A VIDA DOS LIVROS
De 23 a 29 de dezembro de 2019
No âmbito do centenário de Eduardo Teixeira Coelho (1919-2005), foi com muito gosto que aceitei o convite do Clube Português de Banda Desenhada, com sede na Amadora, para, mais uma vez, partilhar despretensiosas reflexões nessa prestigiada instituição.
LEMBRAR EDUARDO TEIXEIRA COELHO
Desta vez, com José Ruy, mestre indiscutível da nona arte, e João Manuel Mimoso, cultor desse apaixonante tema, tratou-se de homenagear Eduardo Teixeira Coelho (1919-2005), referência fundamental nas histórias aos quadradinhos em Portugal, o mais internacional dos nossos autores, cujo centenário do nascimento ocorre em 2019. Se é certo que a popularidade da Banda Desenhada em Portugal não oferece dúvidas, a verdade é que no panorama mundial não temos referências essenciais reconhecidas. Mas tal não significa que passe despercebido o lugar de Portugal – e, no tocante a autores nacionais, Eduardo Teixeira Coelho (ETC) é uma exceção, uma vez que trabalhou em França e em Itália, a partir de 1953, ano em que “O Mosquito” (1ª série) deixou de se publicar. Então teve uma atividade intensa em relevantes publicações dos países onde esteve, destacando-se pessoalmente pelas qualidades demonstradas no plano artístico e no domínio das narrativas ilustradas, com uma identidade própria e uma especial originalidade. No entanto, quando saiu de Portugal já atingira uma inequívoca maturidade, afirmando-se como um autor reconhecido por todos pela sua excecional qualidade. Nascido em Angra do Heroísmo, começou a colaborar no “Sempre Fixe”, com apenas 17 anos, e a partir de 1943 vemo-lo nas páginas de “O Mosquito”, ao lado de Raul Correia, constituindo uma dupla influente e talentosa. “O Mosquito” foi lançado em 1936, dirigido por António Cardoso Lopes (Tiotónio, autor de Zé Pacóvio e do Grilinho) para responder a “O Papagaio” de Adolfo Simões Müller, criado em 1935 – onde foram publicadas as primeiras aventuras de Tim-tim, tendo na sua equipa pessoas como Júlio Resende e José Viana. “O Mosquito” atingiu uma tiragem de 70 mil exemplares (o que é impressionante), ao preço de cinquenta centavos, metade de um escudo, o preço da concorrência. Foi inicialmente semanário até 1942, e depois bissemanário, às 4ªs e aos sábados, dias em que os liceus não tinham aulas à tarde… “O Mosquito” publicou estórias de autores britânicos, como Roy Wilson; espanhóis, como Jesus Blasco (criador de Cuto), americanos como Harold R. Foster (autor de “Príncipe Valente”) – além dos portugueses ETC, Vítor Péon, José Garcês e José Ruy. A lista de publicações de ETC em “O Mosquito” é notável, devendo referir-se “Os Guerreiros do Lago” (1945); “Os Náufragos do Barco sem Nome” (1946); “Falcão Negro” (numa tentativa de lançar um herói, que pudesse perdurar, mas apenas se manteve até de 1946 a 1949): “O Caminho do Oriente” (1946-48); “Sigurd, o Herói” (1946); “A Lei da Selva” (1948); “Lobo Cinzento” (1948-49); “A Torre de D. Ramires” (adaptado da “Ilustre Casa” de Eça); “O Defunto” (1950); “Suave Milagre” (do conto também de Eça); “Os Doze de Inglaterra” (1950-51) e “A Ásia” (1952). Assina algumas capas do “Cavaleiro Andante”. O esmero e a qualidade vão-se afirmando, quer no tratamento gráfico, quer nas narrativas e na escolha dos temas. A vida dos celtas e dos povos nórdicos, a presença dos animais na natureza, a História de Portugal, as tradições culturais – de tudo encontramos numa versatilidade fantástica e numa inesgotável capacidade de trabalho, sem cedências no tocante à exigência artística.
UM PORTUGUÊS ALÉM-FRONTEIRAS
O caso de “Os Doze de Inglaterra” merece atenção. Trata-se de uma das obras-primas de ETC – recentemente reeditada (Gradiva, 2016), graças ao inexcedível trabalho de recuperação de José Ruy, sobre o episódio relatado em “Os Lusíadas” no canto VI por Fernão Veloso, no qual se contam as aventuras do célebre “Magriço”, Álvaro Gonçalves Coutinho, que passa por mil aventuras e glórias e chega a Inglaterra, quando todos os onze companheiros desesperavam, para defender, com sucesso, a honra de doze donzelas ultrajadas, que haviam solicitado o auxílio de tão intrépidos cavaleiros. ETC baseou-se em Camões de na obra de António Campos Júnior, “Ala dos Namorados” (Edições Romano Torres, 1905) e daí resultou o magnífico álbum disponível nas livrarias. Nele se sente a influência de Harold Rudolf Foster (1892-1982), o célebre autor do “Príncipe Valente”, série iniciada em 1937. Aliás, os anos trinta são decisivos para o desenvolvimento moderno dos “comics” nos Estados Unidos e dos quadradinhos (BD) na Europa. Em 1939 foi criado o “Super-homem”, graças a Jerry Siegel e Joe Schuster, e em 1928 nasceu o Rato Mickey de Walt Disney, para concorrer com o Gato Felix de Otto Messmer (1919). Dez anos antes nascera Tintin e a Escola da Linha Clara, com Hergé, e a revista Spirou (da chamada Escola de Marcinelle) surge em 1938… Voltando a Harold Foster e a ETC, ambos dispensam os balões para os diálogos, enquanto Foster escolhe o período compreendido entre o final do Império Romano e o início da Idade Média, integrando-se no ciclo bretão que envolve a tradição céltica, o rei Artur, os Cavaleiros da Távola Redonda, Camelot, Merlin, Sir Galahad e Lançarote do Lago, o português escolhe o início da dinastia de Avis e a Ínclita Geração, invocando a Rainha vinda de Inglaterra e a origem da mais antiga aliança do mundo. Pode dizer-se que ETC atinge aqui a sua maturidade, o momento mais fecundo e de mais nítido domínio da ilustração. Há uma articulação perfeita entre a evolução da aventura e a apresentação das imagens, que se sucedem a um ritmo cinematográfico (como o autor desejava), impulsionando o movimento, a intensidade da identificação e a representação das personagens. E se as influências de H. R. Foster são evidentes, ETC cedo se libertou das amarras de qualquer seguidismo, demonstrando a sua excecional personalidade artística.
AO ENCONTRO DO ELDORADO
Quando ETC decide emigrar para França em 1953 vai usar o pseudónimo Martin Sièvre e colabora no semanário “Vaillant”, depois “Pif Gadget”, até 1970, com “Ragnar, o Viking”, “Till Ulenspiegel”, “Davy Crockett”, “Yves Leloup”, “Robin Dubois”, “Le Furet”, “Ayak”, “Erik le Rouge” e “Pipolin les Gaies Images” (1957-63), para os mais novos. É um período de grande produtividade, notando-se uma evolução na técnica usada, que corresponde à influência sentida pela moderna Banda Desenhada europeia, que ETC bem conhecia. No entanto, as grandes qualidades mantêm-se evidentes, continuando a ser reconhecido pelos melhores cultores. Em Portugal foi o “Mundo de Aventuras” que publicou a tradução de algumas dessas obras. A partir de 1970, trabalha em Itália, também com reconhecimento, sendo premiado como o prestigiado “Yellow Kid” do festival de Lucca. Jorge Molder, no magnífico Catálogo da Exposição organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em fevereiro de 2000, “Banda Desenhada Portuguesa Anos 40 – Anos 80”, comissariada por João Paulo Paiva Boléo e Carlos Bandeiras Pinheiro, faz justiça à importância da obra de ETC, apresentando-se na capa uma genial ilustração tirada de “O Mosquito”, número 673 (1945).
Guilherme d'Oliveira Martins
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