuro.
“Taxi Driver” é o livro de um filme que nos rouba a calma e o sossego. Com um frigorífico de emoções dentro de si, um tipo conduz um táxi na noite de uma cidade que ele vê como uma catedral pejada de lixo humano. Sonha com um sopro de redenção que lave tudo a sangue. Tipos destes, avisa Schrader, devem ser abatidos. Tenho agora o tipo preso num livro de cinco quilos da Taschen. Prisão perpétua.
Manuel S. Fonseca