CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM
Minha Princesa de mim:
Não tenho prestado muita atenção ao reacender da polémica acerca do chamado celibato sacerdotal, certamente por já me ter cansado tanta discussão em quarto fechado (huis clos? conclave?) sobre uma questão que alguns teimam em referir, quer essencialmente, quer sistematicamente, a um estatuto especial, para não dizer sobrenatural, dos presbíteros e epíscopos - que, afinal são só ministros ou servidores da Igreja ou assembleias de cristãos - de forma a que não seja colocada, nem debatida no seu contexto próprio que é o da preocupação e providência pastoral.
Aliás, um número crescente de teólogos, como já te disse, vai descobrindo ou apenas recordando que, no cristianismo, o único sacerdote é Jesus Cristo, sendo a função sacerdotal propriamente dita atribuída ao povo dos batizados, mormente na celebração da memória de Cristo pela comunhão eucarística. E os exegetas neotestamentários reconhecem que, nos próprios textos bíblicos canónicos, a designação de sacerdote não se aplica aos ministros dos sacramentos e do culto, mas apenas ao conjunto dos batizados. Assim, os textos testemunhais das comunidades da Igreja nascente - que não foi institucionalmente fundada por Jesus, mas vai medrando pela profissão e celebração da memória de Cristo -, Atos e Epístolas, dão fé de que os ministros (diáconos, presbíteros e bispos) são eleitos pelas próprias assembleias, nunca são chamados sacerdotes e são, muitas vezes, casados. Já te citei, em carta passada, o retrato ideal que São Paulo taça do bispo, em carta a Timóteo, antes ainda de se estabelecer a distinção entre epíscopo e presbítero, e com exigências muito próximas das pedidas aos diáconos:
Confiável é o ditado: «Quem aspira ao episcopado, deseja um excelente ofício.» É preciso que o bispo seja irrepreensível, homem de uma só mulher, sóbrio, pudico, respeitável, hospitaleiro, didático, que não seja bêbado nem espancador, mas gentil, não violento, nem seja amante do dinheiro; que governe bem a própria casa, mantendo os filhos em submissão, com toda a dignidade: pois se alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará da assembleia de Deus? (1ª a Timóteo, 3, 1-5, tradução de Frederico Lourenço)
Este, noutros passos, como mais trechos do Novo Testamento, também fazem alusão a mulheres, sem qualquer intenção ostracista, nem sequer exclusivista, o que, nesta minha carta escrita na conjuntura de uma certa polémica, me recorda um passo curioso da já tão sabida argumentação de Joseph Ratzinger no texto que é apresentado como seu - pior : como de Bento XVI, quando sabemos que a Igreja Católica tem só um papa, e a figura de papa emérito não tem sentido algum - incluído no livro publicado por ou com o cardeal Sarah. Deixo a palavra a Jean-Pierre Denis, diretor do semanário católico francês La Vie, que não será propriamente meu companheiro de pensamento sobre todas as questões:
Leia-se então o famoso artigo. Nele encontramos a precisão do pensamento, a força da argumentação e a limpidez da escrita que foram timbre dos artigos do professor Ratzinger para a revista Communio. Ler esse texto é ter um momento de leitura feliz. É breve - umas quarenta páginas, depois de deduzidas longas auto citações, como se a oficina do pintor tivesse sustentado a mão do mestre. Mas não há dúvidas quanto ao fundo, cem por cento ratzingueriano.
O papa emérito defende o celibato dos padres sublinhando a articulação entre o Antigo e o Novo Testamento. O culto católico é simultaneamente crítica e ultrapassagem em Jesus do culto do Templo. De facto, em muitas religiões, o exercício do culto está ligado à abstinências sexual. Mas esta é funcional, e apenas dura para o exercício do culto. Ora, para o padre católico, o compromisso é total, simultaneamente permanente e definitivo. De funcional, a abstinência passa a ontológica. Ratzinger acompanha a sua reflexão exegética com recordações da sua mocidade. A sua vocação foi um dom total. Não podemos deixar de nos comover com tal cultura e tal testemunho!
Evitando fazer ataques ad hominem, não posso deixar de observar que qualquer vivência pessoal pode ser apresentada como exemplo a seguir, ou mesmo proposta ou incentivo a comportamentos semelhantes. Mas não me parece que sirva para definição nem, menos ainda, imposição de regras obrigatórias de conduta, como qualquer norma de direito positivo, mesmo canónico. No caso das condições exigíveis para o exercício de ministérios religiosos de comunidades cristãs, aliás, os próprios textos paulinos as enunciam, sem que elas sequer incluam a vocação à castidade total, a tal que, aliás, São Paulo todavia enaltece noutros passos das suas cartas, sem todavia deixar de prevenir - nota bem, Princesa de mim - que será preferível o casamento à prática de atos sexuais ilícitos. Tudo isso, afinal, deve ser objeto de bom senso, de prudência (o tal amor sagaz que sempre refiro), e de uma ação pastoral atenta e amiga dos fiéis e suas assembleias.
O celibato eclesiástico, por outro lado, apenas começou a ser obrigatório com a reforma gregoriana do século XI e, definitivamente, com o Concílio de Trento, no XVI, durante o qual o nosso São Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga e padre conciliar respeitado, defendeu, lembrado dos seus padres isolados nas serranias do Barroso, que não se impusesse tal obrigação. Até lá, só as várias vocações eremíticas e as regras das ordens religiosas abraçavam tal mandato, como parte de um projeto voluntário de vida chamada consagrada. E entre esses "consagrados" e "consagradas", a maioria não recebia, ordens de habilitação para o exercício de ministérios sacramentais e cultuais, confiado aos clérigos, sobretudo ao clero dito secular (por viver no mundo, entre as gentes). A título de mais uma curiosidade, lembro-te aqui algo que te contei em cara antiga: a prática da confissão auricular foi, durante muito tempo, exercida apenas por monges (inicialmente, creio, por monges russos e, na Igreja do Ocidente, depois, por irlandeses), nem sempre ordenados. Eram ouvintes de confissões e medianeiros do perdão divino, não por possuírem ordens sacras, mas por serem considerados homens santos.
