CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM
Minha Princesa de mim:
Em todos os passados anos da minha vida, se me têm misturado na alma sentimentos antigos e, com esses, outros sempre novos também, mais tradicionais uns, mas todos partilhados, que a conjunção especial dos astros natalícios me faz reviver por alguns dias (duas semanas) em que sucessivamente celebro a Encarnação de Deus como anúncio inicial da Boa Nova aos pobres que todos somos, o tempo novo do Ano Bom, e a data encanecida do meu próprio nascimento.
Não sei já, Princesa de mim, se acaso alguma vez te confessei a profunda comunhão em que, neste período que é marco da contínua viragem dos nossos anos contados, me reúne aos vivos que já morreram e aos que ainda por cá andam, quiçá em busca dos primeiros sons dessa música que o Gerôncio de Newman - lembro-me de te lo ter referido em carta recente - torna imortal:
De tal música ao certo não sei dizer
Se a ouço, toco ou lhe provo os tons...
É só melodia que subjuga o coração!
Eis que a escuto, pelo coro da nossa humana comunhão, no secreto âmago de mim, aí onde ela, a tantas vozes cantada, faz jorrar, em misterioso murmúrio, um choro tão manso como a alegre e silente ternura da vida.
Sei bem - e tu tem-lo visto - que sou bastante emotivo, comovo-me inesperadamente em circunstâncias pouco propícias ao surto de manifestos do coração. Na verdade, pouca ou nenhuma gente entende o porquê e ali daquela vibração que, de tão propriamente íntima, se deveria manter silente e encoberta. Mas também sei que, afinal, nada então se revela, nem coisa alguma transparece. Choro breve, soluço, pausa ou hesitação, tudo isso apenas serve para marcar um tempo de usufruto interior de um bem maior, que nenhuma medida comporta nem qualquer aparição poderia desenhar. Quase sempre, quem assiste à minha perturbação não alcança esse milagre de ser, ele próprio também, parte duma comunhão mais profunda da nossa humanidade.
Nunca é um pormenor, nem qualquer fait divers, a fazer vibrar qualquer corda invisível do meu pensarsentir. Antes é o apocalipse da humanidade comum, quando algo ou alguém consegue levar-me à clareza do invisível ou à palavra que está no princípio de todas as coisas. Sou pouco sensível às retóricas, e certamente insensível às imagens e ditos que, sem qualquer repouso meditado, nos são lançados por aqueles muitos que se vão treinando nos artifícios impressionistas da insinuação, do poder de influenciar ou, de modo mais chão, na "conquista de audiências". O que me anima no convívio com Bach, Mozart ou Stravinsky, num fado, balada, morna ou cante alentejano, Fra Angélico, Fujita, Amadeo, Jiro Taniguchi ou Kandinsky, Homero, Madame de la Fayette, Camões, Sophia, Shakespeare, Frei Luís de Sousa, Saramago ou Bernanos, não são rodriguinhos, é tão somente esse encontro profundo na comunhão da mesma condição humana. Menciono estes, cujos nomes me ocorrem no momento em que te escrevo, poderia falar-te de muitos outros, quiçá desconhecidos para ti ou, mesmo, já por mim pouco lembrados. O importante, nestes tantos encontros que me trazem as músicas, artes e letras que me acompanham pelos caminhos e estâncias da vida, é sobretudo o reconhecimento de mim também na própria diferença, como se olhares tão diversos sobre a mesma comum humanidade e sua circunstância me transformassem em próximo, no sentido mais evangélico do termo, isto é, no eu que sou ontologicamente humanidade inteira.
A passagem de ano, ou seja, este passo presente do passado para o futuro que logo vai também passando, percorri-a escutando os cinco discos antológicos da morna cabo-verdiana, editados sob direção do professor universitário e antropólogo Manuel Brito-Semedo, por ocasião da Candidatura da Morna a Património Cultural da Humanidade. Aconselho-te a escuta deste documento musical excecional, apoiando-a ainda na leitura da poesia das líricas cantadas e dos textos de comentário e circunstância. Agora mesmo, neste dia de Ano Bom, pergunto-me porque tanto me comovem (mexem comigo mais intima do que fisicamente) estas músicas, em que portugueses, brasileiros e outros poderão surpreender sons, frases e entoações, que lhes serão familiares em música da sua própria terra, e eu encontro ainda lembranças de cantares (até de missa!) que ouvi em ilhas perdidas na imensidão do Pacífico.
E respondo que, feitas análises e contas, talvez não se deva a minha profunda emoção a qualquer efeméride passada, a parecenças ou gosto. Antes - perdoa-me, Princesa de mim, a insistência - se radicará o meu sentir no choro antigo de todos nós, nesse grito inicial das nossas vidas, que todos soltamos, no natal de cada um de nós, a querer pronunciar aquela Palavra que, já no princípio de tudo, animou e se fez nossa humanidade, e para sempre veio habitar entre nós.
Em cartas novas hei de voltar a falar-te de Natal e do cante alentejano que, em registo feito pelo professor Joaquim Roque, em 1948, da canção entoada pelo Coro Dr. Bento Ferreira do Amaral, na Papelaria Nova Esperança, Beja, tão lindamente nos lembra o princípio do anúncio da Boa Nova aos pobres. Também o cante é já, com o fado e a morna, Património cultural da Humanidade. Hoje, para terminar esta, traduzo-te apenas um texto de apresentação de uma história aos quadradinhos de Cyril Pedrosa, francês luso-descendente, editada pela Air Libre (Paris, 2011) e intitulada Portugal:
A vida é cinzenta. Simon Muchat [o protagonista, luso descendente também], autor de bandas desenhadas, tem avariada a inspiração e vai perdendo sentido à vida. Convidado a passar alguns dias em Portugal, encontra por acaso aquilo de que não tinha vindo à procura: os odores da infância, o canto dos risos de férias, o calor luminoso duma família esquecida - quiçá abandonada. Qual é o mistério dos Muchat? Porque se sentirá Simon como se viesse de nenhures? E porque vibrará ele com os sons dessa língua estrangeira, sem que perceba patavina? Respostas e mais interrogações esperam-no no decurso dessa viagem regeneradora... ... Na fronteira da autoficção, com humor e vivacidade, Cyril Pedrosa assina uma narrativa essencial sobre a busca da identidade.
Ocorre-me, Princesa de mim, esse passo de L´Être et le Néant em que Jean-Paul Sartre diz algo como " ser humano é desejar ser Deus"... Isto, dito e escrito por alguém que era ateu confesso e definia o existencialismo como humanismo - já que, para ele, a existência humana é o devir do ser humano, pois é nessa existência que nos vamos fazendo (donde a importância fulcral da liberdade) -, sublinha, a meu ver, a essencialidade própria da busca da identidade.
E Emmanuel Levinas, filósofo judeu, nascido na Lituânia em 1906, estudante na Alemanha, introdutor da fenomenologia husserliana em França, país onde se naturalizou em 1930 e foi universitário, definia a diáspora como resignação, un renoncement foncier à une destinée, tal como não considerava Israel como a terra prometida, porque as escrituras nos levam bem mais fundo do que o solo... ...A pessoa é mais sagrada do que uma terra. Para esse também migrante e judeu sempre, que se tornou amigo de São João Paulo II, a experiência fundamental da metafísica é o encontro do outrem, pelo que a ética é a filosofia primeira.
A questão das migrações humanas e, sobretudo, do acolhimento e convivência do outro (do nosso próximo, assim devemos pensar) é fundamentalmente a interrogação da nossa identidade de comum humanidade. Quando pessoas em situações de abandono ou desespero de causa atravessam aflições e privações, muitos riscos, para irem bater à porta de outros seres humanos, não vão movidas apenas por fatores circunstanciais ou necessidades imediatas e urgentes. Na verdade, partem em demanda da igual dignidade que as identifica como seres humanos. E a nós também, pois não há humanidade possível sem comunhão.
Neste quinto de janeiro, ao cumprir-se mais um ano de mim por cá, fecho esta carta para ti, Princesa, companheira de memórias cheias de vozes e de silêncios. Bem hajas!
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira