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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Os Jotas festejam este ano dez de casados. Assim, João e Joana, felizes autores de três descendentes diretos, todos varões, vão passar umas férias de mel no Japão. Pediram-me umas sugestões de itinerários e estadias (o João, em solteiro, já passara uma temporadazinha em nossa casa, em Tokyo), procuraram outras também, e lá traçaram programa e percurso nipónico. Faço votos de boa viagem e feliz encantamento por uma terra que julgo conhecer tão bem quanto me foi possível e que pacificamente amo.

 

   Entretanto, dizem-me que Kamakura, cidade antiga e de muitos templos será uma das suas etapas. Curiosamente, na semana passada, os dois livros que me ajudaram a mobilar umas horas de insónia tratavam ambos de cozinha e gastronomia japonesa: Sandwich wa Ginza de, da escritora Yoko Hiramatsu (versão francesa pelas Éditions Picquier em 2019: Un sandwich à Ginza) e Kodoku no Gourmet, do mangaka Jiro Taniguchi (versão francesa pela Casterman em 2016: Les Rêveries d´un gourmet solitaire). Em japonês, kodoku significa solidão, isolamento, e Taniguchi, com guião de Masayuki Kusumi, desenhou dois livros sobre um petisqueiro abstémio que gosta de, solitário, ir experimentando a gastronomia de vários restaurantes de diversas cozinhas. Penso que, em português, um título que diria bem o conteúdo da obra seria "Deambulações e Devaneios dum Petisqueiro Solitário". Ou talvez devesse antes dizer Solteiro, em vez de Solitário, lembrado duma sonora gargalhada do Avô do Jota, o embaixador João de Deus Bataglia Ramos, há uns bons sessenta anos, em plena baixa lisboeta, quando, de passeio com ele e o filho mais velho, outro João de Deus, tio e padrinho deste Jota de que te falo, e meu querido amigo, larguei uma evidência que me houvera ocorrido: "De repente, percebi que ser solteiro quer dizer andar à solta!" Ao escrever-te esta carta, recordo-me dessa referência, creio que sem prejuízo das razões que seguidamente explano, e a pensar sugerir aos Jotas um certo almoço em Kamakura.

 

   O templo de Komyo (o Komyo-ji) é budista, foi fundado no século XIII por um mestre da seita ou escola de Jodo-shu, ou da "Terra Pura", creio eu ; ganhou fama, ultimamente, pelas refeições vegetarianas que serve a visitantes turistas. A Yoko Hiramatsu lembra-nos que shoguns antigos dedicaram este templo ao estudo, mas que, hoje em dia, é um jovem cozinheiro, Takashi Ueda, do restaurante Miyokawa, conhecido em Kamakura, o autor e diretor das ementas respeitadoras das regras dietéticas e culinárias budistas que são servidas no templo. Apesar da sua juventude, o chefe Ueda é um mestre na preparação do caldo budista, arte básica daquela cozinha. Diz ele que manda vir de Hokaido, no norte, as algas kombu, e do Kyushu, no sul, os cogumelos secos shiitaké. "Para o caldo, utilizo meia centena de algas e uns noventa cogumelos. Na cozinha budista, é costume preparar-se um caldo gostoso e rico que sirva depois para uma série de pratos, desde sopas a guisados". [Sabes bem, Princesa de mim, porque já provaste, que também eu me entretenho, por vezes, a fazer uns caldos de cogumelos variados e dentes de alho, a que junto folhas de espinafre ou agriões, e um fio de azeite, para uma abençoada sopa!]

 

   A Yoko descreve-nos a "Ementa do Exegeta" do chefe Ueda, que ela provou, para saudar a Primavera, em fins de fevereiro. Traduzo:

 

      Prato liso: feijões pretos, confeito de legumes da horta do Komyo-ji, gengibre "myoga" com vinagre doce, favas "à jade".

 

      Prato fundo: pele de tofu, taro, beringela descascada, algas hijiki com massa de glúten, ervilhas.
      Prato liso: rolo de pele de tofu fresco com pepinos e acompanhamento, flores de wasabi.
      Prato liso: tempuras budistas (angélica do Japão, beringela, abóbora menina).
      Taça: feijão verde em caldo me "miso" e sésamo.
      Tacinha: tofu com sésamo (wasabi e molho de soja perfumado).
      Tijela de arroz com legumes.
      Pires: três legumes em salmoura.
      Tijela de sopa de batata doce (batata doce, "daikon", cenoura, lâminas de tofu frito, bardana, alho porro).

 

   A escolha dos legumes e flores presentes obedece ao propósito de configurar a ementa à celebração do advento da Primavera, que os filhos do Império do Sol Nascente iniciam na segunda metade de fevereiro. Assim, também a decoração dos pratos e taças em que tudo é servido se inspira de imagens e símbolos da estação em que a natureza parece renascer. Este princípio aplica-se também nos restaurantes e refeitórios que não fazem cozinha budista nem sequer vegetariana.

 

   A oração antes da refeição vem escrita no invólucro dos pauzinhos para comer, e reza assim: 

 

      Recebemos este alimento
      No respeito dos benefícios da natureza
      E com gratidão pelo trabalho que foi feito.
      Após dez encantações
      Comecemos o repasto.

 

   A ação de graças está sempre presente nas refeições japonesas, faz mesmo parte essencial da devoção xintó-budista à natureza e ao mundo todo. O nosso "bom proveito" ou " bom apetite", pronunciado no início de qualquer refeição partilhada, diz-se "itàdàkimás!" em japonês, isto é, "demos graças!"

 

   Acabada a mesma, os convivas, de mãos postas para orar - e, nos mosteiros budistas, a convite de um monge assistente, que apenas aparece antes e depois do ágape - recitam esta reza:

 

      Terminada a nossa refeição, com o espírito e o corpo satisfeitos
      Retomamos as nossas atividades
      E comprometemo-nos a honrar este dom.
      Recitemos dez encantações
      Para agradecer este repasto.

 

   Não concluas, Princesa de mim, que ação de graças, respeito pela natureza e pelo trabalho humano, tal como a prestação de honras aos produtos consumidos, são exclusivos do budismo vegetariano mais rigoroso ou de qualquer religião ou filosofia. Na cultura nipónica, o ser humano é indissociável da natureza que o cria e da qual depende. Vou trazer-te uma curiosa ilustração, traduzida do "Sanduíche em Ginza" da Yoko Hiramatsu, que relata a sua experiência de um almoço de tsuki-nabe, em Hira-Sanso, na região de Shiga, a noroeste de Kyoto. São curtos trechos, mas muito elucidativos:

 

   O senhor Matsubara, caçador, diz-me que, «no Inverno, os ursos são três vezes maiores do que no Verão, porque têm de se preparar para passar três meses sem comer nem beber. As bolotas são o seu alimento preferido. Da Primavera a meados do Verão, comem amoras e também se alimentam da seiva dos cedros e carvalhos». O urso é o mensageiro da montanha, o servo da floresta. Eis, sem dúvida, o que confere à sua carne delicadeza e generosidade. A sua gordura imaculadamente branca e luzidia é a banha das bolotas e das árvores...

 

   ... Na manhã seguinte, no coração do Inverno, a estalagem de Hira-Sanso está banhada de uma luz muito terna. Ao longe, os montes estão envoltos em bruma matinal. Na floresta recôndita, os ursos estão certamente adormecidos, todos enrolados. Ontem, o senhor Ito explicou-me a origem do "tsuki-nabe", o "cozido de urso":

 

   «O urso come-se quando neva, antes da eclosão das flores na Primavera. Fui buscar um caracter à trilogia neve, lua, flores - tão cara a poetas e pintores - e escolhi tsuki (lua) para dar nome a este prato».

 

   Ontem, o urso, trazendo consigo a terra de Hira, penetrou-me no corpo. Comer seres vivos é uma maneira dos humanos marcarem o seu respeito pela natureza, de lhe exprimirem gratidão, de acompanhá-la. Senti-o profundamente.

 

   Ando a matutar, Princesa de mim, a divagação, em próximas cartas, por vários temas referentes à gastronomia japonesa, quer de índole religiosa ou filosófica, quer a tradições e superstições populares, quer, ainda, ao calendário e estações do ano, como a estéticas e etiquetas, à literatura e às artes plásticas e decorativas... A arte da mesa é, na verdade, uma festa contínua, um banquete de reunião da cultura nipónica. E como pensei em sugerir aos Jotas dois restaurantes especializados em kaiseki (dois ryotei), apenas lembro que tal estilo de refeição em 12 a 14 pratos os escolhe e dispõe atendendo a diversos tipos de culinária, de modo a contrastar paladares. Já te escrevi sobre isso, e creio que lhe fiz um apontamento para o meu Fomos em Busca do Japão. O primeiro desses ryotei, o Nanzen-ji Hyotei, situa-se em Kyoto Oriental, na zona do templo de Nanzen, quase visita obrigatória. O outro, o Waranji-ya, também em Kyoto, já foi por mim descrito numa das cartas para ti, com uma recordação do grande escritor Junichiro Tanizaki: Os compartimentos particulares do Waranji-ya são salinhas de quatro tatami e meio (+ ou - 7m2) em que o toko-no-ma e o tecto têm manchas escuras, dando uma impressão de escuridão que nem um candeeiro elétrico consegue totalmente eliminar. Mas substituindo o candeeiro por um castiçal, descubro, à luz tremente da chama, que as lacas ganham reflexos profundos e densos como pântanos. Eis um encanto novo que nos deixa compreender como os nossos antepassados, ao descobrirem esse unto a que chamamos laca, se tinham deixado encantar por esse lustro das cores do utensílios, e que tal não fora certamente obra do acaso.

 

   Mas se, sempre em Kyoto, a par ou em vez de uma refeição de luxuoso requinte, os nossos Jotas - ou tu, Princesa - quiserem, antes ou também, descobrir o espírito culinário zen, vegetariano e rigoroso, poderão ir até ao Isuzen, no mosteiro Daitoku-ji, na zona norte da cidade, onde o almoço lhes será servido em teppatsu. As teppatsu são malgas de ferro, iguais às que, em tempos idos, os monges levavam para pedir esmola.

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira