CRÓNICA DA CULTURA
Era a primeira quarta-feira do mês e sempre neste dia do mês, vestia o seu melhor fato, o azul de fina risca branca, e punha gravata. Um cachecol dava o toque por cima do sobretudo invernoso e gasto como a restante roupa. Usava chapéu, sempre. A mulher também se preparava para sair com ele, e cuidava-se vestindo o seu vestido de malha cinzento, vestido que tanto dava para verão como para inverno, neste último caso, desde que o colocasse por baixo do casaco tingido de preto. Elegantemente, um lenço arroxeado era atado ao pescoço com um nó suave que fazia uma espécie de gola alta ao vestido.
Antes de saírem de casa olhavam-se um pouco, e os olhos transmitiam um ao outro, o quanto sentiam a injustiça de viverem com dificuldades financeiras depois de tanto terem trabalhado, e, sentiam que não tinham nascido para aquilo, se é que se nasce para o que se é? mas, a verdade é que o tempo de fugir, escapara-se-lhes. De resto, fugir para onde? Fugir especificamente do quê? Tinham-se habituado a suportar as contrariedades da vida, implacáveis a eventuais ambições, e ainda que com muita zanga interior, tentavam viver espelhados naquele anónimo quotidiano.
E beijavam-se antes de sair de casa! Beijavam-se num célere e importantíssimo beijo, na necessidade absoluta de registar o imutável, a clarificação do claro, a culpa inexplicável e também a necessidade de se concordarem sempre com ternura nas roupas que usavam.
Na rua, davam as mãos um ao outro, enquanto se transmitiam mensagens curtas de cautela com os escorregadios passeios, com os buracos ou com a proximidade dos carros ou ainda com algum charco, se acaso chovesse. Ele tinha sido operado aos olhos há pouco tempo, como manda a idade, dissera o médico. Ela, como mulher, tinha dificuldade em acreditar em coisas simples e por isso segurava-lhe a mão com uma força redobrada, atendendo ainda à falta de vista do marido. Ele sorria-lhe de soslaio, dizendo, vá não apertes tanto que partes a tua mão e depois nós?
Depois? Depois eu amo-te. E não eram mais do que estas palavras o que procurava dizer-lhe. E eu a ti: ouvia ela soando-lhe a aventura calma.
Sabias que neste jardim os pássaros andam em cima dos cotos? De facto, reparo agora, disse-lhe incrédula! Porquê? Não sei, penso que talvez apanhem choques nestes fios elétricos e se queimem, disse apontando os fios baixos. Depois, por sobrevivência lá começam a debicar o chão na procura de alimento, ou a petiscar algum pão que lhe trazem, e aos poucos andam a saltitar nos cotos.
Entraram na farmácia. A farmacêutica elogiava-lhes sempre o aspeto quando os via chegar à primeira quarta-feira do mês, não obstante nada de verdade englobasse o elogio que não fosse a vontade de transmitir carinho e força. Perguntava-lhes se vinham buscar os remédinhos e como passa dos olhos? Melhor? E a senhora?, essas artrites maldosas ainda queimam muito?
Olhe senhora doutora, respondendo pelos dois, digo-lhe que o meu marido está melhor dos olhos, contudo diz que ainda tem dificuldade em ver, e por isso, imagina! Imagina os barcos a fazerem-se ao mar e lá vamos ambos dentro. E eu. Eu?, eu estou bem. Vi há pouco uns passarinhos que andam em cima dos cotos. Perderam as patinhas, sem culpa alguma. E lá andam…se aquilo é viver…é muito triste…mas não podem fazer nada.
De retorno a casa o caminho parecia-lhes sempre mais longo. Na sala, começavam a tirar os casacos quando ele lhe perguntou se ela iria com ele, se ele decidisse hibernar como um bicho. Claro! E bem sei ao que te referes. Acordávamos apenas quando estivéssemos perto daquela coisa e daí partíamos de vez, sossegados, não é?, e não te esquecesses tu de me dar a mão. Vá anda, faço-te um chá e uma torrada. Põe Verdi, não faz mal que o disco esteja riscado, a nossa idade limpa-o.
Trouxeste os remédios?
Perguntas bem! Esqueci-me.
Teresa Bracinha Vieira