A VIDA DOS LIVROS
De 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2020
"Património Cultural – Realidade Viva" (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020) será lançado no dia 30 de janeiro no Centro Nacional de Cultura, com a presença do arqueólogo Luís Raposo, presidente do ICOM-Europa e do jornalista Henrique Monteiro – além do autor Guilherme d’Oliveira Martins. Apresentamos hoje um excerto da obra.
«Definido ao longo do tempo pela ação humana, o património cultural, longe de se submeter a uma visão estática e imutável, tem de ser considerado como um “conjunto de recursos herdados do passado”, testemunha e expressão de valores, crenças, saberes e tradições em contínua evolução e mudança. O tempo, a história e a sociedade estão em contacto permanente. Nada pode ser compreendido e valorizado sem esse diálogo extremamente rico. Usando a expressão de Rabelais, estamos sempre perante “pedras vivas”, já que as “pedras mortas” dão testemunho das primeiras. O património surge, nesta lógica, como um primeiro recurso de compromisso democrático em prol da dignidade da pessoa humana, da diversidade cultural e do desenvolvimento durável. E constitui um capital cultural resultante do engenho e do trabalho de mulheres e homens, tornando-se fator de desenvolvimento e incentivo à criatividade. Quando falamos de respeito mútuo entre culturas e das diversas expressões da criatividade e da tradição estamos a considerar o valor que a sociedade atribui ao seu património cultural e histórico ou à sua memória como fator fundamental para evitar e prevenir o “choque de civilizações”, mas, mais do que isso, para criar bases sólidas de entreajuda e de entendimento. Impõe-se, deste modo, o reconhecimento mútuo do património inerente às diversas tradições culturais que coexistem no continente e uma responsabilidade moral partilhada na transmissão do património às futuras gerações. E não esqueçamos o contributo do património cultural para a sociedade e o desenvolvimento humano, no sentido de incentivar o diálogo intercultural, o respeito mútuo e a paz, a melhoria da qualidade de vida e a adoção de critérios de uso durável dos recursos culturais do território. Daí a importância da “cooperação responsável” na sociedade contemporânea, através da ação conjugada dos poderes públicos, do mundo da economia e da solidariedade voluntária. Perante a exigência do reconhecimento mútuo do património inerente às diversas tradições culturais que coexistem e de uma responsabilidade moral partilhada na transmissão do património às futuras gerações, realizamos um exercício prático, onde, a propósito da herança cultural e da salvaguarda de marcos de memória, descobrimos a importância do diálogo entre valores e factos, entre ideais e interesses, entre autonomia e heteronomia. O certo é que os valores quando reconhecidos socialmente adquirem um carácter de permanência, tornam-se expressão da memória e do movimento, da tradição e da criação e aliam-se às constantes e invariáveis axiológicas numa relação complexa em que o património e a herança culturais se tornam fatores de liberdade, de responsabilidade, de emancipação, de respeito mútuo e de afirmação da dignidade humana. Uma obra de arte, uma catedral ou uma choupana tradicional, um conto popular, as danças e os cantares, a língua e os dialetos, as obras dos artesãos, a culinária ancestral – eis-nos perante expressões de valores que põem em contacto a História e a existência individual, a razão e a emoção, que constituem a matéria-prima de uma cultura de paz.
Há ainda exemplos que nos são dados pela natureza e que constituem motivo sério de reflexão sobre as noções de património e de memória. As borboletas-monarca são alvo de atenções especiais dos cientistas, em virtude das misteriosas migrações que protagonizam de muitos milhares de quilómetros e há milhões de anos, no Atlântico e no Pacífico, especialmente nas Américas. Tendo uma vida curta, de 2 a 7 meses, esse tempo não permite a estas borboletas realizarem mais do que uma viagem em vida e num só sentido – demonstrando que a memória genética pode ser mais importante do que a aprendizagem. Um segundo exemplo tem a ver com as nossas observações do firmamento. Verificamos que muitos dos corpos celestes que ainda vislumbramos, há muito que estão extintos e no entanto ainda parecem ser nossos contemporâneos, em virtude da «lentidão» da velocidade da luz. Vemo-los, mas já não existem… O terceiro caso relaciona-se com os belos jacarandás que temos em Portugal e que têm uma fugaz floração, quase impercetível no outono europeu, uma vez que prevalece a lembrança genética da primavera brasileira. Afinal, as árvores têm memória. As três referências levam-nos a dar uma especial atenção às nossas responsabilidades ligadas ao tempo e ao que dele recebemos. No fundo, temos o dever de estar atentos ao valor dinâmico do que recebemos e do que legamos – seja memória genética, seja perceção virtual do passado, seja reminiscência histórica… Quando falamos de património cultural é de atualização criadora que cuidamos – pelo que não é apenas o passado que importa, mas sim uma responsabilidade presente que renova e atualiza a fidelidade à herança recebida. Quantas épocas diferentes, quantos estilos, quantas intervenções compõem o mosteiro dos Jerónimos? O mesmo se diga das grandes catedrais europeias, que foram sendo construídas em diversos momentos e em camadas arqueológicas e arquitetónicas múltiplas. Na catedral de Salamanca, entre os elementos decorativos foi acrescentada no século XX a representação de um pequeno astronauta, que não choca quem o descobre e que apenas demonstra que a História não se detém. Também no património imaterial, assistimos a atualizações, desde a gastronomia aos hábitos e costumes, não esquecendo a língua…
Para entender a memória e o património cultural invoquemos ainda uma afirmação que é muito citada, mas mal compreendida… Fernando Pessoa através do semi-heterónimo Bernardo Soares fala-nos da língua como pátria. A frase é normalmente citada fora do contexto, como tantas outras. Mas quando se lê o texto onde ela se insere notamos, normalmente, um sentimento contraditório. Em primeiro lugar, temos uma surpresa, uma vez que se julga que a afirmação é heroica. No entanto, o autor não lhe dá essa natureza. Depois, quando se lê melhor, compreende-se que há um patriotismo aberto e desdramatizado, não territorial, não patrimonial, mas espiritual, eminentemente cultural. Anglo-saxonicamente, Soares dá força à palavra. É o domínio da língua, das palavras e do respeito mútuo que está em causa. Afinal, dizer bem a língua e as suas palavras é um ato elementar de dignidade, de cidadania e de sede de compreensão e de sentido.
«Não tenho sentimento nenhum político ou social (diz o “Livro do Desassossego”). Tenho, porém num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em quem se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa, vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha». Pátria – língua! «Procuras Portugal e andas com ele / nos mil destinos do teu destino. / Doí-te na pele. / Babilónia Sião Paris Babel. / Meu povo peregrino» — diz Manuel Alegre. A identidade enquanto identidade aberta começa, no fundo, nesse peregrinar e na hospitalidade de receber muitos povos e pessoas neste pedaço de terra à beira-mar plantado. Somos, mesmo na língua, e sobretudo nela, um cadinho, um melting-pot: iberos, celtas, fenícios, gregos, romanos, visigodos, suevos, alanos, vândalos, árabes… E na base há a herança indo-europeia e o sânscrito. De cada um ficaram marcas, palavras e sinais.
O Atlântico e o Mediterrâneo cruzam-se neste ocidente peninsular — a cordilheira central e a nossa Beira-Serra dividem as influências... E o romance galaico-português, paredes-meias com a língua asturo‑leonesa (que permanece no mirandês), consolidou a nossa identidade pela palavra. Língua, fronteira, povo — fizemo-nos portugueses ou “portugaleses”, com quase nove séculos de autonomia. A história fez a língua que é a herança viva com que podemos contar. E o romance galaico-português tornou-se profeticamente, com o provençal, a língua própria do género poético — cantigas de amor, cantigas de amigo, escárnio e maldizer. Afonso X, o Sábio, cultivou a língua dos trovadores (do trovar da língua d’Oc) e D. Dinis, seu neto, pôde dizer: «Se sabedes novas do meu amigo / ay deus e hu e». E não o ouvimos também dizer: «Quer´eu en maneira de provençal / fazer agora um cantar d’amor»? Ao ouvirmos, dos confins do tempo, a nossa língua podemos entender que o velho português se construiu pelo cuidado da palavra e das palavras. Como afirmou António Ferreira: «Floresça, fale, cante, ouça-se e viva / a portuguesa língua, e, lá onde for, / Senhora vá de si, soberba e altiva.». E podemos ainda ouvir mestre Gil, na transição dos temas medievais para os modernos: «Ó, famoso Portugal, conhece teu bem profundo».
Mesmo na ironia, a palavra ressalta alegre e viva, versátil e risonha em Camões — «Perdigão que o pensamento / subiu ao alto lugar, / perde a pena do voar, / ganha a pena do tormento. / Não tem no ar nem no vento / asas com que se sustenha: / não há mal que não lhe venha». Isto em contraste, mas complemento, em “Os Lusíadas”, com: «Ficava-nos também na amada terra / o coração, que as mágoas lá deixavam»… A língua pátria, a língua materna construíram-se e constroem-se de vida, ora erudita ora simples, ora sagrada, ora profana, ora amorosa, ora picaresca. E não se diga que o património é constituído pelos marcos de pedra ou pelos grandes monumentos da arquitetura — o património cultural é constituído por pedras mortas e por pedras vivas, por monumentos e tradições, o património imaterial, mas também pela natureza, pela paisagem e pela criação contemporânea, pelo valor acrescentado que adicionamos ao que recebemos das gerações que nos antecederam. A identidade exige a compreensão da memória, da vivência, da recepção e da entrega, do receber e do dar. Uma identidade viva tem de ser disponível, aberta, rigorosa e apta a receber e a dar».
Guilherme d'Oliveira Martins
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