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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Shirazeh Houshiary e a ambivalência do ser.

 

‘...When a gust of wind lifts the curtain
the secret of the interior is exposed...’, Rumi em ‘The Garden of the Soul’

 

Na pintura ‘Iris’ (2019), a artista iraniana Shirazeh Houshiary revela uma possibilidade de fusão entre o infinitamente grande e o imensamente pequeno. A desordem e o incontrolável tomam forma no fluir líquido da tinta. A esse acaso sobrepõe-se uma camada feita de marcas minúsculas, mais precisas e detalhadas.

 

Iris’ revela, em simultâneo, a inevitável fricção e a desejável fusão entre dois pólos que tendem a opor-se - segundo Houshiary é na energia de fundir o grande e o pequeno, o caos e a ordem, que se gera vida.

 

O trabalho de Shirazeh Houshiary é puramente empírico e experiencial. Não é a simples representação de uma forma que se deseja concretizar. É sim a revelação, a pulsação, a energia, a ocultação, a respiração de uma forma que se quer alcançar.

 

‘I am not interested in painting and on the more conventional sense of representation of something. I am trying to get into how something is structured, how it works. My work is very much about process. This process has taught me a huge amount about who I am, which is surprising.’, Shirazeh Houshiary

 

A pintura de Houshiary expõe uma perceção ambígua e indireta acerca de tudo aquilo que nos rodeia. É um protesto contra o saber.

 

‘I want to see an art that has ambiguity and makes me think about my own evolution in the world that I live and in the space and time of this universe.’, Shirazeh Houshiary

 

Abre toda a possibilidade de descoberta, porque é multidimensional, vaga, equívoca, incerta e não exata. A pintura de Houshiary apresenta-nos sempre a dúvida, porque materializa as questões mais primárias e profundas do ser humano. É a ambivalência que a gera. É na ambivalência que o ser humano se situa, porque o ser humano concilia opostos: o relativo e o absoluto, o acaso e o deliberado, o imenso e o insignificante, um lado e o outro, a luz e a sombra, o distante e o perto, o ruído e o silêncio, a desintegração e a estrutura, a ausência e a presença, a vida e a morte. A natureza essencial da vida é paradoxal, mas talvez na totalidade do universo este paradoxo faça sentido.

 

Houshiary acredita que é muito difícil conhecermos a verdadeira natureza da realidade (que é muito incerta) - pensamos sempre que sabemos, que conhecemos a totalidade, mas genuinamente a nossa visão está sempre embaciada, enfraquecida, como se tivessemos sempre por detrás de um véu. Só uma pequena parte da realidade, é visível. E a inconstância é a essência do trabalho de Houshiary.

 

‘There is a frustration when you don’t see but it is then that you question. We always think light throws clarity in our vision, we see things better. But actually light blinds us. We see better in darkness. Because it shows the paradox of seeing.’, Shirazeh Houshiary

 

Por isso, ‘Iris’ elogia uma precisão turva e nebulosa, os limites das formas não são duros e definidos, antes dissolvem-se, flutuam e são frágeis. Não há luz intensa, nem limpidez nos contornos, as transparências estão diluídas. A tinta líquida é derramada subtilmente. As manchas são ténues e não tangíveis. Porém é na aproximação que se firma a desintegração - porque a vida é estável e duradoura.

 

‘My work is like a quest to go beyond the veil that stops us seeing through.’, Shirazed Houshiary

 

É no detalhe que esta pintura mostra a sua lógica certa, exata, clara, nítida e até pura. E a pintura de Houshiary (tal como a vida) é a expressão dessa tensão entre o turvo e o límpido e entre a escuridão e a claridade. O ser humano só vê uma parte do todo - a parte relativa às suas convicções, crenças e opiniões. E Houshiary transporta assim o elevado desejo de fazer com que o ser humano realize que se aprender a entender o mundo através desta tensão permanente - entre o distante nebulado e o próximo nítido - as suas decisões não mais serão parciais.

 

‘I am only a shell for Spirit.
I leave reason behind and leap into bewilderment.’, Rumi em ‘The Garden of the Soul’

 

Ana Ruepp

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

Iniciamos um ano bissexto, o que dá sempre que pensar. Afinal no velho calendário romano era antes de se chegar aos idos de Março que se fazia o acerto cósmico, considerando que a certeza dos astrónomos obrigava a que, de quatro em quatro anos, houvesse um acerto de vinte e quatro horas, por conta das seis horas de desvio anual. Por muito que se desejasse que tudo fosse perfeito, como os astrólogos desejam, a verdade é que a grande balança do universo tem o seu quê de incerto. E o que é o Borda d’Água? Um ser rotundo, antigo, de cartola, óculos redondos graduados, um guarda-chuva, e uma interrogação permanente nos lábios sobre os astros e as nuvens, o sol e a lua, mas também sobre as culturas, os jardins, as árvores, as aves e o seu voo… Um dia foi visto, tal qual Lineu, de cócoras, com uma grande lupa a investigar o percurso das formigas, e a tentar ver onde estava a formiga mestra, ardilosamente escondida e protegida pelas aias solícitas… Outra vez foi encontrado, com uma tremenda máscara que o fazia tremendo à procura da abelha mestra numa colmeia, sem que nenhum dos inteligentes insetos o atacasse… Sim, o Borda d’Água é isso tudo: alguém que anuncia, prenuncia, justifica, demonstra, interpreta, domina e concede segurança a quem dela duvida. Encontrei-o há dias, falámos fugazmente. Explicou-me que a invernia ainda seria dura, que a primavera seria incerta, que o verão conheceria chuvas tropicais e que o outono não seria mau. Aventurou-se por ritos pagãos e cristãos, e no fim de tudo partiu apressado, pois ainda tinha um encontro marcado com um adivinhador que lia o futuro nas entranhas das galinhas… Mas para que lhe servirá isso? – questionei-o. E, com desfaçatez, ele disse-me: -  Para absolutamente nada. O que acontece é que há ainda quem se deixe iludir por esses sinais… - E que diz aos seus leitores e clientes? – Sempre a maior das verdades: Olhe com atenção, nunca se distraia com minudências.

 

Mas, hoje, com o controlo das barragens e a força dos burocratas, o Borda d’Água perdeu uma parte dos seus poderes. Além da preia-mar e da baixa-mar naturais, há o efeito da abertura e fecho das comportas, e esses gestos não dependem do destino, mas dos inexoráveis cálculos e gestos de mangas de alpaca. O Borda d’Água deixou, assim, de ser um “deus ex machina”. O caos e o cosmos, o cronos e o kairós, o tempo do relógio e o momento oportuno, obrigam a mais trabalho. A ecologia tornou-se complexa, o aquecimento global é cada vez mais misterioso, o buraco do ozono alarga-se assustadoramente, as emissões de dióxido de carbono evoluem perigosamente – e o velho Borda d’Água não tem outro remédio senão palmilhar léguas e léguas à procura dos segredos da incerta natureza…  

 

Agostinho de Morais