Muitos institutos e normas da vida da Igreja são fruto de circunstâncias históricas e culturais, resultantes, assim, não só de interpretações dos textos bíblicos de sua referência, mas de leituras diversas dos sinais dos tempos. Ao recordar estas contingências, estou evidentemente a manifestar algum espanto por ver, em pleno século XXI, uma argumentação sustentada por máxima misoginia primitiva, pela ideia de que a mulher (em razão da sua menstruação) e o ato sexual (esse, sim, ontologicamente cocriador) são poluidores da pureza exigida pelo culto divino... Tampouco entendo como, falando de sacerdócio e articulação do Antigo e Novo Testamentos, qualquer teólogo possa sobretudo ignorar, ou mal interpretar, este texto da Epístola aos Hebreus (10, 9-25), que transcrevo na tradução portuguesa - diretamente do grego - de Frederico Lourenço:
Então disse:
Eis que venho para fazer a tua vontade.
Suprime assim o primeiro culto para Ele instaurar o segundo. Vontade essa na qual fomos santificados, através da oferta do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez para sempre.
E todo o sacerdote se apresenta cada dia para oferecer o culto, oferecendo amiúde os mesmos sacrifícios, que nunca conseguem apagar os pecados. Porém este, depois de oferecer pelos pecados um único sacrifício, sentou-se para sempre à direita de Deus, doravante aguardando que os seus inimigos sejam colocados como estrado dos seus pés.
Pois com uma só oferta Ele tornou para sempre perfeitos os santificados. Testemunha-nos isto também o espírito santo. Após ter dito:
Esta é a aliança que estabelecerei com eles,
Depois daqueles dias, diz o Senhor:
«Dando as minhas leis aos seus corações,
Na mente deles eu as gravarei.
E dos pecados deles e das suas iniquidades, não mais Me recordarei.»
Onde existe perdão destes, já não existe oferenda pelo pecado.
Por conseguinte, irmãos, tendo nós liberdade para a entrada no santuário no sangue de Jesus, por um novo e vivo caminho que Ele nos dedicou através do véu que é a sua carne; e tendo um sumo sacerdote à frente da casa de Deus, aproximemo-nos dele com um coração verdadeiro em plena segurança de fé, com os corações limpos de qualquer mancha de uma má consciência e o corpo lavado com água pura.
Mantenhamos sem vacilar a profissão da esperança, pois fiel é Quem fez a promessa; e demos atenção uns aos outros com vista ao paroxismo de amor e boas obras, sem abandonarmos a reunião uns com os outros (como é costume de alguns), mas encorajando-nos.
Trago-te, Princesa de mim, esta longa citação, por ser consoladora lição da novidade do ensinamento de Jesus, da Boa Nova! E, para nos ajudar a interpretar melhor a referida "articulação do Antigo e Novo Testamento" podemos ler outro trecho da mesma Epístola aos Hebreus que, como o comentário do próprio Ratzinger deixa suspeitar, tem sido, de forma abusiva, utilizado para a configuração da figura ideal e regulamentar do padre católico pelo modelo de Jesus. Remeto para a ideia expressa pelo ex-Papa de que se, noutras religiões, a abstinência sexual se impõe no período de exercício do culto, tal obrigação é apenas conjuntural, enquanto a do padre católico é um compromisso total e definitivo. Estará, talvez, aí um pecado original do clericalismo, inicialmente gerado pela preocupação em morigerar certos hábitos do clero, mas logo caindo na tentação de fazer de um exemplo de vida cristã uma norma geral que, significativamente, não só moralizasse clérigos, como lhes oferecesse um estatuto de exceção de entre os batizados. (Aliás, foi percetível a obsessão com a hagiografia eremítica e monacal). Mas, na verdade, parece-me que a tal articulação dos Testamentos - ou a sua diferenciação - resulta mais clara duma nova leitura de trechos do capítulo 8 da Carta aos Hebreus, donde depreendemos a orientação e afirmação cristocêntrica que nos conduz ao reconhecimento do próprio Cristo como único sacerdote, não só relativamente aos levíticos do judaísmo, que substitui, mas por ser o único a ser simultaneamente oficiante e vítima do sacrifício redentor. Assim, sacerdote e sacrifício são, estes sim, ontologicamente o mesmo, e a consequente posterior celebração da Eucaristia (que quer dizer ação de graças) mais não sendo que memória efetiva disso mesmo pelas igrejas, isto é, pelas assembleias de batizados e seus ministros. Traduzo eu, da versão francesa da Bíblia de Jerusalém (edição de bolso, que trago muitas vezes comigo), um trecho de Hebreus, 8, 1-5:
O ponto capital das nossas afirmações é que temos um sumo sacerdote sentado à direita do trono da Majestade nos céus, ministro do santuário e da Tenda, da verdadeira, daquela que o Senhor, e nenhum homem levantou. Qualquer sumo sacerdote, com efeito, foi constituído para oferecer dons e sacrifícios; donde a sua necessidade de ter algo para oferecer. Na verdade, se Jesus estivesse na terra, nem sequer seria sacerdote, pois os há a oferecer dons em conformidade com a lei; esses oferecem o serviço de uma cópia e de uma sombra das realidades celestes...
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira