A VIDA DOS LIVROS
De 30 de dezembro de 2019 a 5 de janeiro de 2020
«Ensaios em Persuasão» (Imprensa da Universidade de Lisboa, 2018) de John Maynard Keynes é uma notável coleção de artigos e ensaios publicada em 1931 sobre temas momentosos, onde fica demonstrada a extraordinária capacidade visionária do autor na compreensão da complexidade e das limitações da análise económica no contexto histórico, social e político.
UM LIVRO NOTÁVEL
Em primeiro lugar, cabe prestar homenagem à Imprensa da Universidade de Lisboa, que preenche um espaço importante na divulgação científica e cultural, à semelhança das principais e mais prestigiadas instituições universitárias. E cabe uma referência grata aos órgãos académicos, e em especial a António Feijó, grande entusiasta e animador do projeto. Regressaremos a outras obras, mas hoje atemo-nos a este conjunto de ensaios, que não perderam atualidade, apesar de escritos há quase nove décadas. Lorde Keynes é um caso muito especial. Se não tivesse sido o maior economista do século XX, teria sido um notabilíssimo ensaísta em qualquer dos campos em que se tivesse aventurado, para além das artes e da dança, da filosofia e da história, da matemática ou do cálculo de probabilidades. A sua participação no grupo de Bloomsbury é essencial. Os génios são raros e só podem ser plenamente compreendidos quando a usura do tempo já produziu os seus efeitos. No caso de Keynes essa demonstração está feita. É certo que muitas vezes teve razão antes de tempo, mas na maior parte dos casos fez os avisos certos no momento adequado, sem que os seus contemporâneos o quisessem ou pudessem ouvir. Lembremo-nos dos Tratados de Versalhes ou de Bretton Woods, nesses casos o tempo veio claramente a demonstrar que a sua razão era insofismável. Hoje, ouve-se muitas vezes referência ao “keynesianismo”, no entanto conhecendo a obra do autor, fácil é de perceber que o próprio não se sentiria à vontade a integrar-se num grupo com tal designação. Assim como não criou uma teoria do desenvolvimento, privilegiou sempre uma análise dos fenómenos complexos sem retirar ilações genéricas. Segundo o autor, “a maioria destes ensaios foi escrita (...) num espírito de persuasão, numa tentativa de influenciar a opinião pública, embora muitos deles tenham sido considerados na altura declarações extremas e imprudentes”. Quando os releu encontrou, porém, mais subavaliações do que sobreavaliações em face do que os acontecimentos vieram a demonstrar – e assim a profecia foi mais eficaz que a persuasão.
MAIS DO QUE CASSANDRA…
Keynes compara-se a Cassandra, ainda que o seu objetivo não fosse esse, falando mesmo de uma autocontenção analítica, que apenas teve como efeito atenuar a profecia, mas não fazê-la esquecer. Quando abandonou a mesa das negociações de Versalhes (1919) previu que as imposições dos vencedores da guerra gerariam o colapso económico alemão e uma desesperada e irracional reação totalitária. Escreveu então o célebre “The Economic Consequences of the Peace”, que hoje se lê com um arrepio na espinha, pois aí estão palavras proféticas fundadas numa análise rigorosíssima. O primeiro ensaio do livro de hoje é exatamente sobre esse tema, completando as considerações de 1919 e procurando ainda encontrar uma saída que evitasse a tragédia alemã, que de facto ocorreu. E assim há uma tentativa para evitar a hecatombe: a educação e a imaginação poderiam mudar a opinião. Mas haveria que falar verdade, que desmascarar a ilusão, que dissipar o ódio, pela expansão e educação do coração e do espírito humano. Ao lermos o que o ensaísta nos diz, parece-nos encontrar algo de familiar para os nossos dias: “O método utilizado pelos estadistas modernos é o de dizerem todos os disparates que o público reclama, não praticando mais do que aquilo que é compatível com o que disseram, e confiando que os disparates assim postos em prática se revelarão em breve por aquilo que são, criando desta forma uma oportunidade de retorno á sensatez – uma espécie de método Montessori aplicado à criança que é o público. Aquele que contrariar esta criança terá rapidamente de dar lugar a novos tutores”. Mas ninguém quis ouvir. No presente volume temos intervenções sobre a inflação e a deflação (1919-31), sobre o regresso do padrão-ouro, além de textos sobre a Rússia e o Futuro. Aqui exprime “a profunda convicção de que o problema económico, como lhe podemos abreviadamente chamar, o problema da privação e da pobreza, e a luta económica entre classes e nações, não é senão uma terrível confusão transitória e desnecessária. Porque o mundo ocidental dispõe já dos recursos e da técnica (conseguíssemos nós criar a organização certa para os utilizar) capazes de reduzir a uma posição secundária o problema económico que agora absorve as nossas energias morais e materiais”.
PARA ALÉM DA ECONOMIA
E o homem de cultura acredita que é possível criar condições para cuidar do essencial: “os problemas da vida e das relações humanas, da criação, do comportamento e da religião”. Afinal, mais do que as questões materiais, importaria considerar a economia como realidade humana e instrumental. Além da crítica aos banqueiros sobre inflação e deflação (“estão tão habituados a que a sua posição não seja questionada que nem os próprios a questionam – até ser demasiado tarde”), temos o notável texto sobre o Padrão-ouro, que pode ser lido nos nossos dias, a pensar no “Brexit”. Eu sei que as questões são bem diferentes, mas há pontos de contacto, que têm a ver com o saudosismo imperial. O regresso do padrão ouro teve consequências dramáticas, que Keynes escalpeliza. Em nome das vantagens para o comércio e a indústria britânicos havia que acabar com os esforços para manter artificialmente a moeda acima do seu valor real mercê da referência ouro. As medidas adequadas não seriam aduaneiras, mas a libertação da moeda de um jugo artificial. O resultado de um câmbio elevado incentivava as importações e desincentivava as exportações, virando contra a Inglaterra o saldo da balança comercial. É o “common sense” baseado na ciência. E leia-se, com especial atenção o texto “Possibilidades Económicas para os nossos netos” (1930). “O ritmo a que poderemos alcançar este destino de felicidade económica será definido por quatro elementos: a nossa capacidade de controlar a população; a nossa resolução de evitar guerras e conflitos internos, a nossa disponibilidade para confiar à ciência a orientação das questões que são do domínio da ciência, e a taxa de acumulação fixada entre a produção e o consumo. Destes quatro elementos, o último cuidará de si mesmo, se os três primeiros forem cumpridos”. Após estes ensaios, sairia “The General Theory of Employment, Interest and Money” (1936), que criou a econometria e demonstrou que os governos podem gerir e prevenir depressões económicas. O génio compreendia a economia como cultura.
Guilherme d'Oliveira Martins
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