CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM
Minha Princesa de mim:
O prémio literário mais prestigiado no Japão é o Akutagawa, que, além de ser distinção de talentos das letras nipónicas, é, pelo seu próprio nome, uma memória e uma homenagem ao grande escritor da era Taisho que foi Ryunosuke Akutagawa, morto aos 37 anos de idade, em 1926. Nas duas noites passadas o meu gosto da leitura deliciou-se com alguns dos seus contos (ou novelas breves), entre eles o saborosíssimo Nezumi-Kozo, história de um Robin Hood japonês ou, melhor, do desmascaramento de uma personagem pela sua própria ironia. Seguindo a narrativa feita pelo próprio, somos transportados para um teatro de Kabuki, onde assistimos ao desenrolar estoirar da farsa que o romancista seu autor apresenta assim (traduzo):
Tradicionalmente, no Japão, Nezumi-Kozo (1795-1802) é apresentado como um ladrão cavalheiresco que tirou aos ricos para dar aos pobres, e bem pode ser chamado Robim dos Bosques japonês. É geralmente aceite que ele era um mestre de «ninjútsu», a arte de nos tornarmos invisíveis, e que levava um saco de «nezumi» (ratos) quando assaltava casas de «daimyo» (senhores feudais), e os soltava para enganar os dorminhocos que acordassem, fazendo-lhes crer que o barulho era feito pelos ratos. Em japonês, «kozo» quer dizer «aprendiz» ou «ouriço». [Pessoalmente, pensossinto-me melhor traduzindo por diabrete... Digo isto porque, em inglês, «urchin», referido a um garoto, significa travesso...]
Nos anos que se seguiram à revolução de 1868, que derrubou o shogunato e restaurou o poder executivo do imperador, as peças de kabuki que tinham Nezumi Kozo por protagonista e herói ganharam imensa popularidade entre o povo japonês, acabado de se emancipar do feudalismo que, durante séculos, impusera uma rígida hierarquia de quatro castas, assim ordenadas do topo para baixo: militares, agricultores, industriais e comerciantes. Por isso, a gente do povo se deliciava e divertia com representações que diminuíam ou gozavam os antigos senhores feudais, seus governantes, e os respetivos sequazes que, de todas as maneiras possíveis, os tinham sujeitado a vexames e humilhações, hoje dificilmente imagináveis.
A história que aqui apresento é um episódio, em jeito de farsa, do popular e tradicional herói num palco de kabuki.
E agora, Princesa de mim, cabe-me resumir para ti a farsa contada por Ryunosuke Akutagawa. A história começa em Edo (a atual Tokyo no shogunato Tokugawa), numa taberna em que dois velhos amigos vão saboreando conversa e saké. Um deles, com ar imponente e aspeto de forte, vai evasivamente falando da sua ausência de três anos, aliás menosprezando a fama de justiceiro e carrasco de ladrões que o outro encomiasticamente lhe atribui, tal como minimizando o facto da própria fama ser jubilosamente festejada pelo povo, feliz com o seu regresso. Pessoalmente, pensa que noutros tempos as pessoas eram melhores, mais interessantes, e até havia ladrões com classe, como Nezumi Kozo. Falando neste, confessa que a lembrança dele lhe dá riso, por causa de algo que lhe aconteceu, há precisamente três anos, quando deixara Edo.
Encontrara na estrada um comerciante simpático que, por seguir para o mesmo destino, se fizera seu companheiro de jornada. Assim, ambos pernoitaram na mesma estalagem, depois de jantarem e beberem juntos. Pesadamente adormecido com ajuda do éter ingurgitado, o nosso homem, pela madrugada, ainda sentiu que uma mão estranha lhe vagueava pelo leito e encontrava a bolsa presa ao cinto apertado, tentando furtá-la... Num "Ai, Buda!" (o "Ai Jesus!" local), prende tal mão torce-lhe o braço, atira ao chão o candidato a ladrão. O ruído da peleja acordou outros hóspedes, trouxeram luzes e, para surpresa de todos, reconheceu-se o homem dominado no chão: era o horado comerciante, companheiro de viagem. Logo ad hoc se reuniu um tribunal popular, perante o qual o frustrado gatuno se defendeu, dizendo que procedera com a louvável intenção de tirar a um rico para dar a muitos pobres. Instado a ser mais claro, acaba por confessar que, na verdade, é o mui famoso Nezumi Kozo. Espera, pois, que a popularidade de um herói nacional o salve da condenação. Só que o "nosso imponente fortalhaço" lhe troca as voltas, interrogando-o sobre a pretendida identidade, enquanto o vai avisando de que, se fosse ele mesmo juiz, não perderia a oportunidade de deter, julgar e condenar tão manifesto e descarado ladrão: ao crime agora presente, juntaria com gosto os muitos outros que a fama do outro por aí tem proclamado. Acossado, desorientado, aflito, o desgraçado comerciante lá se retrata e retira, sem cheta, debaixo de um coro de gargalhadas...
Voltando à conversa dos dois velhos amigos naquela taberna de Edo, depois de contada a divertida ocorrência: "Afinal, pergunta o ouvinte ao narrador, ele não era mesmo o Nezumi, nem sabia quem este era?" - "Acho que não." - "Tens a certeza?" - "Tenho." - "Porquê?". - "Porque o Nezumi Kozo sou eu..."
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira