CRÓNICAS LUSO-TROPICAIS
11. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO
Gilberto Freyre nunca se libertou das acusações de ter apoiado o regime de Salazar, após uma viagem ao Portugal continental e ultramarino de então, de que são seu retrato “Aventura e Rotina” e “Um brasileiro em terras portuguesas”.
De nada lhe valeu defender-se dizendo que se limitava a expor e lutar pelas suas ideias numa pesquisa sociológica e que o regime as utilizava, apesar das críticas às práticas racistas da Companhia de Diamantes de Angola e de criticar a existência da censura no regime salazarista.
Sobre esta temática, argumenta Adriano Moreira:
É notório que o luso-tropicalismo não conseguiria deixar de ser utilizado na crise colonial portuguesa, como não evitou sê-lo na crise social brasileira, pelos Governos respetivos, para legitimarem as suas políticas, mesmo quando a autenticidade não acompanhava os discursos. Mas isto não é uma novidade, é destino das doutrinas, como aconteceu aos federalistas inspiradores do discurso dominante do Estado americano que praticou o genocídio dos índios, como aconteceu aos liberais invocados pelas democracias da frente marítima europeia que criaram os impérios coloniais novecentistas, como aconteceu aos utopistas que enriqueceram o discurso do socialismo real soviético. O importante é a permanência das doutrinas, sobreviventes às contingências políticas que também as afetam, e o luso-tropicalismo deixou vigente um critério de identidade, para além da língua, que foi o de entender a cultura, soma de convergências, como a referência comum de povos que trocam padrões de comportamento, valores, experiências e vida”
(“A Relação privilegiada Portugal-Brasil”, in Estudos da Conjuntura Internacional, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 99, p. 398).
No que toca aos detratores do luso-tropicalismo, nomeadamente porque apologista da miscigenação (e sincretismo), uma das características essenciais do mundo lusófono (do “mundo que o português criou”, segundo Freyre), são significativas estas palavras de José Eduardo Agualusa: “Os portugueses não são outra coisa senão um bom fruto mulato do imperialismo romano, somado ao imperialismo africano, através dos árabes, somado ainda, mais tarde, a todos os encontros resultantes da grande aventura marítima. Um português racista é um português em confusa luta contra si mesmo - é um antiportuguês” (“Gatos que ladram”, “Pública”, in Público). Fala, por experiência própria, que para muitos genuínos neonazis qualquer português é preto e qualquer moreno é cafre. Na época do apartheid, na África do Sul, os boéres apelidavam os portugueses de cafres brancos. Sugestivo também que a palavra “moreno” venha de “mouro”.
Hoje, como se sabe, tem predominância o bloco anglo-saxónico, pese embora, estudos recentes apontem para a perda progressiva desse monopólio. A este propósito Samuel Huntington - cujo conceito de choque de civilizações ganhou notoriedade após os atentados do 11 de Setembro - prevê, no seu novo livro “Who are we?” (Quem somos nós?), uma nova colisão cultural, que terá como resultado a morte do sonho americano nos Estados Unidos pelos imigrantes hispânicos. Baseia o seu prognóstico com a alta taxa de natalidade desses imigrantes, a sua não aceitação dos valores anglo-protestantes e a dificuldade em aprender inglês. Para Huntington, a maior ameaça que hoje pesa sobre a identidade americana é a imigração contínua e massiva proveniente da América Latina, em especial do México.
Daqui se conclui que os Estados Unidos, principal potência mundial, tenderão para uma sociedade multiétnica, o mesmo se indiciando na Europa, dada a imigração (e quebra da natalidade nos países acolhedores), também tida como fonte de criação (atente-se que a população de países europeus, como a França e Alemanha, é cada vez mais, numa percentagem crescente, de origem imigrante, sendo em Portugal cada vez mais miscigenada, ao que não será alheia a imigração das ex-colónias). Tudo a apontar para a miscigenação e o sincretismo em associação com o que defende o luso-tropicalismo, não sendo este um valor despiciendo.
Mesmo entre nós, os luso-tropicalistas permanecem, como o exemplificam estas palavras:
“Sou um luso-tropicalista encartado. (…) Não nego nada da realidade que pareça desmenti-la, nem creio que essa fosse a ideia de Gilberto Freire - como pode um brasileiro negar a favela? Ou as desigualdades do seu tempo? Acolho o luso-tropicalismo como um olhar não só benigno, mas bondoso. Penso que é bom para o futuro e um potencial conformador positivo. (…) Uma cultura que se crê mestiça e valoriza a capacidade de se enriquecer por receber, absorver, integrar é uma cultura boa, não só porque não segrega, mas porque acolhe e cresce. É assim que entendo a maneira de ser portuguesa e a nossa cultura” (José Ribeiro e Castro, “O Público”, 16.07.19).
Ame-se ou deteste-se o luso-tropicalismo permanece e sobrevive em permanência às contingências temporais, com ele sobrevivendo GF à polémica e à não indiferença. Anote-se, por fim, que Freyre sempre ultrapassou a fase de estarmos permanentemente descontentes com aquilo que somos, exemplificando-o com o Brasil e o mundo que o português criou, afirmando-se sempre, no essencial e no geral, pela positiva (o que não significa ausência de espírito crítico), quer em relação a Portugal, ao Brasil e aos demais e atuais lusófonos, o mesmo sucedendo com Agostinho da Silva, cujas ideias (de ambos) permanecem, sobrevivendo e ultrapassando as contingências.
Registe-se ainda que o luso-tropicalismo inspirou a formação da comunidade luso-brasileira, a comunidade luso-afro-brasileira e a atual CPLP, sem esquecer a comunidade lusófona.
27.12.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício