Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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36. A EXIGUIDADE DAS COISAS MUNDANAS DIANTE DA ETERNIDADE
No Convento da Madre de Deus, em Lisboa, numa tumba rasa de despercebida e desnuda pedra, num local de passagem, para que todos a pisem, jaz D. Leonor de Avis, rainha de Portugal, mulher de D. João II.
Comove e surpreende este gesto de humildade, despojamento e simplicidade.
Sempre me impressionou e sensibilizou como passeante e visitante daquele espaço.
O que memorizo quando confrontado mentalmente com a vida e legado de quem ali foi sepultada, por vontade própria, naquelas condições.
Lembrando às gerações vindouras que por ali passam que é efémero e fugaz o poder e a vaidade humana, diante da eternidade.
Figura marcante e sempre atual da nossa história, como criadora, impulsionadora e executora de uma instituição que se universalizou, perdura e prospera na Europa, África, Ásia e Américas, desde o Brasil a Macau, há centenas de anos, via Santa Casa da Misericórdia.
Os deveres desta irmandade da caridade eram descritos, à data, como sendo sete obras espirituais e corporais, sendo célebres e populares, até hoje, as últimas:
1. Dar de comer a quem tem fome; 2. Dar de beber a quem tem sede; 3. Vestir os nus; 4. Visitar os doentes e presos; 5. Dar abrigo a todos os viajantes; 6. Resgatar os cativos; 7. Enterrar os mortos.
Porque somos todos mortais, cada um carente à sua maneira, e todos iguais na nossa pequenez e exiguidade diante da eternidade.
António Alçada Baptista: um olhar para a frente e para trás, todos unos e porque o que late é latente, está no muito fundo esta saudade.
António Alçada, António Alfredo da Fonseca Alçada Tavares Baptista faria um outro aniversário ontem, dia 29 de janeiro. Será sempre um privilégio lembrá-lo.
E falávamos também tanto, do reter e do libertar, do devolver à terra e ao céu o que lhes pertence, falávamos dos lugares dos fragmentos e da-nesga-porta-do-meio, que nos escapa tantas vezes, e afinal por onde quase tudo se vê. Sobretudo o amor e a gentileza.
Tentávamos, afinal, por palavras, em diversos campos de tensão, serenar naquele equilíbrio do pólo-a-pólo, que lhes desse uma instância de totalidade, e ali sossegassem as palavras dos pensamentos; e ali sossegássemos longe, bem longe da intranquilidade.
As secretárias do António Alçada eram um mundo aparentemente de caos de papéis e livros e lugar de algumas fotografias. Nessas secretárias, as letras nos papéis rabiscadas por ele, eram todas livros por escrever, assim o senti sempre, num reflexo de muitos reflexos do Autor.
Estão para aí uns livros, estão sim senhora, dizia num sorriso de ternura olhando para os papéis, um dia escrevo-os de rajada. Mentira! Não sei se terei tempo. De resto ando numa fase em que os acontecimentos aborrecem-me, “Les événements m’ennuient”- como dizia o Valéry.
António era também Autor testemunha, desde o palimpsesto ao livro. Ele escrevia num silêncio escutado lá do torreão do exprimir do Escritor e duvidava da mão que escrevia, se acaso se alheava por tempo demais, olhando o rio.
Os recessos, os recantos, recuam-me. Sei que também é assim a natureza do envelhecer e olha que estranho!, não me perturba acontecer-me isto.
Para mim o António foi um horizonte, foi um defronte. Desconhecerei sempre se a sua terna tolerância foi demasiado indulgente às minhas perguntas e aos meus silêncios.
Sei que num 29 de janeiro o ajudei numa limpeza de prateleiras. Os livros voavam e o António dizia-me, a rir como um miúdo
Estou no episódio! Estou no episódio!
Enfim, porque o que late é latente, está no muito fundo esta saudade do António Alçada.
1. Julgo que nunca no Vaticano a Cúria tinha ouvido tais denúncias como as que tem ouvido da parte do Papa Francisco. Que “a corte é a peste do Papado”, que sofre de doenças terríveis como “sentir-se imortal, indispensável”, “uma Cúria que não se autocritica, que não procura melhorar é um corpo doente”, “a fossilização mental e espiritual”, “Alzheimer espiritual”, “a rivalidade e a vanglória”, a doença da “esquizofrenia existencial”, que é a de “quem vive uma vida dupla”, a doença dos “rumores, mexericos, murmurações, má língua”, que pode levar ao “homicídio a sangue frio”, a doença de “divinizar os chefes”...
Estas foram as críticas elencadas logo na saudação natalícia de 2014. Têm-se sucedido ao longo dos anos. Neste Natal, Francisco avisou de modo frontal: “Hoje não somos os únicos que produzem cultura, nem os primeiros, nem os mais escutados”. Mais: “Já não estamos num regime de cristianismo, porque a fé, especialmente na Europa, mas inclusivamente em grande parte do Ocidente, já não constitui um pressuposto óbvio, e ela até é frequentemente negada, gozada, marginalizada e ridicularizada.” Por isso, concluiu, citando o cardeal Carlo Martini, outro jesuíta, que foi arcebispo de Milão: “A Igreja anda com duzentos anos de atraso. Porque não se mexe? Temos medo. Medo em vez de coragem? No entanto, o cimento da Igreja é a fé, a confiança, a coragem... Só o amor vence o cansaço.”
2. Mas a Cúria não está na disposição de mudar, tudo indica. A última bomba-escândalo girou e gira à volta de um livro do Cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino e para a Disciplina dos Sacramentos, nascido na Guiné Conacri há 72 anos, que tentou associar como co-autor da obra o Papa emérito. Tem como título, no original francês, Des profondeurs de nos coeurs (Do fundo dos nossos corações), e na capa aparecem Bento XVI e o cardeal Robert Sarah como co-autores.
Diga-se, logo de entrada, que Bento XVI já não existe como Papa e veremos que também não há justificação nenhuma para se chamar Papa emérito. Pode, pois, compreender-se o imbróglio causado por esta publicação enganosa. Não é de modo nenhum vontade minha entrar aqui na descrição da confusão causada por este verdadeiro folhetim de péssimo gosto e com toques de ridículo, que envolveu avanços e recuos, afirmações e desmentidos, e que apenas tem por efeito causar ainda maior descredibilização da Igreja. O que parece claro é que, a pouca distância temporal da publicação da Exortação prometida pelo Papa Francisco após o Sínodo de Março passado sobre a Amazónia, que terá em atenção as conclusões por quase unanimidade da vontade sinodal de que o Papa autorize a ordenação de homens casados e que dê o devido lugar à mulher na Igreja, se quis influenciar negativamente Francisco para que trave o que o Sínodo claramente propôs. Aliás, desse modo, travar-se-ia também o caminho sinodal da Igreja Alemã, que vai no mesmo sentido.
Para terminar com a confusão, o secretário particular do Papa emérito, arcebispo Georg Gänswein, veio afirmar no passado dia 14 que este “não tinha aprovado nenhum projecto para um livro com dupla assinatura”, Bento XVI “não escreveu o livro a quatro mãos com o cardeal Sarah”.
3. O que é claro é que o objectivo do livro é opor-se tenazmente à ordenação de homens casados.
Não há dúvida de que Bento XVI se opõe a esta ordenação. Para ele, segundo os textos que continuam no livro de Sarah, há para o padre uma impossibilidade de um vínculo matrimonial, atendendo concretamente à celebração quotidiana da Eucaristia.
No entanto, Ratzinger nem sempre pensou assim, é bom lembrar. Em 1970, o então professor de Teologia escreveu um pequeno livro, Fé e futuro, resultado de uma série de palestras radiofónicas sobre como seria a Igreja do ano 2000, no qual se lê: “Certamente conhecerá também novas formas ministeriais e ordenará como sacerdotes cristãos provados, experimentados, que continuarão a exercer a sua profissão. Em muitas comunidades mais pequenas e em grupos sociais homogéneos, a pastoral será normalmente exercida deste modo. Juntamente com estas formas, continuará a ser indispensável o sacerdote dedicado plenamente ao exercício do ministério como até agora.”
O texto fatal é do cardeal Sarah: “Há um laço ontológico-sacramental entre o sacerdócio e o celibato. Qualquer enfraquecimento desse vínculo levaria a pôr em causa o magistério do concílio e dos Papas Paulo, João Paulo II e Bento XVI. Peço humildemente ao Papa Francisco que nos proteja definitivamente de tal possibilidade, vetando qualquer enfraquecimento da lei do celibato sacerdotal, mesmo limitado a uma ou outra região.”
Este é que é, no meu entender, o ponto essencial da tomada de posição do livro em defesa do celibato sacerdotal. Ora, esta afirmação é inadmissível, até do ponto de vista histórico: não é sabido que havia apóstolos casados, incluindo São Pedro? Não foi apenas no segundo milénio do cristianismo que se foi impondo a lei do celibato obrigatório? Mas, mesmo neste enquadramento, a lei não se estendeu à Igreja católica oriental, onde há padres casados, e Bento XVI decretou que os padres anglicanos que entrassem na Igreja católica continuariam com a sua família. A actual norma do celibato obrigatório não provém de Jesus, que não a impôs aos Apóstolos. São Paulo, estou a citar o teólogo José M. Castillo, afirmou que ele como os outros apóstolos tinham o direito de ir acompanhados por uma mulher cristã, lê-se na Primeira Carta aos Coríntios, e, nas Cartas a Timóteo e a Tito, diz-se que os candidatos aos ministérios eclesiais, incluindo o episcopado, devem ser homens casados com uma mulher, que saibam governar a família, porque “quem não sabe governar a sua própria casa, como vai cuidar da Igreja de Deus?”. Além disso, é sabido que no concílio ecuménico de Niceia, o bispo Pafnúcio, celibatário e venerado confessor da fé, gritou perante a assembleia conciliar “que não se devia impor aos homens consagrados esse jugo pesado, dizendo que é também digno de honra o acto matrimonial e imaculado o próprio casamento; e que não danificassem a Igreja exagerando a severidade.”
Onde se quer então fundamentar esse “vínculo ontológico-sacramental entre o sacerdócio e o celibato”? Ele não existe pura e simplesmente. É falsa a ideia de que através da ordenação o padre entraria e ficaria num grau superior de ser em relação aos outros fiéis, como é falsa, consequentemente, a ideia de que o fim do celibato retiraria ao padre esse lugar especial sagrado, que realmente não tem. De facto, o sacerdócio ministerial é apenas um serviço ao único sacerdócio real que é o de todos os baptizados: o padre ou o bispo não são mais cristãos do que os outros cristãos, têm apenas uma função de serviço diferente, e na Igreja há variedade de serviços.
Ainda há-de aparecer quem me mostre onde é que no Novo Testamento Jesus ordenou alguém “in sacris”. Mas foi e é este pseudo-carácter sagrado especial do padre e do bispo que esteve e está na base dessa calamidade que o Papa Francisco não se cansa de denunciar: o clericalismo, que reivindica duas classes na Igreja: o clero e o leigo, com estatuto ontológico e não meramente funcional diferente.
4. Estou convencido de que, desta vez, Ratzinger acabou por ser utilizado e até manipulado. Ninguém sabe até que ponto. De qualquer forma, todo este episódio vem chamar a atenção para o estatuto do que indevidamente se chama “Papa emérito”. De facto, nada justifica esse título. Pelo contrário. Significativamente, Francisco nunca se chamou a si mesmo Papa, mas simplesmente bispo de Roma. O Papa não é senão o bispo de Roma, e ao bispo de Roma está vinculada a missão da unidade da fé. Assim, Ratzinger é tão-só bispo emérito de Roma, mas não Papa emérito e, consequentemente, não deveria utilizar as vestimentas pontifícias, que só criam a confusão de se pensar que há dois Papas. Até o cardeal Gerhard Müller, um dos representantes da ala mais conservadora da Cúria, veio lembrar: “Que não haja confusões! Não temos dois Papas, existe apenas um, Francisco. Diz-se Papa emérito por cortesia, mas na realidade Bento XVI é bispo emérito”.
5. Já este texto estava terminado, quando se soube que tudo indica que o Papa publicará ainda esta semana a Exortação pós-Sínodo sobre a Amazónia.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 26 JAN 2020
Não podemos ser todos Sócrates, pensou David E. Kelley, o produtor de “Big Little Lies”, pequena mini-série ovo, com clara televisiva e gema cinematográfica protegidas por robusta casquinha social. Não vi melhor este ano.
Sócrates, o da Apologia, recusava falar do que falavam os grandes homens do seu tempo. Pedia-lhes que cuidassem da alma. Imagino-o na ágora, a desviar conversas, a encafifar interlocutores com perguntas risíveis, quando eles queriam falar sobre os grandes temas. Com licença de Eça, naquele tempo havia já Acácios e Pachecos.
Ah, os grandes temas! Os grandes temas são a selva amazónica da nossa ágora, o seu ponto de exclamação. Os grandes homens e mulheres deste tempo peroram sobre os grandes temas. Respeitemos-lhes a grandeza e sejamos de uma homérica injustiça: a ágora, jornais, revistas, rádios e televisão estão sobrepovoados de Acácios e Pachecos. Os próprios grandes temas já são acacianos e pachequianos. O nosso tempo não é socrático, o que algum Sócrates contemporâneo poderá nostalgicamente atestar. Sócrates era o não-especialista: prezava a sua ignorância. Com ironia, digamos. Fazia perguntas a Acácios e Pachecos, mas não os admirava. Hoje, Acácios e Pachecos vingam-se: da boca de nenhum se ouvirá um socrático “como nada sei, estou certo de não saber”.
David E. Kelley sabe que ninguém, neste tempo, pode ser um Sócrates. Fez “Big Little Lies” e enche de pequenas mentiras, em vez de grandes verdades, os sete episódios dessa mini-série casquinha de ovo. Acácios e Pachecos desunhar-se-iam a falar de bullying escolar, de violência doméstica, de controlo parental. Com quatro mulherzinhas troianas, Kelley arranca a vida da selva amazónica, que são os grandes temas, e mostra-a numa mistura de riso suave e doçura intensa. É a grande esmola que a mão direita de “Big Little Lies” nos dá para esconder as grandes tragédias que a mão esquerda camufla.
Bem sei que vi tudo, copo de Quinta São Sebastião Colheita 2014 na mão, como se deve ver televisão mas vi e ouvi a alma de Reese Witherspoon, Nicole Kidman, Laura Dern, Shailene Woodley e dos homens delas. E, com ecos de édipos, eléctras e traquínias (com perdão dos gregos), entraram-me em casa o amor e a violação, os filhos e a escola, o sexo e o híper-sexo, as inomináveis boas intenções. O cenário é um cheiro a mar.
"Património Cultural – Realidade Viva" (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020) será lançado no dia 30 de janeiro no Centro Nacional de Cultura, com a presença do arqueólogo Luís Raposo, presidente do ICOM-Europa e do jornalista Henrique Monteiro – além do autor Guilherme d’Oliveira Martins. Apresentamos hoje um excerto da obra.
«Definido ao longo do tempo pela ação humana, o património cultural, longe de se submeter a uma visão estática e imutável, tem de ser considerado como um “conjunto de recursos herdados do passado”, testemunha e expressão de valores, crenças, saberes e tradições em contínua evolução e mudança. O tempo, a história e a sociedade estão em contacto permanente. Nada pode ser compreendido e valorizado sem esse diálogo extremamente rico. Usando a expressão de Rabelais, estamos sempre perante “pedras vivas”, já que as “pedras mortas” dão testemunho das primeiras. O património surge, nesta lógica, como um primeiro recurso de compromisso democrático em prol da dignidade da pessoa humana, da diversidade cultural e do desenvolvimento durável. E constitui um capital cultural resultante do engenho e do trabalho de mulheres e homens, tornando-se fator de desenvolvimento e incentivo à criatividade. Quando falamos de respeito mútuo entre culturas e das diversas expressões da criatividade e da tradição estamos a considerar o valor que a sociedade atribui ao seu património cultural e histórico ou à sua memória como fator fundamental para evitar e prevenir o “choque de civilizações”, mas, mais do que isso, para criar bases sólidas de entreajuda e de entendimento. Impõe-se, deste modo, o reconhecimento mútuo do património inerente às diversas tradições culturais que coexistem no continente e uma responsabilidade moral partilhada na transmissão do património às futuras gerações. E não esqueçamos o contributo do património cultural para a sociedade e o desenvolvimento humano, no sentido de incentivar o diálogo intercultural, o respeito mútuo e a paz, a melhoria da qualidade de vida e a adoção de critérios de uso durável dos recursos culturais do território. Daí a importância da “cooperação responsável” na sociedade contemporânea, através da ação conjugada dos poderes públicos, do mundo da economia e da solidariedade voluntária. Perante a exigência do reconhecimento mútuo do património inerente às diversas tradições culturais que coexistem e de uma responsabilidade moral partilhada na transmissão do património às futuras gerações, realizamos um exercício prático, onde, a propósito da herança cultural e da salvaguarda de marcos de memória, descobrimos a importância do diálogo entre valores e factos, entre ideais e interesses, entre autonomia e heteronomia. O certo é que os valores quando reconhecidos socialmente adquirem um carácter de permanência, tornam-se expressão da memória e do movimento, da tradição e da criação e aliam-se às constantes e invariáveis axiológicas numa relação complexa em que o património e a herança culturais se tornam fatores de liberdade, de responsabilidade, de emancipação, de respeito mútuo e de afirmação da dignidade humana. Uma obra de arte, uma catedral ou uma choupana tradicional, um conto popular, as danças e os cantares, a língua e os dialetos, as obras dos artesãos, a culinária ancestral – eis-nos perante expressões de valores que põem em contacto a História e a existência individual, a razão e a emoção, que constituem a matéria-prima de uma cultura de paz.
Há ainda exemplos que nos são dados pela natureza e que constituem motivo sério de reflexão sobre as noções de património e de memória. As borboletas-monarca são alvo de atenções especiais dos cientistas, em virtude das misteriosas migrações que protagonizam de muitos milhares de quilómetros e há milhões de anos, no Atlântico e no Pacífico, especialmente nas Américas. Tendo uma vida curta, de 2 a 7 meses, esse tempo não permite a estas borboletas realizarem mais do que uma viagem em vida e num só sentido – demonstrando que a memória genética pode ser mais importante do que a aprendizagem. Um segundo exemplo tem a ver com as nossas observações do firmamento. Verificamos que muitos dos corpos celestes que ainda vislumbramos, há muito que estão extintos e no entanto ainda parecem ser nossos contemporâneos, em virtude da «lentidão» da velocidade da luz. Vemo-los, mas já não existem… O terceiro caso relaciona-se com os belos jacarandás que temos em Portugal e que têm uma fugaz floração, quase impercetível no outono europeu, uma vez que prevalece a lembrança genética da primavera brasileira. Afinal, as árvores têm memória. As três referências levam-nos a dar uma especial atenção às nossas responsabilidades ligadas ao tempo e ao que dele recebemos. No fundo, temos o dever de estar atentos ao valor dinâmico do que recebemos e do que legamos – seja memória genética, seja perceção virtual do passado, seja reminiscência histórica… Quando falamos de património cultural é de atualização criadora que cuidamos – pelo que não é apenas o passado que importa, mas sim uma responsabilidade presente que renova e atualiza a fidelidade à herança recebida. Quantas épocas diferentes, quantos estilos, quantas intervenções compõem o mosteiro dos Jerónimos? O mesmo se diga das grandes catedrais europeias, que foram sendo construídas em diversos momentos e em camadas arqueológicas e arquitetónicas múltiplas. Na catedral de Salamanca, entre os elementos decorativos foi acrescentada no século XX a representação de um pequeno astronauta, que não choca quem o descobre e que apenas demonstra que a História não se detém. Também no património imaterial, assistimos a atualizações, desde a gastronomia aos hábitos e costumes, não esquecendo a língua…
Para entender a memória e o património cultural invoquemos ainda uma afirmação que é muito citada, mas mal compreendida… Fernando Pessoa através do semi-heterónimo Bernardo Soares fala-nos da língua como pátria. A frase é normalmente citada fora do contexto, como tantas outras. Mas quando se lê o texto onde ela se insere notamos, normalmente, um sentimento contraditório. Em primeiro lugar, temos uma surpresa, uma vez que se julga que a afirmação é heroica. No entanto, o autor não lhe dá essa natureza. Depois, quando se lê melhor, compreende-se que há um patriotismo aberto e desdramatizado, não territorial, não patrimonial, mas espiritual, eminentemente cultural. Anglo-saxonicamente, Soares dá força à palavra. É o domínio da língua, das palavras e do respeito mútuo que está em causa. Afinal, dizer bem a língua e as suas palavras é um ato elementar de dignidade, de cidadania e de sede de compreensão e de sentido.
«Não tenho sentimento nenhum político ou social (diz o “Livro do Desassossego”). Tenho, porém num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em quem se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa, vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha». Pátria – língua! «Procuras Portugal e andas com ele / nos mil destinos do teu destino. / Doí-te na pele. / Babilónia Sião Paris Babel. / Meu povo peregrino» — diz Manuel Alegre. A identidade enquanto identidade aberta começa, no fundo, nesse peregrinar e na hospitalidade de receber muitos povos e pessoas neste pedaço de terra à beira-mar plantado. Somos, mesmo na língua, e sobretudo nela, um cadinho, um melting-pot: iberos, celtas, fenícios, gregos, romanos, visigodos, suevos, alanos, vândalos, árabes… E na base há a herança indo-europeia e o sânscrito. De cada um ficaram marcas, palavras e sinais.
O Atlântico e o Mediterrâneo cruzam-se neste ocidente peninsular — a cordilheira central e a nossa Beira-Serra dividem as influências... E o romance galaico-português, paredes-meias com a língua asturo‑leonesa (que permanece no mirandês), consolidou a nossa identidade pela palavra. Língua, fronteira, povo — fizemo-nos portugueses ou “portugaleses”, com quase nove séculos de autonomia. A história fez a língua que é a herança viva com que podemos contar. E o romance galaico-português tornou-se profeticamente, com o provençal, a língua própria do género poético — cantigas de amor, cantigas de amigo, escárnio e maldizer. Afonso X, o Sábio, cultivou a língua dos trovadores (do trovar da língua d’Oc) e D. Dinis, seu neto, pôde dizer: «Se sabedes novas do meu amigo / ay deus e hu e». E não o ouvimos também dizer: «Quer´eu en maneira de provençal / fazer agora um cantar d’amor»? Ao ouvirmos, dos confins do tempo, a nossa língua podemos entender que o velho português se construiu pelo cuidado da palavra e das palavras. Como afirmou António Ferreira: «Floresça, fale, cante, ouça-se e viva / a portuguesa língua, e, lá onde for, / Senhora vá de si, soberba e altiva.». E podemos ainda ouvir mestre Gil, na transição dos temas medievais para os modernos: «Ó, famoso Portugal, conhece teu bem profundo».
Mesmo na ironia, a palavra ressalta alegre e viva, versátil e risonha em Camões — «Perdigão que o pensamento / subiu ao alto lugar, / perde a pena do voar, / ganha a pena do tormento. / Não tem no ar nem no vento / asas com que se sustenha: / não há mal que não lhe venha». Isto em contraste, mas complemento, em “Os Lusíadas”, com: «Ficava-nos também na amada terra / o coração, que as mágoas lá deixavam»… A língua pátria, a língua materna construíram-se e constroem-se de vida, ora erudita ora simples, ora sagrada, ora profana, ora amorosa, ora picaresca. E não se diga que o património é constituído pelos marcos de pedra ou pelos grandes monumentos da arquitetura — o património cultural é constituído por pedras mortas e por pedras vivas, por monumentos e tradições, o património imaterial, mas também pela natureza, pela paisagem e pela criação contemporânea, pelo valor acrescentado que adicionamos ao que recebemos das gerações que nos antecederam. A identidade exige a compreensão da memória, da vivência, da recepção e da entrega, do receber e do dar. Uma identidade viva tem de ser disponível, aberta, rigorosa e apta a receber e a dar».
Não tenho prestado muita atenção ao reacender da polémica acerca do chamado celibato sacerdotal, certamente por já me ter cansado tanta discussão em quarto fechado (huis clos? conclave?) sobre uma questão que alguns teimam em referir, quer essencialmente, quer sistematicamente, a um estatuto especial, para não dizer sobrenatural, dos presbíteros e epíscopos - que, afinal são só ministros ou servidores da Igreja ou assembleias de cristãos - de forma a que não seja colocada, nem debatida no seu contexto próprio que é o da preocupação e providência pastoral.
Aliás, um número crescente de teólogos, como já te disse, vai descobrindo ou apenas recordando que, no cristianismo, o único sacerdote é Jesus Cristo, sendo a função sacerdotal propriamente dita atribuída ao povo dos batizados, mormente na celebração da memória de Cristo pela comunhão eucarística. E os exegetas neotestamentários reconhecem que, nos próprios textos bíblicos canónicos, a designação de sacerdote não se aplica aos ministros dos sacramentos e do culto, mas apenas ao conjunto dos batizados. Assim, os textos testemunhais das comunidades da Igreja nascente - que não foi institucionalmente fundada por Jesus, mas vai medrando pela profissão e celebração da memória de Cristo -, Atos e Epístolas, dão fé de que os ministros (diáconos, presbíteros e bispos) são eleitos pelas próprias assembleias, nunca são chamados sacerdotes e são, muitas vezes, casados. Já te citei, em carta passada, o retrato ideal que São Paulo taça do bispo, em carta a Timóteo, antes ainda de se estabelecer a distinção entre epíscopo e presbítero, e com exigências muito próximas das pedidas aos diáconos:
Confiável é o ditado: «Quem aspira ao episcopado, deseja um excelente ofício.» É preciso que o bispo seja irrepreensível, homem de uma só mulher, sóbrio, pudico, respeitável, hospitaleiro, didático, que não seja bêbado nem espancador, mas gentil, não violento, nem seja amante do dinheiro; que governe bem a própria casa, mantendo os filhos em submissão, com toda a dignidade: pois se alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará da assembleia de Deus? (1ª a Timóteo, 3, 1-5, tradução de Frederico Lourenço)
Este, noutros passos, como mais trechos do Novo Testamento, também fazem alusão a mulheres, sem qualquer intenção ostracista, nem sequer exclusivista, o que, nesta minha carta escrita na conjuntura de uma certa polémica, me recorda um passo curioso da já tão sabida argumentação de Joseph Ratzinger no texto que é apresentado como seu - pior : como de Bento XVI, quando sabemos que a Igreja Católica tem só um papa, e a figura de papa emérito não tem sentido algum - incluído no livro publicado por ou com o cardeal Sarah. Deixo a palavra a Jean-Pierre Denis, diretor do semanário católico francês La Vie, que não será propriamente meu companheiro de pensamento sobre todas as questões:
Leia-se então o famoso artigo. Nele encontramos a precisão do pensamento, a força da argumentação e a limpidez da escrita que foram timbre dos artigos do professor Ratzinger para a revista Communio. Ler esse texto é ter um momento de leitura feliz. É breve - umas quarenta páginas, depois de deduzidas longas auto citações, como se a oficina do pintor tivesse sustentado a mão do mestre. Mas não há dúvidas quanto ao fundo, cem por cento ratzingueriano.
O papa emérito defende o celibato dos padres sublinhando a articulação entre o Antigo e o Novo Testamento. O culto católico é simultaneamente crítica e ultrapassagem em Jesus do culto do Templo. De facto, em muitas religiões, o exercício do culto está ligado à abstinências sexual. Mas esta é funcional, e apenas dura para o exercício do culto. Ora, para o padre católico, o compromisso é total, simultaneamente permanente e definitivo. De funcional, a abstinência passa a ontológica. Ratzinger acompanha a sua reflexão exegética com recordações da sua mocidade. A sua vocação foi um dom total. Não podemos deixar de nos comover com tal cultura e tal testemunho!
Evitando fazer ataques ad hominem, não posso deixar de observar que qualquer vivência pessoal pode ser apresentada como exemplo a seguir, ou mesmo proposta ou incentivo a comportamentos semelhantes. Mas não me parece que sirva para definição nem, menos ainda, imposição de regras obrigatórias de conduta, como qualquer norma de direito positivo, mesmo canónico. No caso das condições exigíveis para o exercício de ministérios religiosos de comunidades cristãs, aliás, os próprios textos paulinos as enunciam, sem que elas sequer incluam a vocação à castidade total, a tal que, aliás, São Paulo todavia enaltece noutros passos das suas cartas, sem todavia deixar de prevenir - nota bem, Princesa de mim - que será preferível o casamento à prática de atos sexuais ilícitos. Tudo isso, afinal, deve ser objeto de bom senso, de prudência (o tal amor sagaz que sempre refiro), e de uma ação pastoral atenta e amiga dos fiéis e suas assembleias.
O celibato eclesiástico, por outro lado, apenas começou a ser obrigatório com a reforma gregoriana do século XI e, definitivamente, com o Concílio de Trento, no XVI, durante o qual o nosso São Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga e padre conciliar respeitado, defendeu, lembrado dos seus padres isolados nas serranias do Barroso, que não se impusesse tal obrigação. Até lá, só as várias vocações eremíticas e as regras das ordens religiosas abraçavam tal mandato, como parte de um projeto voluntário de vida chamada consagrada. E entre esses "consagrados" e "consagradas", a maioria não recebia, ordens de habilitação para o exercício de ministérios sacramentais e cultuais, confiado aos clérigos, sobretudo ao clero dito secular (por viver no mundo, entre as gentes). A título de mais uma curiosidade, lembro-te aqui algo que te contei em cara antiga: a prática da confissão auricular foi, durante muito tempo, exercida apenas por monges (inicialmente, creio, por monges russos e, na Igreja do Ocidente, depois, por irlandeses), nem sempre ordenados. Eram ouvintes de confissões e medianeiros do perdão divino, não por possuírem ordens sacras, mas por serem considerados homens santos.
Muitos institutos e normas da vida da Igreja são fruto de circunstâncias históricas e culturais, resultantes, assim, não só de interpretações dos textos bíblicos de sua referência, mas de leituras diversas dos sinais dos tempos. Ao recordar estas contingências, estou evidentemente a manifestar algum espanto por ver, em pleno século XXI, uma argumentação sustentada por máxima misoginia primitiva, pela ideia de que a mulher (em razão da sua menstruação) e o ato sexual (esse, sim, ontologicamente cocriador) são poluidores da pureza exigida pelo culto divino... Tampouco entendo como, falando de sacerdócio e articulação do Antigo e Novo Testamentos, qualquer teólogo possa sobretudo ignorar, ou mal interpretar, este texto da Epístola aos Hebreus (10, 9-25), que transcrevo na tradução portuguesa - diretamente do grego - de Frederico Lourenço:
Então disse: Eis que venho para fazer a tua vontade.
Suprime assim o primeiro culto para Ele instaurar o segundo. Vontade essa na qual fomos santificados, através da oferta do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez para sempre.
E todo o sacerdote se apresenta cada dia para oferecer o culto, oferecendo amiúde os mesmos sacrifícios, que nunca conseguem apagar os pecados. Porém este, depois de oferecer pelos pecados um único sacrifício, sentou-se para sempre à direita de Deus, doravante aguardando que os seus inimigos sejam colocados como estrado dos seus pés.
Pois com uma só oferta Ele tornou para sempre perfeitos os santificados. Testemunha-nos isto também o espírito santo. Após ter dito:
Esta é a aliança que estabelecerei com eles, Depois daqueles dias, diz o Senhor: «Dando as minhas leis aos seus corações, Na mente deles eu as gravarei. E dos pecados deles e das suas iniquidades, não mais Me recordarei.»
Onde existe perdão destes, já não existe oferenda pelo pecado.
Por conseguinte, irmãos, tendo nós liberdade para a entrada no santuário no sangue de Jesus, por um novo e vivo caminho que Ele nos dedicou através do véu que é a sua carne; e tendo um sumo sacerdote à frente da casa de Deus, aproximemo-nos dele com um coração verdadeiro em plena segurança de fé, com os corações limpos de qualquer mancha de uma má consciência e o corpo lavado com água pura.
Mantenhamos sem vacilar a profissão da esperança, pois fiel é Quem fez a promessa; e demos atenção uns aos outros com vista ao paroxismo de amor e boas obras, sem abandonarmos a reunião uns com os outros (como é costume de alguns), mas encorajando-nos.
Trago-te, Princesa de mim, esta longa citação, por ser consoladora lição da novidade do ensinamento de Jesus, da Boa Nova! E, para nos ajudar a interpretar melhor a referida "articulação do Antigo e Novo Testamento" podemos ler outro trecho da mesma Epístola aos Hebreus que, como o comentário do próprio Ratzinger deixa suspeitar, tem sido, de forma abusiva, utilizado para a configuração da figura ideal e regulamentar do padre católico pelo modelo de Jesus. Remeto para a ideia expressa pelo ex-Papa de que se, noutras religiões, a abstinência sexual se impõe no período de exercício do culto, tal obrigação é apenas conjuntural, enquanto a do padre católico é um compromisso total e definitivo. Estará, talvez, aí um pecado original do clericalismo, inicialmente gerado pela preocupação em morigerar certos hábitos do clero, mas logo caindo na tentação de fazer de um exemplo de vida cristã uma norma geral que, significativamente, não só moralizasse clérigos, como lhes oferecesse um estatuto de exceção de entre os batizados. (Aliás, foi percetível a obsessão com a hagiografia eremítica e monacal). Mas, na verdade, parece-me que a tal articulação dos Testamentos - ou a sua diferenciação - resulta mais clara duma nova leitura de trechos do capítulo 8 da Carta aos Hebreus, donde depreendemos a orientação e afirmação cristocêntrica que nos conduz ao reconhecimento do próprio Cristo como único sacerdote, não só relativamente aos levíticos do judaísmo, que substitui, mas por ser o único a ser simultaneamente oficiante e vítima do sacrifício redentor. Assim, sacerdote e sacrifício são, estes sim, ontologicamente o mesmo, e a consequente posterior celebração da Eucaristia (que quer dizer ação de graças) mais não sendo que memória efetiva disso mesmo pelas igrejas, isto é, pelas assembleias de batizados e seus ministros. Traduzo eu, da versão francesa da Bíblia de Jerusalém (edição de bolso, que trago muitas vezes comigo), um trecho de Hebreus, 8, 1-5:
O ponto capital das nossas afirmações é que temos um sumo sacerdote sentado à direita do trono da Majestade nos céus, ministro do santuário e da Tenda, da verdadeira, daquela que o Senhor, e nenhum homem levantou. Qualquer sumo sacerdote, com efeito, foi constituído para oferecer dons e sacrifícios; donde a sua necessidade de ter algo para oferecer. Na verdade, se Jesus estivesse na terra, nem sequer seria sacerdote, pois os há a oferecer dons em conformidade com a lei; esses oferecem o serviço de uma cópia e de uma sombra das realidades celestes...
A imprensa divulgou o programa comemorativo dos oitenta e oito anos do Teatro e Cinema Rivoli do Porto. Já tivemos ocasião de aqui referir por mais de uma vez a atividade desta notável sala de espetáculos, que, como diversos cinemas e teatros que sobreviveram em atividade, alternam a produção de espetáculos, ao longo dos tempos.
No livro “Teatros de Portugal” (ed. INAPA – 2005) fazemos referência a esta sala de espetáculos, desse sempre assinalável também no ponto de visita histórico e arquitetónico.
Tal como então escrevemos, o Rivoli teve a antecedê-lo, no mesmo local, um então designado Teatro Nacional, que foi inaugurado em 1913 com uma opereta denominada “O 31”, da autoria dos compositores Tomás del Negro e Alves Coelho, sobre textos de Luís Galhardo, Pereira Coelho e Alberto Barbosa.
Este Rivoli iniciou a construção em 1928 segundo projeto arquitetónico de José Júlio de Brito. A certa altura passa a alternar espetáculos de teatro com a projeção de filmes, sendo nesse aspeto percursor de toda uma geração de salas no Porto e não só: como temos visto, muitos Teatros desta época foram sendo adaptados à exploração como cinemas: e alguns encerram portas nessa fase de transição.
Felizmente, o Teatro sobreviveu como tal, não obstante os períodos de encerramento e os períodos, por vezes dominantes, de maior projeção cinematográfica. Aliás, temos visto como essa adaptação a cinema é frequente nos teatros do início do século passado, um pouco por todo o país: coincide em muitos casos com o que temos denominado geração dos cineteatros, em salas adaptadas ou exclusivas do espetáculo cinematográfico.
Em qualquer caso, é sempre de realçar e recuperação e conservação destes grandes edifícios de vocação teatral/cinematográfica.
E a esse respeito, escrevemos também no já citado livro, que é de destacar, nas obras de renovação/adaptação a instalação, de um baixo-relevo alusivo às artes de espetáculo, da autoria do escultor Henrique Moreira, devidamente referido por Rute Figueiredo em “Portugal Património” (vol. I).
Há quem por mais arrumado que seja está sempre descontente e pronto a arrumar. Há quem por mais desarrumado que seja está sempre insatisfeito e pronto a desarrumar. Arruma-se a confusão e o caos. Desarruma-se a arrumação e a ordem. Há o desarrumar já arrumado, desarrumando e arrumando. Como desarrumar livros já arrumados, deslocalizando-os e arrumando-os. Tenta-se arrumar o caos, o infinito, organizando-o, tornando-o finito. Entre arrumar e desarrumar, investe-se energia na arrumação e desarrumação. É um sem-fim de liberdade ilimitada, assegurando-nos que cada dia é igual e diferente de todos, alinhando-o e organizando-o na nossa finitude e infindável caos. Há um sentido apreensível comum por todos? Aquilo que para uns é ordem e perfeição (arrumação), para outros é confusão e imperfeição (desarrumação). Há apenas tentativas de organização arrumando a casa, dentro dela os móveis, os livros e demais objetos, tal como se tenta organizar a vida no seu todo, numa amplidão e vastidão que nos condiciona via indeterminismo, do mesmo modo que o universo e o infinito, sabendo antecipadamente que nunca conseguiremos arrumá-lo. Entre a difícil tarefa de arrumação e desarrumação do infinito, persiste sempre o seu indeterminismo ilimitado, a nossa imperfeição, na sua permanente desarrumação e arrumação em constante liberdade.
Se se pensa nas razões da vida ela a morte é cabeça velha que labuta Num ofício em que o tempo finda de rompante Ou ela não gostasse de se interpor às conversas e impor-se só querendo falar daquilo que chama Daquilo que está escondido atras da sua língua linha reta que todos cumprem Quer sejam os do berço do início ou do fim quer sejam os que olharam o mar Ou os que não conheceram caravelas ou voo ou glote de sal Alarga-se sim forçosamente o diálogo à morte e ao dirigir-lhe palavra alguém passou a ser outra voz como a daquele verso que Exaurido da cova cantou Ó morte não mataste tu da vida um lugar de mães nem o poeta no vivo audível nem O amor que foi único nome de si
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Houve um tempo vivido por detrás das janelas Houve um tempo aplanado que de tão plano se convertia Na rampa da fuga quando se sabia que os peixes ajudariam Ao lance do mar e onde se esperava o barco como uma espécie de salvação A primeira de muitas que implicariam ofícios vagos e muito sofridos e de novo O carteiro junto ao portão de ferro entregava a carta por entre as grades E sorria como uma armadilha ou não soubesse que o remetente Era uma paisagem aparente nem benigna nem mortal
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Também chega o tempo de cuidar das memórias e das gerações Que nos ensinaram as cantigas que descobriam o segredo dos ovos nos folares Quando tudo era tépido antes do meio-dia E eis que um dia uma flor se suicidou atando cuidadosamente O caule à corda e ali se deixou estar de olhos abertos à casa Cheia de luzes presas sob empenas que sustinham estonteadas esperanças Tateando a nossa pele na vigília ao centro das infidelidades Mãe minha que não sei se falo de magias ou inocência
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Também se levam nos braços muitos filhos desconhecidos Infindamente vai-se dizendo com a suavidade do embalo Que eles devem sonhar com o mar Com aquele mar sem princípio nem fim e que mesmo quando vento é mar No sonho e no caminho e até tem pinhal de pinhas e pinhões que adivinham A hora em que a vida dos afetos que nos dão é bela e pobre E pedra-insónia feita de cordão umbilical
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Às vezes parece um muro imenso que avança e tapa a estrada Caminha-nos para o contrário das nascentes e dos comprimidos que nos retiram a dor Enfrenta-nos com o seu corpo pardo e duro e inclemente e logo te abraço Amor meu pois que morra eu e te deixe à guarda de um palácio que te fiz Com mantas de plumas de pássaros daqueles que em ti sempre festejarão As núpcias por te terem visto nos seus casamentos e tanto bastou Para criarem aquela canção-périplo que mesmo adormecida ou já não aqui Eu para ti ela e tu
O Homem tem uma constituição paradoxal. Por vezes, constata que fez aquilo de que se espanta negativamente, erguendo, perplexo, a pergunta: como foi possível eu ter feito isso? – aí, não era eu. Há, pois, o “isso” em nós sem nós, de tal modo que fazemos a experiência do infra ou extra-pessoal em nós. Talvez fosse a isso que São Paulo se referia quando escreveu: “Que homem miserável sou eu! É que não faço o bem que eu quero, mas o mal que eu não quero, isso é que pratico”. Por outro lado, o Homem dá consigo como sendo mais do que o que é: ainda não é o que quer e há-de ser. Ainda não sou o que serei. Uma das raízes da pergunta pelo Homem deriva precisamente desta experiência: eu sou eu, portanto, idêntico a mim, mas não completamente idêntico, porque ainda não sou totalmente eu. Então, o que sou?, o que somos?, o que é o Homem? O Homem não se contenta com o dado. Quer mais, ser mais, numa abertura sem fim. Exprimindo esta abertura ilimitada, há uma série de expressões famosas: citius, altius, fortius (mais rápido, mais alto, mais forte), o lema olímpico; o Homem é bestia cupidissima rerum novarum (animal ansiosíssimo por coisas novas), dizia Santo Agostinho; Max Scheler definiu-o como “o eterno Fausto”, e Nietzsche, como “o único animal que pode prometer”; Unamuno escreveu: “mais, mais e cada vez mais; quero ser eu e, sem deixar de sê-lo, ser também os outros.” Mesmo na morte, o homem não está acabado, pois é o animal do transcendimento e sempre inconcluído.
Precisamente a inconclusão mostra que a sua temporalidade e o seu ser têm uma estrutura essencialmente aberta. O Homem não pode não transcender, mesmo se, como escreveu o teólogo Leonardo Boff, há o bom e o mau transcender. Exemplos do mau transcender e má transcendência são a droga, o álcool em excesso, a religião enquanto superstição alienante. A vida é exaltante, mas também é terrível por vezes – traz exigências, dificuldades, opções que exigem algo de heróico. E há quem não aguente. E foge-se, alienado, para a droga, por exemplo, e “viaja-se”. Mas, quando se regressa da “viagem”, os problemas estão lá todos, com uma agravante: há menos força para enfrentá-los e superá-los, na alegria de crescer e transcender. No bom transcender – no amor, na produção, na investigação, na obra de arte, na contemplação da beleza, na generosidade frente à vida, na religião criadora –, o horizonte alarga-se, há mais vida partilhada, humanidade livre, justa e feliz, criação do novo, esperança que toca o Além.
Permanece, portanto, a pergunta iniludível: qual é o termo da força do transcendimento humano? Por outras palavras: qual é o Sentido último da existência? No limite, o autêntico ateísmo coerente seria “o ateísmo silencioso”, como escreve Georges Minois, aquele que não pusesse sequer a questão de Deus. Pergunta-se, porém, se precisamente a questão de Deus enquanto questão, independentemente da resposta positiva ou negativa que se lhe dê, e a questão do Sentido último, não são constitutivas do ser humano. Citando G. Gusdorf, G. Minois conclui a sua História do ateísmo “com um quadro implacável e lúcido” da Humanidade do ano 2000: “vive no Grande Interregno dos valores, condenada a uma travessia do deserto axiológico de que ninguém pode prever o fim”. Durante muito tempo perseguido, o ateu obteve o direito de cidadania no século XIX e acreditou mesmo poder proclamar a morte de Deus. Mas já no fim do século XX houve a tomada de consciência de que, “ao eclipsar-se, Deus levou consigo o sentido do mundo”. E continua: o futuro é imprevisível, porque o ateísmo e a fé enquanto compreensão global do mundo andaram sempre juntos. A ideia de Deus era um modo de apreender o universo na sua totalidade e dar-lhe, de forma teísta ou ateia, um sentido. Assim, a divisão hoje já não está tanto entre crentes e descrentes como entre “aqueles que afirmam a possibilidade de pensar globalmente o mundo, de modo divino ou ateu, e os que se limitam a uma visão fragmentária em que predomina o aqui e agora, o imediato localizado. Se esta segunda atitude prevalecer, isso significa que a Humanidade abdica da sua procura de sentido.”
É nesta segunda atitude de niilismo prático que presentemente nos encontramos. Ela caracteriza a época em que vivemos. A questão não é tanto não haver respostas, mas sim não colocar as perguntas essenciais, metafísico-religiosas, que constituem o Humanum, o humano. E aí estão a fragmentação e a desorientação geral, sem horizonte de sentido, Sentido último. Os nossos são, por isso, tempos de penúria e de noite, como anteviram Hölderlin e Martin Heidegger.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 19 JAN 2020