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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Muitos consideram Friedrich Hölderlin o maior poeta germânico. Pobre de mim, nunca fui adepto de tabelas classificativas de artistas, autores e suas obras, sinto-me bem melhor saboreando apenas o diálogo invisível que me abrem esses outros ares que para minha saúde respiro. O meu irmão Gaëtan, artista com mui cocegueiro sentido do humor, chegou a distribuir cartões de visita que o identificavam assim:

 

Gaëtan Martins de Oliveira
Especialista em Mudança de Ares

 

   Na literatura de língua tedesca talvez prefira Rilke, Hofmannstahl, Schiller, ou mesmo Goethe, a Hölderlin. Mas hoje, mudando de ares, caiu-me sob os olhos, no gosto e no goto, um poema do Hölderlin, intitulado Die Heimat, que começa assim:

 

Froh kehrt der Schiffer heim an den stillen Strom...

 

o qual, sem rodriguinhos, abaixo, e livremente, traduzo para ti, para contigo partilhar o que será uma faceta, um instante, da minha insistente meditação, em ano de tantas mortes de gente próxima, sobre como pensarsentir essa pertença-distância-proximidade-ausência. Aliás, ocorreu-me agora que, em língua inglesa, o verbo intransitivo to long for significa ter saudades de, ou desejar ardentemente, e o seu derivado to belong to quer dizer pertencer a... Não sei porquê, talvez por me ter vindo a aconchegar à lembrança de coisas que, ditas de muitas várias maneiras, nos dizem afinal o mesmo e por isso nos soam mais verdadeiras. Ou, quiçá, por me apetecer discordar q.b. de Hegel que, na carta a Niethammer, em 1808, pretendia que a realidade não resiste à revolução do reino das representações. Prefiro pensarsentir, com Novalis, que quanto mais poético algo for, mais real é. A arte, literária ou plástica, - creio eu - está mais junto ao real precisamente porque consegue dizer, simultaneamente, algo e o seu contrário, não exclusivamente numa perspetiva dialética, pois pode fazê-lo por tempos e modos diferentemente inspiradores e entendíveis, ou seja, a arte não tem de representar isto ou aquilo, de dizer o que é, de que se trata, surge apenas como apocalipse ou revelação das potencialidades das coisas, precisamente por catalisar as disponibilidades e os alcances da nossa escuta, do nosso olhar. Os nossos passeios pelas obras que outros partilham connosco são autênticos percursos de encontros e mudança de ares. Mesmo quando vamos ter, no século XIX, com um autor romântico alemão.  

 

A Minha Terra
Por silente corrente regressa o marinheiro,
terminada a safra nas ilhas tão distantes;
assim também gostaria eu de voltar à minha terra
se tanta riqueza colhesse quanto as dores sofridas.

 

E vós, margens queridas em que outrora fui criado,
podeis vós sossegar meus males de amor e prometer-me,
arvoredos da minha mocidade, que no meu regresso
encontrarei ainda aquele meu repouso?

 

Junto ao ribeiro fresco onde ondulações brincavam,
e ao rio em que barcos deslizavam, em breve estarei.
Bem cedo vos saudarei, e aos montes familiares
que outrora me abrigavam e eram as fronteiras

 

veneradas e seguras da minha terra, casa de minha mãe,
onde irmãos e irmãs com amor me abraçarão.
Agasalhado de carinhos, assim cuidado,
poderá enfim meu pobre coração sarar.

 

Sempre vos soube fiéis, mas também sei
como mal de amor não tem cura instantânea.
Nem há canção de embalar, que mortais cantem,
que me possa consolar, de meu peito afugentando o mal.

 

 Os deuses que nos transmitem celeste fogo,
logo também nos trazem sagrada dor.
Que assim seja. Pois assim sou eu também 
 filho da terra, feito de amor e sofrimento.

 

   Traduzi Die Heimat por A Minha Terra, poderia também ter escrito "A Pátria" ou "A Minha Casa". Qualquer delas traduz o mesmo pensarsentir a distância como proximidade, a realidade como sonho, a saudade afinal como pertença. Só em relação somos, pertencemos sempre à Terra-Mãe e uns aos outros, e ao pensarsenti-lo vamos desenhando na nossa vida um perfil, uma presença invisível, esse mistério permanente que até é tema daquele livro que o Ricardo Reis do José Saramago lê no barco que o traz para o derradeiro ano da sua vida: QUEM. Falo-te dum livro de Saramago de que tanto gosto: O Ano da Morte de Ricardo Reis. Sempre que o li e releio me sinto também mais próximo desse Fernando Pessoa - de heterónimos e outros vários mundos - que tão bem ilustra como a nossa humanidade vai vivendo algures e alhures, nem sempre arribando ou dando à costa, mas certamente trazendo e levando consigo o seu berço e a sua campa, ambos sua casa e sua terra. E sonho ainda, visão íntima dessa pátria prometida onde Quem é tudo em todos.

 

   Em tão cinzento novembro terminal, escuto essa corrente silenciosa que nos leva até à saudade essencial da vida e, com Hölderlin, murmuro:

 

So käm auch ich zur Heimat, hätt ich  assim também gostaria eu de voltar à minha terra
Güter so viele, wie Leid, geerntet. se tanta riqueza colhesse quanto a dor sofrida.

 

   Outrora, já o nosso Bernardim Ribeiro contara uma vida em que, menina e moça, me levaram de casa de meu Pai. Eis um percurso de saudade, eis a nossa vida afinal. A única riqueza que nos compensa a dor é essa saudade acumulada que sustenta a fé, a fazer-nos entender o alcance duma promessa inata, cujo cumprimento é ainda invisível, porque pretende-lo, agora já, seria cativarmo-nos. Como disse o António Ferro: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto / e agora quando me sinto / é com saudades de mim. A saudade absoluta é uma porta interior aberta sobre um infinito passeio para muito além de nós. Os retratos do Gaëtan - os seus autorretratos - constroem um percurso pelo seu labirinto íntimo, são passos ou instantes de uma busca que, ainda incompleta, esgotou o seu tempo e chegou enfim ao destino em que já tudo se lhe descobre.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira