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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Vai curta a carta, começa apenas a cumprir a promessa, que te fiz, de falar da gastronomia na cultura japonesa. Hoje, vamos contemplar um aspeto da circunstância estética do gosto de comer, prazer que começa, precisamente, por um olhar. E regresso ao Inei Raisan (Elogio da Sombra) do "nobel" Junichiro Tanizaki, livro que também recomenda a utilização de lacas como continentes de sopas servidas. Sem propriamente seguir a ordem do texto do romancista japonês, irei traduzindo trechos do que ele nos quer dizer:

 

   Já houve quem dissesse que a cozinha japonesa não é coisa que se coma, mas coisa que se contempla. Assim sendo, vejo-me tentado a dizer melhor ainda: não só que se contempla, mas que se medita! Tal é, com efeito, o resultado da silenciosa harmonia entre o tremeluzir das velas na sombra e o reflexo das lacas. Outrora, Mestre Soseki [Natsume Soseki - 1867-1916 - foi um dos maiores escritores da era Meiji] celebrava no seu romance Kusa-makura (1906) as cores dos yokan [pasta gelatinosa da feijão encarnado e agar-agar, açucarada e com sabores a frutos vários] e, de certo modo, penso que tais cores também nos podem levar à meditação. A sua superfície tremida, meio translúcida como um jade, a impressão que dão de absorver até na própria massa a luz do sol, de envolverem uma claridade indecisa como um sonho, esse profundo acordo de tintas, essa complexidade, nada disso poderemos encontrar em qualquer bolo ocidental. Compará-los a qualquer creme seria superficial e ingénuo.

 

   Vamos então dispor, num prato de laca para bolos, essa harmonia colorida que um yokan é, colocai-o numa sombra que torne difícil discernir-lhe a cor, e ele ficará ainda mais propício à contemplação, E quando, finalmente, levarmos à boca essa matéria fresca e lisa, sentiremos a derreter-se na ponta da nossa língua como que uma parcela da obscuridade da sala, solidificada numa massa doce, e descobriremos nesse yokan que, afinal, até é um tanto insípido, uma estranha densidade que lhe realça o gosto.

 

   O caldo de miso encarnado, por exemplo, que tomamos todas as manhãs: basta olharmos-lhe para a cor para facilmente compreendermos que tenha sido inventado nas sombrias casas de outrora. Aconteceu-me certo dia que, convidado para um chá, me tivessem servido, a ferver, sopa de miso, cor de tijolo, da tal que já tantas vezes comera sem lhe prestar muita atenção; desta feita, porém, ao vê-la à luz difusa das candeias, no fundo de uma tijela da laca preta, descobri-lhe uma verdadeira profundidade e um ar mais apetitoso.

 

   É assim também com o shoyu, sobretudo quando nos servimos dele, como se faz na região de Kyoto, para temperar peixe cru, legumes confeitos ou cozidos, daquela variedade espessa que se chama tamari. Tal molho oleoso e luzidio tem melhor aspeto se visto na sombra, em perfeito acordo com a obscuridade. Por outro lado, o miso branco, o tofu, o kamaboko, os peixes brancos e todos os alimentos brancos não podem ser valorizados se se iluminar o ambiente. E, desde logo, o arroz, cujo aspeto, quando é apresentado numa caixa de laca negra e brilhante, disposta num canto obscuro, satisfaz o nosso sentido estético e logo nos abre o apetite. Esse arroz imaculado, cozido no ponto, acumulado numa caixa preta, no instante em que se levanta a tampa desta, emite um vapor quente, e cada grão brilha como pérola. Não há japonês algum que, ao vê-lo, não sinta a sua insubstituível generosidade. Aqui chegados, damo-nos conta de que a nossa cozinha se acorda com a sombra, e de que entre ela e a obscuridade existem laços indestrutíveis.

 

   Não vou aborrecer-te, Princesa de mim, com explicações pormenorizadas do que é o shoyu (molho ou tempero de soja), o kamaboko (pasta de peixe cozido a vapor), e quejandos. Desculpar-me-ás também da exiguidade de texto escrito por mim mesmo, mas a tradução deu-me muito trabalho... E penseissenti que soaria mal ser eu próprio a falar com tanta convicção da cozinha do Japão. Lembro-me sempre deste e de outros escritos quando como japonês, pois ao sabor de uma cozinha tão diferente da nossa eles acrescentam outra dimensão, espiritual talvez, num jeito bem diferente do consumismo reinante.

  
Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira