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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O CENTENÁRIO DO TEATRO DE SÃO JOÃO DO PORTO

 

Novamente abordamos o Teatro São João do Porto, agora no quadro das comemorações do centenário assinaladas para o próximo mês. Justificam-se pois as novas referências, que nos propomos fazer, desde logo a partir da questão prévia, que aliás já tivemos ensejo de aqui lembrar.

 

É que em rigor o Teatro São João, com este ou outros nomes, vinha do século XVIII. 

 

Efetivamente, e tal como temos evocado, cantou-se ópera no Porto desde 1762, no então chamado Teatro do Corpo da Guarda, o qual se situava mais ou menos no local onde foi inaugurado, em 13 de maio de 1798, um Teatro D. João inspirado no Teatro de São Carlos.

 

O São Carlos, como sabemos, foi contruído em 6 meses e inaugurado em 13 de junho de 1793 com a ópera “La Ballerina Amante” de Cimarosa. E vale a pena lembrar também que o Teatro de São Carlos é inspirado diretamente no São Carlos de Nápoles, e deve-se ao arquiteto José da Costa e Silva.

 

O Teatro D. João ou São João do Porto é inaugurado então em 13 de maio de 1798 na sequência de um projeto do cenógrafo italiano Vicente Manzoneschi, com pano de boca pintado por Domingos António de Sequeira.

 

A iniciativa deveu-se a João de Almada e Mello e ao seu filho Francisco. Eram parentes do Marquês de Pombal.

 

Em qualquer caso, uma lei datada de 7 de abril de 1838 concede subsídios a dois teatros: o Teatro da Rua dos Condes, em Lisboa, e o Teatro São João do Porto.

 

 E em 30 de janeiro de1846, um Decreto reconhece como “Teatros de Primeira Ordem” o Teatro D. Maria II, o Teatro de São Carlos e o Teatro São João do Porto.

 

E quanto a este, já tivemos ocasião de citar Camilo Castelo Branco, que descreve em “A Sereia” (1865) o funcionamento do Teatro e o público constituído sobretudo por “grupos de pedestres burgueses” e pela “fina flor da aristocracia e a burguesia aristocratizada”...

 

No início do século XX o Teatro assumia a designação de Real Theatro S. João. Uma gravura da época refere a realização de um espetáculo de ópera realizado em 22 de fevereiro de 1906.

 

 Dizia  o cartaz:

 

“Récita gentilmente oferecida pela Empresa em favor do cofre de pensões da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto com o obsequioso concurso dos célebres artistas Sig. Parsi-Pettinelli e Sig. J. Biel   - A ópera em 4 atos do maestro Verdi -  AIDA”.

 

Isto, repita-se, no início do século XX.

 

E veremos em mais textos a evolução do Teatro Nacional de S. João.

 

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

40. NOVA FALA DE UM HOMEM NASCIDO QUE QUER SER OUVIDO

 

“Venho da terra assombrada       
Do ventre da minha mãe     
Não pretendo roubar nada   
Nem fazer mal a ninguém.   

Só quero o que me é devido 
Por me trazerem aqui.   
Que eu nem sequer fui ouvido     
No acto de que nasci”   

“Fala do Homem Nascido”, António Gedeão

 

Se a ascendência (ius sanguinis) e o território (ius solis) são os elementos causais formadores da cidadania originária (ou em primeiro grau), fazendo parte do que herdámos biologicamente, do não escolhido, não podemos superar esta conceção exígua de cidadania adaptando-a à evolução dos tempos?   

 

Agarrando a cidadania derivada (ou em segundo grau) a esfera do desejado, querido ou pensado, como a adoção, o casamento ou o domicílio, qual o óbice em alargá-la ao local de nascimento de cada um?   

 

Se é impossível emitir opinião e sermos ouvidos quanto ao ato em que nascemos, terá que ser assim quanto ao local do nosso nascimento?   

 

Não poderá este basear-se na decisão da própria pessoa que estabelece uma relação afetiva com um determinado lugar onde teve, ou tem, o centro da sua infância, adolescência, vida pessoal, familiar, social, da sua mundividência formativa e perene como ser humano, onde o começo começou e plastificou para sempre a nossa conceção e perceção do mundo? 

 

Porque não podemos escolher, por decisão própria, o local que no começo das nossas vidas nos moldou e formou com caraterísticas de permanência? 

 

Um lugar pensado, querido, desejado, amado, adotado, desposado, certificado e registado, diferente do herdado e determinado biologicamente, por herança e decisão alheia, que com este pode ou não coincidir. 

 

Eis um novo falar e pensar de um homem nascido que quer ser ouvido.   

 

28.02.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

TAO YUANMING: O POETA DA RECLUSÃO ENTRE O TEMPO E AS COISAS

 

A minha gratidão a Manuel Afonso Costa por mais esta tradução que me permitiu ir a este caminho de passado procurar regressos e futuros.

 

Sabe-se que Tao Yuanming (365-427) é o alicerce fundamental dos grandes clássicos da literatura chinesa e um dos maiores poetas chineses. Pela mão de um amigo francês, chegou-me a leitura deste escritor sagrado. Agora, lendo em português, por tradução de um poeta, melhor se entende o quanto a poesia é uma receção única ao entendimento das realidades, graças, sobretudo, à sempre nova e singular luz que aporta à verdade.

 

Lê-se que Tao Yuanming nasceu numa família aristocrática empobrecida, cresceu e envelheceu pobre, sempre pobre, ainda que nunca tenha descuidado a afirmação:

 

«Não voltarei as costas aos meus princípios por cinco alqueires de grão.»

 

Por esta razão preferiu viver como agricultor e passar fome, do que seguir uma carreira de funcionário, repelindo assim a corrupção generalizada. Retirado com a sua família para uma aldeia, numa pulsão pelo campo, nela escreveu poesia e prosa e cultivou os crisântemos inseparáveis dos seus versos. Os crisântemos representam o Outono quando as outras flores já murcharam e representam igualmente um comportamento ético do homem livre que se distingue na honra. Um comportamento que assenta na natureza e não se compromete com o ilusório.

 

O vinho também foi caminho que o não perdeu, antes jeito de intransigência e de serena solidão, jeito mesmo de compreender um desfrutar das manhãs às quais as pessoas vulgares não agradecem de tão confusamente viverem.

 

Tao Yuanming soube como refletir sobre a passagem do tempo, o seu significado, a transitoriedade da existência, a morte, e afinal o conhecer do saber valorizar o tempo que passa, ou a vida depressa não caminhasse para o nada.

 

Já tinha lido e ficado maravilhada com as palavras de Tao

(…)

eu por mim consagro-me a viver em solidão
já faz quarenta anos que a isso me dedico
com devoção e de acordo com a sábia natureza
o meu corpo envelheceu há muito tempo
mas os meus sentimentos continuam intactos,
por isso nada tenho a lamentar.

 

A verdade é que este poeta maior atravessa a vida pedindo comida emprestada para sua mulher, seus filhos e para si enquanto escreve

 

(…) o lugar onde moro (…)
onde tenho uma casita com aposentos vários
(…) no coração da casa nem uma nódoa
não cabem tumultos onde o silêncio mobila os quartos
tanto tempo estive em cativeiro
que alegria por voltar ao campo
(…) durante o dia o portão fica fechado
e na sala vazia o mundo vazio não entra

 

(…) O grande oleiro não concede favores particulares
dentro do complexo mundo das coisas,
cada uma por si só cresce e se distingue
se o homem prospera, entre céu e terra

 

(…) Se o frio e o calor se sucedem sem parar,
o mesmo acontece com a fortuna dos homens
tudo isto me parece óbvio,
por isso sabiamente se retira
aquele que para a vida despertou.

 

Creio que é pouco dizer que com este livro se reencontra o espanto. E é pouco realmente porque julgo que se encontram muitíssimas realidades que nos levam a não nos atrevermos a procurar o caminho de modo “banal”, como muitos que viajam, viajam, viajam de modos vários para procurar verdadeiramente o quê? E se a esta pergunta se atrevem, nela reside a coragem de sobreviver à resposta com dignidade, a dignidade de continuarmos inteiros na pobreza de cada um, e isto também nos propõe Tao Yuanming.

 

Depois, depois, diria:

 

Sei que o lume da lareira vai apagar-se não tarda nada e de fontes de flores ainda só conheço a dos plátanos.


Teresa Bracinha Vieira

 

Obs. Este livro pela Assírio & Alvim, na coleção Gato Maltês, 2019 - Poesia e Prosa de Tao Yuanming

 

O SAGRADO E SUAS CONFIGURAÇÕES. 1

 

Como ficou dito em crónicas anteriores, o Sagrado é o referente último de todas as religiões, o mistério da realidade na sua ultimidade. É o Sagrado ou o Mistério pura e simplesmente. É o Inominável, pois transcende sempre tudo quanto se possa pensar ou dizer dele. Nenhuma religião o possui nem mesmo as religiões todas juntas.

 

Na experiência do Sagrado, fonte de sentido último, salvação e felicidade, o Homem está sempre em presença de algo outro e superior, “o tremendo e fascinante”, o Absoluto, inabarcável, inacessível e inefável.

 

Esta superioridade do Sagrado manifesta-se em níveis diferentes: o ontológico – infinita riqueza de ser –, o axiológico – realidade sumamente valiosa. Assim, comporta “uma ruptura de nível que aponta para a plenitude de ser e realidade por excelência” (J. Sahagún Lucas).

 

Sendo o Inominável, procurou-se, ao longo da História, nomeá-lo. Numa obra recente, Después de Dios..., o teólogo José Ignacio González Faus apresentou várias tentativas, com muitos nomes. Os Upanishades referem-se a ele como “O Incondicionado”; as filosofias mais racionalistas designam-no como “O Absoluto”; Santo Tomás de Aquino disse que o seu melhor nome é precisamente “O Inominável”; Tierno Galván, “a partir do seu agnosticismo despreocupado pelo tema”, designa-o por vezes como “O Fundamento”; Karl Rahner, o maior teólogo católico do século XX, fala dele precisamente como “O Mistério”; Rudolf Otto, autor da obra famosa “Das Heilige”, fala dele precisamente como “O Santo”, “O Sagrado”; Platão referia-se a ele como “a ideia do Bem”, mas é necessário notar que Platão chama ideia à verdadeira realidade, contraposta às sombras, sendo assim o Sagrado o Sumo Bem; Aristóteles designou-o como “O Motor Imóvel”, com o sentido de que, no meio de todas as mudanças, é necessário algum “ponto de referência firme”; mesmo o famoso tetragrama hebraico YHVH, letras impronunciáveis, não é um nome próprio, mas “uma resposta evasiva a Moisés”: “sou o que serei”: confia e irás vendo; o Novo Testamento conclui, que “Deus é Amor”, que não é uma definição, pois não diz “Deus é O Amor”. O místico João da Cruz referiu-se-lhe como “a música calada que enamora”.

 

Que concluir? Deus é “esse Mistério indizível que nos envolve. Neste sentido, à pessoa que se sente ou se julga ‘muito religiosa’ é preciso pedir-lhe que renuncie um pouco a Deus, não para negá-lo, mas para deixar Deus ser Deus. Frequentemente, os que mais falam de Deus são os que de modo pior acreditam nEle.” É também neste contexto que deve entender-se o que uma vez ouvi a Jacques Lacan: “Os teólogos não acreditam em Deus, porque falam dele.” Talvez mais decisivo do que falar de Deus seja falar com Deus.

 

De qualquer forma, ao longo da História e sempre, o Sagrado, na medida em que o Homem precisa de nomeá-lo de alguma maneira, foi sendo apresentado de múltiplas formas e em várias configurações, desde o politeísmo ao monismo, passando pelo dualismo, o deísmo, o monoteísmo..., como veremos em próximas crónicas.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 23 FEV 2020

TALVEZ O CARECA FOSSE O SENHOR PINTO

 

Quem é que, naquele tempo, tinha uma cabeça mais lisa e alva do que o deserto do Namibe? Tenho de perguntar ao Abílio e ao Simão, meus mais-velhos dos felicíssimos anos 68 e 69 da Luanda colonial. Talvez o careca fosse o Senhor Pinto, Mr. Magoo da minha remota rua. Sentava-se ao volante do caquéctico e negro Volkswagen e, de fora, só se via a calva elipsóide da sua cabeça. Foi o primeiro carro de condução autónoma que vi circular, deixando atrás de si um alvoroço de gritos, buzinadelas, gente a salvar-se saltando muros: “Abre, muadié!”

 

O careca não tinha prestígio, é o que, compungido, quero dizer. O careca ou era o velho, nesses tempos pré-viagra em que não se ia novo para velho, ou então o careca era o chorado menino de sua mãe, novíssimo, máquina zero, chamado à tropa para mata-mata, se não morres tu.

 

Eu tinha um caracol. Tombava displicente sobre o lado direito da testa e acalento a longínqua e meiga ideia de que terá mesmo despertado alguns precoces instintos maternais. Por mais afagos com que o tenha enrolado algum gentil e adolescente indicador, esse saudoso caracol era uma sentinela. Protegia as generosas entradas que prefiguravam a calvície por chegar. A pérfida e vergonhosa calvície.

 

Uma matinée espatifou essa Weltanschauung. Tanto se dá que tenha sido no Cinema Império, na Casa do Alentejo ou no São Domingos dos padres capuchinhos. Foi na Luanda negra que parecia branca, no começo de uma noite cálida, em que nem sequer se sentia o intestino rumor da obstipada História. Toda a História, sobretudo a que, então e nossa, era tão adolescente, se silencia face à dimensão faraónica de Ramsés II. O filme era “Os Dez Mandamentos” e quando a cabeça de Yul Brynner encheu o ecrã, a glória do close-up arrancou-nos um entusiasmo apopléctico. Não havia só a careca burra e velha. Estava ali, lisinha e em grande plano, a careca inteligente e real, a redonda cabeça perfeita, brilhante espelho de poder e glória. A careca de Yul Brynner, egípcia, glabérrima, sem pêlo ou cotanilho, era soberba obra humana, delicadamente traçada à navalha. 

 

Nessa matinée, nem sei se dava a mão a alguém, o meu displicente caracol encrespou-se. Yul Brynner era o Nietzsche que, morte de Deus capilar, remetia a cabeça à sua irremediável e tentadora solidão primordial.

 

Manuel S. Fonseca

A VIDA DOS LIVROS

De 24 de fevereiro 1 de março de 2020

 

“Glória – Biografia de J.C. Vieira de Castro” de Vasco Pulido Valente (Gótica, 2001) – tornou-se um livro de referência na historiografia portuguesa, num importante conjunto de outras obras de um autor que marcou indelevelmente a literatura, o comentário e a ciência da História.

 

 

UM LIVRO DE HISTÓRIA
 Significativamente, o autor começa por deixar claro: “Este é um livro de história. Não é um livro de história a fingir de romance, nem um romance ‘documental’. Convém começar por dizer isto para que não haja confusões. As variantes do positivismo que ainda hoje dominam a disciplina foram reduzindo ao geral e abstrato a investigação sobre o passado”. Em lugar do desinteresse do indivíduo e de um mundo assético, de onde desapareciam a irracionalidade e a imaterialidade da vida, o historiador desta obra apresenta-se a descrever, a partir de uma rigorosa análise dos documentos e dos acontecimentos, a vida tal como a conhecemos. Vasco Pulido Valente procurou na biografia solução para a tal dificuldade que afastava a história e a vida. Por isso, abalançou-se na análise de figuras como o Duque de Palmela, Costa Cabral, Marcelo Caetano e Paiva Couceiro, até que se deparou com um caso muito especial: o de José Cardoso Vieira de Castro (1837-1872). Trata-se de um dirigente académico com alguma importância, um jornalista menor, um escritor sem talento, um político sem poder, e ainda por cima, um criminoso e um degredado. Todos estes elementos permitiram a consideração de alguém que, pelas promessas que representou, pelos meios que frequentou, pela personalidade que tinha, nos revelou um período social, cultural e político extremamente rico, que permite ao leitor adentrar-se no século XIX português tal como foi. E assim, a partir de uma figura dramaticamente célebre, podemos encontrar uma historiografia capaz de entender a complexidade da vida, desde a singularidade de cada um à encruzilhada das relações humanas. “Vieira de Castro não queria perder a vida num remoto canto da província. Queria conquistar Lisboa e o país. Queria glória”. A intenção do historiador foi de ‘mostrar’ como agiam, sentiam e pensavam os portugueses letrados de meados dos século XIX e não de os meter nos seus casulos…” E assim seguimos, passo a passo, as personagens e os acontecimentos, os encontros e os desencontros.

 

UMA AMIZADE FUNDAMENTAL
No caso de Vieira de Castro deparamos com uma ambição que tem a ver com uma carreira política. No ano de 1860, algo de fundamental ocorrera. Camilo Castelo Branco e J.C. Vieira de Castro criaram amizade especial, quando o romancista se refugiou na Casa do Ermo, solar ancestral da família do segundo, por aquele se encontrar em fuga devido aos amores com Ana Plácido, casada com Pinheiro Alves… E lemos “As Memórias do Cárcere”, “no ‘Ermo’ me esperava com os braços abertos e o coração no sorriso José Cardoso Vieira de Castro. Falseei a verdade. Vieira de Castro esperava-me a dormir naquela madrugada dele, que era meio-dia no meu relógio”. Depois, Vieira de Castro escreve a biografia de Camilo, que merece elogios de circunstância de Júlio Dinis. E volta a Coimbra, com a intenção de terminar o curso, enguiçado pelos sucessos do líder estudantil. Mas quando regressa, depara-se com o movimento encabeçado por Antero de Quental, notando-se uma contradição evidente na relação entre ambos. Vieira de Castro pensa na carreira política. Em 1864, o sucesso em Coimbra determina, de facto, a sua candidatura e eleição em 1864 pelo partido Regenerador num sufrágio suplementar para o círculo de Fafe. “Acabara enfim o exílio d’O Ermo, daquela província que o ‘sufocava’. Vieira de Castro podia vir para Lisboa em busca de uma glória que não se comparava aos triunfos de Coimbra, nem às pequenas vitórias de Fafe, nem sequer à meia celebridade que tinha no Porto. No Parlamento e com a retaguarda assegurada por Ferreira de Melo, a sua presa, a sua audiência era o país inteiro”. Vai morar para Santa Catarina, a dez minutos de S. Bento. “As janelas dominavam o Aterro e o Tejo” do Montijo até ao mar: um esplêndido “panorama”. “Como qualquer ‘elegante’ estabeleceu relações de ‘boa sociedade’”. Em abril de 1866 participa num jantar oferecido por Bulhão Pato, onde estavam o visconde de Seabra, Rodrigues Sampaio, o barão da Trovisqueira (a quem Vieira de Castro devia muitíssimo dinheiro), Rebelo da Silva, Francisco Luís Gomes, Eduardo Cabral, Tomás de Carvalho (…), Luís Augusto Palmeirim, Teixeira de Vasconcelos e Ramalho Ortigão”…

 

UM ORADOR ESQUECIDO
Na Câmara dos Deputados evidenciar-se-á a sua verve tribunícia. Depressa o orador ganha notoriedade, que ultrapassa fronteiras e chega ao Brasil. O seu modelo é o grande José Estevão, o mais célebre dos oradores parlamentares. É recebido com honras de triunfador no Brasil, e aí se casa no Rio de Janeiro (em fevereiro de 1867) com Claudina Adelaide Gonçalves Guimarães, filha do comendador António Gonçalves Guimarães, natural de Fafe e um dos diretores do Banco Rural e Hipotecário do Brasil. De regresso a Portugal, a jovem não parece conformada com uma vida provinciana, prefere uma casa na Rua das Flores, onde o casal se instala, recebendo uma tertúlia literária, onde estão Ramalho Ortigão, António Rodrigues Sampaio, e José Maria Almeida Garrett, sobrinho do célebre Garrett. Em 7 de maio de 1870, sábado, Vieira de Castro surpreende a jovem mulher a escrever uma carta a José Maria Almeida Garrett e tudo se precipita e se desmorona. Iludindo uma solução pacífica, para a não deixar fugir, Vieira de Castro mata a mulher, desafiando sem sucesso o jovem literato para um duelo, que este recusa. “Quando se entregou à polícia, a 10 de maio, Vieira de Castro não mediu o horror que o seu crime ia inspirar na ‘opinião pública’. Não acreditava que a sociedade que o aplaudira como um ‘ídolo’, ‘repentinamente o repelisse como um monstro’. Estava, aliás, seguro de que seria absolvido: era vítima, não era o culpado. A Camilo escreveu com toda a frieza: ‘Fizeste bem, ou antes, não fizeste mal em dizer que eu não tenho remorsos nenhuns’. Naqueles primeiros dias só se afligiu com a ruína da sua carreira política. A morte de Claudina não passava de uma desgraça que o privara de um grande e decisivo triunfo”… Em 1871 partiu para Luanda para cumprir a pena de degredo a que fora condenado, de 15 anos. A morte condená-lo-ia apenas um ano depois. O silêncio foi a regra. Poucos o recordaram. Camilo foi exceção: falou do “atribulado mártir” e da “divina Providência que lhe comutara em agonia de instantes o suplício de 15 anos”…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença 

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   O breve epílogo do livro L'Immortalité biologique (Odile Jacob, Paris, janeiro de 2020) da médica hematologista, investigadora e professora universitária Hélène Merle-Béral, em tradução minha, reza assim:

 

   Qual quer livro sobre a imortalidade fica sempre inacabado. Alguns dirão que a vivem no virtual da fé, mas tal imortalidade apenas é outra forma da esperança. Então, como poderemos aproximar-nos dela? Talvez ousasse dizer que tive a impressão de a ter observado quase todos os dias, num período da minha vida em que, debruçada sobre o microscópio, analisava células cancerosas de pacientes feridos de leucemia. Tinha debaixo dos olhos uma proliferação exuberante de células imortais, e tinha o poder de as propagar em cultura, para manter a sua imortalidade fora do corpo humano, de as fazer viajar, parcelas de eternidade num tubo de ensaio, para que servissem, sendo modelos privilegiados, objetivos de investigação do ciclo celular, da apoptose, da sobrevivência ... Esse fascínio por formas de vida imortal levou-me a pesquisar, ao microscópio como na literatura científica, as origens e potencialidades da imortalidade biológica. Sem nunca ter chegado a descobrir-lhe todos os mecanismos, tal investigação tem um ponto em comum com o seu objeto: é infinita...

 

   Esta obra que, na sua edição original, acima referida, tem apenas cerca de 170 páginas, está escrita de forma escorreita, assim facilitando e estimulando a sua leitura, muito embora pressuponha, da parte do leitor, alguma informação pertinente e noções básicas acerca de problemáticas que se estendem de doutrinas, crenças e mitos sobre a questão da humanidade face à morte até às tentativas históricas e contemporâneas de contrariar o envelhecimento e vencer a morte, para não se mencionar algum elementar conhecimento de variadas e raras formas de vida vegetal e animal ou, ainda, de análises e experimentações em busca, não já do "humano aumentado ou alongado", mas do "pós-humano e do transumano". Aqui surgem os ensaios de manipulação genética e clonagem, de gestão algorítmica da beleza e da saúde, de numerização do cérebro, de inteligência artificial...

 

   Afinal, este universo novo de investigação não será, enquanto atitude de seres humanos, muito diferente da primitiva epopeia de Gilgamesh, nem de tantas outras fezadas na descoberta da imortalidade, incluindo a longa história da alquimia. Como se essa indelével ânsia de encontrar outra dimensão da vida humana fosse também o motivo do furto e consumo do fruto da árvore genética do conhecimento, da queda de Ícaro ou da falta de Sísifo que lhe valeu aquele castigo que Homero assim regista na Odisseia (tradução de Frederico Lourenço):

 

          Vi Sísifo a sofrer grandes tormentos,
          tentando levantar cm as mãos uma pedra monstruosa.
          Esforçando-se para a empurrar com as mãos e os pés,
          conseguia levá-la até ao cume do monte, mas quando ia
          a chegar ao cume mais alto, o peso fazia-a regredir,
          e rolava para a planície a pedra sem vergonha.
         Ele esforçava-se de novo para a empurrar, dos seus membros
         escorria o suor, e poeira da sua cabeça se elevava.

 

   Esta visão de Sísifo no Hades é, afinal, a do inferno que o absurdo é, ao ponto de nele caber o próprio esforço do ser humano. A dado passo do seu Le Mythe de Sisyphe, Albert Camus escreve - e respigo estas citações para que nos ajudem à reflexão adveniente desta carta - que os homens também segregam desumanidade... E diz mais:

 

  Chego enfim à morte e ao sentimento que dela temos. Sobre tal ponto já tudo foi dito e parece-me decente evitarmos o patético. Todavia, nunca nos espantaremos bastante com o facto de toda a gente viver "como se ninguém soubesse". É que, na realidade não há experiência da morte. Em sentido próprio só se experimenta o que foi vivido e tornado consciente. No caso presente, só é possível falar-se da experiência da morte dos outros. 

 

    São inúmeros os exemplos da tentação de longevidade, e de imortalidade, na literatura universal, desde o Graal e lendas de elixires da juventude ao Fausto de Goethe. O que a presente corrente de pensamento transumanista reflete vai, todavia, para além de tudo isso: From chance to choice (da contingência à opção), eis o lema de quem pensa que, graças aos progressos das novas biotecnologias, a espécie humana deveria extrair-se do determinismo da sua programação genética para realizar façanhas fabulosas em matéria de inteligência e longevidade, ultrapassar os seus limites biológicos e sublimar as suas capacidades intelectuais e fisiológicas...   ...O ser humano deverá libertar-se da dependência da injustiça da natureza para decidir do seu futuro e, permanentemente conectado a um computador, deverá libertar-se da servidão do seu corpo, graças à inteligência artificial...

 

   Tal melhoramento do ser humano vai ultrapassando as fronteiras naturais - dizem os seus prosélitos - graças à convergência das biotecnologias NBIC, isto é, à sinergia entre as nanotecnologias (N), a biologia (B), a informática (I) e as ciências cognitivas (C). Tal conceito foi articulado pela primeira vez em 2002, nos EUA, num relatório da National Science Foundation que desenha um leque das principais tecnologias referidas : as nano, reunindo técnicas a nível atómico e molecular ; as bio, incluindo a engenharia genética, com anúncio de fabricação dos primeiros clones humanos ; a informática, que comporta eletrónica, telecomunicações, robótica e inteligência artificial ; e, finalmente, as cognitivas, cujo último objetivo será a perfeita compreensão do funcionamento do cérebro humano. [Com tua licença, Princesa de mim, abro e logo fecho aqui um parêntese, precisamente para incluir uma interrogação: será que o cérebro humano é tão somente um órgão calculador, computador, amputado dessa misteriosa função que tanto gosto de chamar "pensarsentir"? E será que a presente pretensão a substituir-se a ciência enquanto descoberta ou conhecimento novo, por reorientação da própria natureza das coisas (da rerum natura, como diria o ateu Lucrécio) não é mais pretensiosa do que científica? Evidentemente que, por sermos humanos, somos, como disse Ortega y Gasset, trânsfugas da natureza, e desde sempre nos interrogámos sobre ela. Como sua própria consciência, sobre ela e nós mesmos inquirimos...]

 

   Este último ponto traz-me à memória uma citação que a professora Merle-Béral faz de António Damásio (entre outras, todas elas, salvo erro, respigadas na Estranha Ordem das Coisas, obra de que já em carta te falei): A inteligência artificial pode simular os sentimentos, não pode duplica-los. Os organismos artificiais não têm vida. O espírito humano não é feito de cérebro apenas.

 

   Sabes tão bem como eu, Princesa de mim, como todos os dias contemplo a visão evangélica da morte. Nestes últimos tempos, quiçá com mais forte pensarsentir, já que vou acompanhando a última travessia de tantos amigos que partem. Para tua e minha reflexão, ocorrem-me alguns trechos de uma entrevista de Emmanuel Levinas a Christian Chabanis (Le Philosophe et la Mort: la mort, un terme ou un commencement? - Fayard, Paris, 1982) que traduzo:

 

   A morte é o mais desconhecido dos desconhecidos. É mesmo mais desconhecida do que qualquer desconhecido. Parece-me - sejam quais forem as posteriores reações de outros filósofos e do próprio público - que a morte é, antes do mais, o nada do saber. Não estou a dizer que ela nada é, pois que ela também é a plenitude da questão. Mas, antes de mais, ela é não se sabe...

 

   ... para nós que assistimos à morte de outro homem, nunca saberemos o que ela significa para o próprio morto. Nem sequer sabemos se será legítima a fórmula: para o próprio morto. Mas para o sobrevivo, há na morte de outrem o seu desaparecimento, e a extrema solidão desse desaparecimento. Penso que o Humano consiste precisamente em abrir-se à morte do outro, em preocupar-se com a morte dele. O que acabo de dizer pode parecer pensamento piedoso, mas estou persuadido de que, acerca da morte do meu próximo se manifesta aquilo a que chamava a humanidade do homem. 

 

   Para terminar esta carta com um toque propositado de focalização sobre realidades circunstantes, num mundo em que a cultura reinante tudo vai apagando para dar espaço a fantasias e sonhos de apropriação, riqueza individual, dominação e conquista, quero só lembrar-te, Princesa de mim, a ação, cada vez mais cartelizada, de grupos económicos e financeiros que sustentam o surto comercial e lucrativo das novas esperanças, bem como o papel que desempenham, necessariamente, no agravamento das desigualdades sociais : a morte, ou a sua fatalidade, já não iguala ninguém, antes se vai tornando em mais um sinal contrário à condenação do rico que Abraão desiludiu no sonho em que lhe pedia autorizá-lo a avisar e prevenir os seus próximos sobre que tratamento deveriam dar aos pobres... Mas deixo le dernier mot a Hélène Merle-Béral:

 

    O futuro é cada vez mais inimaginável e imprevisível, com potencialidades infinitas. Para o homem deste dealbar do século XXI, é desmesurada a alternativa do pior e do melhor. Sucedem-se as imagens, sobrepõem-se, contradizem-se.

