JEAN-PAUL SARTRE E O NATAL
1. Ninguém pensa a partir do nada, melhor, a partir de zero. Quando damos por nós, já cá andávamos e estamos sempre marcados pela nossa história desde o ventre materno, pelas experiências fundas dos nossos primeiros encontros e desencontros na vida, na família, numa determinada língua, com os vizinhos, com os amigos, ...
Há os pressupostos no sentido negativo: ir para um encontro, para um debate, já com preconceitos malévolos. Mas ninguém está na vida sem pressupostos no sentido indicado, positivo: a nossa história toda que nos marca positiva e negativamente. Ninguém se encontra na vida puro, sem pressupostos, sem preconceitos. Ninguém parte de um ponto inaugural puro e neutro.
Também o filósofo Jean-Paul Sartre foi marcado pelas suas experiências, desde tenra idade. Segundo Charles Moeller, ter ficado órfão de pai muito cedo e viver com o padrasto como um estranho foi uma experiência marcante. A sua posição face à fé é bem conhecida e essa sua experiência de órfão não lhe foi indiferente.
Para ele, o mundo é sem sentido, o ser está a mais, é “viscoso” — leia-se A Náusea. Na sua obra estritamente filosófica, O ser e o nada, quer explicar como é que o desejo do ser humano é ser Deus, mas o próprio conceito de Deus é contraditório. Por isso, é absurdo ter nascido, é absurdo viver, é absurdo morrer. Reclamando uma liberdade absoluta, nega a alteridade, o mundo, Deus.
Houve, no entanto, uma espécie de interregno neste seu posicionamento intelectual e existencial. Com a derrota do exército francês, foi feito prisioneiro, e precisamente em 1940, num campo de prisioneiros escreveu um auto de Natal — Bariona, ou le Fils du tonerre (Barjonas, ou o Filho do trovão), para ser representado num barracão, um auto que unisse cristãos e não cristãos. Ele próprio desempenhou o papel de uma das personagens, mas que se trata de uma espécie de interregno prova-o o facto de a sua primeira publicação, em 500 exemplares não comercializáveis, só se ter dado em 1962. Mas também escreveu a Simone de Beauvoir: “Parece que fiz um mistério de Natal muito comovente, de tal modo que um dos actores, quando representava, chegava a chorar.”
Não vou desenvolver o desenrolar da peça. Mas do que se trata, em vários níveis e desenvolvimentos, é do confronto entre, por um lado, o niilismo existencialista, colocar um ponto final ao absurdo e à Humanidade, e, por outro, a luminosidade de um novo nascimento, que abre esperança para um mundo novo, um recomeço, “um novo início”, como diz Massimo Borghesi, que estou a seguir.
Barjonas, que quer convencer Sara a eliminar o filho que tem no seu ventre, diz-lhe: “Mulher, essa criança que queres deixar nascer é como uma nova edição do mundo. Por meio dela, as nuvens, a água, o sol, as casas, as dores dos homens existirão mais uma vez. Tu recriarás o mundo. Fazer um filho é aprovar a criação do mundo do fundo do próprio coração, é dizer ao Deus que nos atormenta: ‘Senhor, tudo é bom e dou-vos graças por terdes feito o universo’. Queres realmente cantar esse hino? A existência é uma lepra horrenda que nos corrói a todos, e nossos pais foram culpados.”
Mas lá está também o rei mago Baltasar, personificado em cena pelo próprio Sartre e que representa o momento da esperança: “É verdade, somos muito velhos e muito sábios e conhecemos todo o mal da Terra. Por isso, quando vimos aquela estrela nos céus, os nossos corações alegraram-se como o das crianças, e tornámo-nos crianças e pusemo-nos a caminho, pois queríamos cumprir o nosso dever de homens que esperam. Quem perde a esperança, Barjonas, será expulso do seu vilarejo. Mas a quem espera tudo sorri e o mundo é dado como um presente.”
A esperança de Baltasar é como a esperança de Sara. Também ela quer ir a Belém: “Lá em baixo, há uma mulher feliz e satisfeita, uma mãe que deu à luz por todas as mães. É como se me desse uma permissão: a permissão de pôr no mundo o meu filho, dando-o à luz. Quero vê-la, vê-la, essa mãe feliz e sagrada.”
Em Belém, diante do estábulo, Barjonas encontra Maria de costas, não vê Jesus, vê apenas José: “Mas vejo o homem. É verdade, como ele olha para o Menino! Com que olhar! O que pode haver por trás daqueles dois olhos claros, claros como duas profundezas límpidas nesse rosto doce e marcado? Que esperança será essa?”
Sartre está mesmo à porta do mistério cristão, pondo Barjonas a afirmar: “Um Deus-Homem, um Deus feito da nossa carne humilde, um Deus que aceitaria conhecer este gosto de sal que existe no fundo das nossas bocas quando o mundo inteiro nos abandona, um Deus que aceitaria antecipadamente sofrer o que eu sofro hoje.”
2. E aí fica outra parte belíssima, a mais bela, do texto de Jean-Paul Sartre. Todas as mães olharão para o seu bebé com um encanto que só elas poderão sentir perante aquele milagre que vem delas e as ultrapassa infinitamente. Neste texto, Sartre descreve-nos o maravilhamento terno e a ternura maravilhada e também ansiosa, inexcedíveis, de Maria diante do seu “pequenino”.
“A Virgem está pálida e olha para o Menino. Seria preciso pintar no seu rosto aquela admiração ansiosa que se viu apenas uma vez num rosto humano.
Porque Cristo é o seu Filho, a carne da sua carne e fruto do seu ventre. Ela teve-O em si própria durante nove meses e dar-Lhe-á o seio e o seu leite tornar-se-á sangue de Deus.
Há momentos em que a tentação é tão forte que esquece que Ele é Filho de Deus.
Aperta-O nos braços e sussurra-Lhe: ‘Meu pequenino’.
Mas noutros momentos fica perplexa e pensa: ‘Deus está ali’ e é invadida por um religioso temor por este Deus mudo, por esta criança que, num certo sentido, incute medo.
Todas as mães ficam perplexas, por um momento, diante daquele fragmento da sua carne, que é a sua criança, e sentem-se exiladas perante esta nova vida feita da sua vida, habitada por pensamentos alheios. Mas nenhum filho foi arrancado à sua mãe de forma tão cruel e radical, porque Ele é Deus e ultrapassa completamente tudo o que ela poderia imaginar... Mas penso que houve também outros momentos, rápidos e fugazes, em que ela sente que Cristo é o seu Filho, o seu menino, e que é Deus.
Olha-O e pensa: ‘Este Deus é meu menino, meu filho. Esta carne é a minha carne, é feito de mim, tem os meus olhos e a forma da sua boca é semelhante à minha, parece-se comigo. É Deus e parece-se também comigo’.
E nenhum ser humano recebeu da sorte o seu Deus só para si, um Deus tão pequenino para apertar nos braços e cobrir de beijos, um Deus quentinho que sorri e respira, um Deus que se pode tocar e que ri.
É nesses momentos que eu, se fosse pintor, pintaria Maria.”
3. Sartre, conclui Massimo Borghese, “nunca mais escreveria assim, nem de Deus nem do homem. A obra do Natal de 1940 continuará a ser, deste ponto de vista, uma ‘excepção’, como se a atmosfera peculiar do campo de prisioneiros o tivesse tornado mais próximo do mistério da existência. Mas isso bastou para nos conceder uma das mais belas representações do Natal na literatura do século XX.”
4. Bom Natal! Feliz, habitado pela esperança que Jesus é para todos! No final da peça, Barjonas reúne os seus homens e está disposto a bater-se para salvar a vida de Jesus, que Herodes mandou matar. Como escreveu M. Perrin, “os homens de Barjonas vão em frente, talvez para morrer, mas morrerão para que não seja assassinada a esperança dos homens livres”.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 22 DEZ 2019