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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

MEMÓRIA DE FERNANDO BENTO

 

A edição que hoje vos apresento é preciosa. Trata-se do número do Natal de 1954 do “Cavaleiro Andante”. Representa um vitral da autoria de Fernando Bento (1910-1996), o grande ilustrador da revista dirigida por Adolfo Simões Müller. Nota-se o traço inconfundível do autor. O número especial vendia-se em duas versões: normal e encadernado, sendo que um custava 10 escudos e o outro 16. Em primeiro plano, fora da representação, está o Cavaleiro Andante (símbolo da revista) ajoelhado. No quadro central está a Sagrada Família, no painel da esquerda estão os três magos e do lado direito, figuras exóticas de pastores com feições tipicamente orientais. E assim lembramo-nos das ilustrações de Bento sobre narrativas em terras distantes. Trata-se de um presépio que procura representar o momento histórico da Natividade de Jesus, e não, como normalmente, a encenação recriada por S. Francisco de Assis, que corresponde normalmente ao que nos é familiar. Se nos lembrarmos dos presépios tradicionais portugueses, como os de Machado de Castro e da sua oficina, vemos os pastores vestidos com roupas tradicionais, bem portuguesas. Não é este o caso. O desenhador quis dar um toque de originalidade e de exotismo ao seu desenho. De facto, a originalidade do traço de Fernando Bento associa-se muitas vezes a figuras com traços marcados. A cada passo, notamos no desenho inconfundível do autor uma preocupação de movimento, bem evidenciada em obras-primas, como “Beau Geste” (1952) e “Emílio e os Detetives” (1957-58). Como afirma João Paulo Paiva Boléo: “Fernando Bento é um dos maiores autores, um dos maiores desenhadores da BD portuguesa. Fernando Bento marcou o imaginário de milhares de leitores, fê-los sonhar, fê-los descobrir mundos ‘da Terra à Lua’, histórias de emoção e de coragem… Em síntese, abriu-lhes (abriu-nos), em simultâneo, o mundo da aventura e o mundo da literatura. Deu-nos a magia de uma arte de corpo inteiro, que vive da sugestão da ação e – como repetidamente se tem sublinhado – do preenchimento do espaço branco entre imagens, da elipse, de uma forma original de contar histórias através da utilização singular, sugestiva e sintética do desenho e do texto, e abriu-nos o caminho para outra arte, mais sugestiva ainda, mas convocadora ainda da imaginação, a literatura, assente na maior e mais distintiva criação da inteligência humana – a palavra”. Esta apreciação constitui uma análise rigorosa das características de Fernando Bento. Com efeito, a aventura e a literatura encontram-se intimamente relacionadas. E o exemplo que hoje aqui trazemos, permite-nos compreender que cada figura representada pode muito bem estar associada a uma aventura literária: a viagem dos três reis magos, a presença dos jovens pais Maria e José, com o filho recém-nascido e a presença misteriosa dos pastores, que se assemelham a berberes do deserto… No fundo, é a magia da Banda Desenhada que aqui está toda – a ilustração, o movimento, a aventura, a literatura, o enredo, a palavra… E lembro um poema de Miguel Torga para ilustrar este vitral, que nos lembra um tempo antigo, um autor profícuo e um artista, o desenhador Fernando Bento, merece muito ser lembrado   

 

Foi tudo tão pontual
Que fiquei maravilhado.
Caiu neve no telhado
E juntou-se o mesmo gado
No curral.

Nem as palhas da pobreza
Faltaram na manjedoira!
Palhas babadas da toira
Que ruminava a grandeza
Do milagre pressentido.
Os bichos e a natureza
No palco já conhecido.

Mas, afinal, o cenário
Não bastou.
Fiado no calendário,
O homem nem perguntou
Se Deus era necessário...
E Deus não representou.

 

Agostinho de Morais