 

   Bem real é a ameaça do apocalipse, da destruição do nosso planeta, de que, há décadas, nos vão avisando os ecologistas, tal como a do desmoronamento da nossa civilização socio-industrial, que predizem os adeptos dessa nova ciência que é a colapsologia.

 

   Nos nossos piores fantasmas surge sempre, incontornável, o espectro de um corpo virtual, com um cérebro reduzido a dados numéricos não controlados, o homem tornado máquina (e espera-se que esta sempre possa desligar-se...).

 

   Mas o triunfo do humano está ao nosso alcance: venceu a velhice e a morte, graças aos fabulosos progressos das biotecnologias que continua a controlar. Soube preservar os sentimentos, o desejo, o amor, o maravilhamento, a liberdade de escolha. Pode atacar novos desafios e progredir na sua própria aventura.

 

    É agora que tudo está em jogo.

 

   Pessoalmente, também gosto de ser otimista. Por isso pensossinto e faço votos por que as novas tecnologias, para lá de nos aperfeiçoarem conhecimentos e ações, sejam cada vez mais expostas à reflexão e consciência do inestimável bem que é o comum, com solidariedade e justiça. E com humildade, muita humildade, também, pois esta é a atitude fundamental para enfrentarmos o absurdo. Apocalipse, para mim, continua a ter o seu significado etimológico de revelação, descoberta. Nunca de cataclismo, de destruição do que também somos feitos.

 

 Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

HERCULANO: SUGESTÕES PARA UMA COMEMORAÇÃO HISTÓRICA

 

Uma intervenção didática faz-me novamente aludir à evocação do Auto assinalado e descrito por Alexandre Herculano (1810-1877) nas “Lendas e Narrativas”, realizado em 1401 no Mosteiro da Batalha para sagração do próprio edifício, hoje monumento histórico que abarca para lá da própria edificação.

 

Estava-se efetivamente a um século da inovação vicentina, mas é bem certo que o espetáculo teatral já existia entre nós. E nesse sentido, vale a pena recordar a descrição de Herculano, e o rigor que a mesma envolve.

 

O texto surge pois nas “Lendas e Narrativas” e tipifica uma abordagem de espaços e espetáculos que efetivamente documenta as origens pré-vicentinas do teatro português.

 

E então recordemos o que escreveu Herculano:

 

“Pela mesma porta da sacristia saíram logo as primeiras figuras do auto, as quais, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso pelas pranchas de que fizemos menção.

 

Estas primeiras figuras eram seis, formando uma espécie de prólogo do auto. Três vinham adiante representando a Fé, a Esperança e a Caridade; após elas vinham a Idolatria, o Diabo e a Soberba; todas com as suas insígnias mui expressivas e a ponto; mas o que enleava os olhos da grande multidão de espetadores era o Diabo, vestido de pele de cabra, com um rabo que lhe arrastava pelo tablado e seu forcado na mão mui vistoso e bem posto”...

 

E prossegue a descrição do teatro-espetáculo medieval, com referências muito concretas aos textos, à marcação, e, de forma implícita, à própria expressão de espetáculo em si. Isto, não obstante Herculano afirmar em 1837, na revista “Panorama” que não havia nenhum vestígio sensível e documentado do espetáculo “primitivo” em Portugal:


“Em Portugal é provável começassem as representações cénicas pelo mesmo tempo em que principiaram em Espanha: mas nenhum vestígio resta deste teatro primitivo”...

 

E no entanto, nas “Lendas e Narrativas”, Herculano transcreve cenas e falas de um Auto realizado em 1401 para assinalar a sagração do Mosteiro da Batalha. É rigorosamente um século antes do vicentino “Auto da Visitação”, e no entanto a descrição cénica e a transcrição documentam expressões de verdadeiro teatro.

 

 Já vimos acima um extrato. Mas refira-se agora a fala de Baltazar perante o Presépio:

 

“Santo filho de/Divinal!/ Salvador da triste raça/humana./ Que desceste lá do assento/ Celestial/ Vós da glória imperador/ Eternal/Aceitai este ofertório/Não real,/Si. /É quanto posso:/ Não há al”...
Exemplo flagrante de texto e de espetáculo medieval!.

 

E pode-se acrescentar que Herculano não primou pela vaga e dispersa dramaturgia que escreveu.

 

Foram apenas três textos: “Tinteiro Não é Caçarola” (1938) é uma comédia “imitada” do teatro francês da época. “O Fronteiro de África ou Três Noites Aziagas” (1839) é mais sólido na sua evocação histórica, mas também não merece hoje grande destaque.  E “Os Infantes de Ceuta” (1844) constitui um mero libreto para comédia musicada.

 

Nada disto se compara com a obra geral de Alexandre Herculano!...

DUARTE IVO CRUZ

 

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

39. DEMOCRÁTICO E IGUALITÁRIO

 

O nascimento é democrático. 
A morte é democrática.
O sofrimento e o sentimento de culpa são democráticos. 
A alegria e a tristeza são democráticas.
A tristeza, a alegria, o sentimento de culpa, o sofrimento, a morte e o nascimento são democráticos e igualitários em todos os seres humanos.   
Assim como a dor, a angústia, o comer e o beber.   
Fazem parte da vida e natureza humana.   
São inerentes e universais a todo o ser humano. 
São da mesma natureza em todos os seres humanos, em qualquer tempo e lugar.
Embora não queiramos pensar na dor, no sofrimento, no sentimento de culpa.
Nem na morte, que deitamos para debaixo do chão ou do tapete.
São etapas da vida de todos nós. 
Queiramos ou não. 
Incontestáveis, imutáveis e irrefutáveis.   
Comuns e universais a toda a pessoa.   
Democráticos e igualitários.  

 

21.02.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício 

CRÓNICA DA CULTURA

 

Era a primeira quarta-feira do mês e sempre neste dia do mês, vestia o seu melhor fato, o azul de fina risca branca, e punha gravata. Um cachecol dava o toque por cima do sobretudo invernoso e gasto como a restante roupa. Usava chapéu, sempre. A mulher também se preparava para sair com ele, e cuidava-se vestindo o seu vestido de malha cinzento, vestido que tanto dava para verão como para inverno, neste último caso, desde que o colocasse por baixo do casaco tingido de preto. Elegantemente, um lenço arroxeado era atado ao pescoço com um nó suave que fazia uma espécie de gola alta ao vestido.

 

Antes de saírem de casa olhavam-se um pouco, e os olhos transmitiam um ao outro, o quanto sentiam a injustiça de viverem com dificuldades financeiras depois de tanto terem trabalhado, e, sentiam que não tinham nascido para aquilo, se é que se nasce para o que se é? mas, a verdade é que o tempo de fugir, escapara-se-lhes. De resto, fugir para onde? Fugir especificamente do quê? Tinham-se habituado a suportar as contrariedades da vida, implacáveis a eventuais ambições, e ainda que com muita zanga interior, tentavam viver espelhados naquele anónimo quotidiano.

 

E beijavam-se antes de sair de casa! Beijavam-se num célere e importantíssimo beijo, na necessidade absoluta de registar o imutável, a clarificação do claro, a culpa inexplicável e também a necessidade de se concordarem sempre com ternura nas roupas que usavam.

 

Na rua, davam as mãos um ao outro, enquanto se transmitiam mensagens curtas de cautela com os escorregadios passeios, com os buracos ou com a proximidade dos carros ou ainda com algum charco, se acaso chovesse. Ele tinha sido operado aos olhos há pouco tempo, como manda a idade, dissera o médico. Ela, como mulher, tinha dificuldade em acreditar em coisas simples e por isso segurava-lhe a mão com uma força redobrada, atendendo ainda à falta de vista do marido. Ele sorria-lhe de soslaio, dizendo, vá não apertes tanto que partes a tua mão e depois nós?

 

Depois? Depois eu amo-te. E não eram mais do que estas palavras o que procurava dizer-lhe. E eu a ti: ouvia ela soando-lhe a aventura calma.

 

Sabias que neste jardim os pássaros andam em cima dos cotos? De facto, reparo agora, disse-lhe incrédula! Porquê? Não sei, penso que talvez apanhem choques nestes fios elétricos e se queimem, disse apontando os fios baixos. Depois, por sobrevivência lá começam a debicar o chão na procura de alimento, ou a petiscar algum pão que lhe trazem, e aos poucos andam a saltitar nos cotos.

 

Entraram na farmácia. A farmacêutica elogiava-lhes sempre o aspeto quando os via chegar à primeira quarta-feira do mês, não obstante nada de verdade englobasse o elogio que não fosse a vontade de transmitir carinho e força. Perguntava-lhes se vinham buscar os remédinhos e como passa dos olhos? Melhor? E a senhora?, essas artrites maldosas ainda queimam muito?

 

Olhe senhora doutora, respondendo pelos dois, digo-lhe que o meu marido está melhor dos olhos, contudo diz que ainda tem dificuldade em ver, e por isso, imagina! Imagina os barcos a fazerem-se ao mar e lá vamos ambos dentro. E eu. Eu?, eu estou bem. Vi há pouco uns passarinhos que andam em cima dos cotos. Perderam as patinhas, sem culpa alguma. E lá andam…se aquilo é viver…é muito triste…mas não podem fazer nada.

 

De retorno a casa o caminho parecia-lhes sempre mais longo. Na sala, começavam a tirar os casacos quando ele lhe perguntou se ela iria com ele, se ele decidisse hibernar como um bicho. Claro! E bem sei ao que te referes. Acordávamos apenas quando estivéssemos perto daquela coisa e daí partíamos de vez, sossegados, não é?, e não te esquecesses tu de me dar a mão. Vá anda, faço-te um chá e uma torrada. Põe Verdi, não faz mal que o disco esteja riscado, a nossa idade limpa-o.

 

Trouxeste os remédios?

 

Perguntas bem! Esqueci-me.

 

Teresa Bracinha Vieira

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