CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM
Minha Princesa de mim:
O breve epílogo do livro L'Immortalité biologique (Odile Jacob, Paris, janeiro de 2020) da médica hematologista, investigadora e professora universitária Hélène Merle-Béral, em tradução minha, reza assim:
Qual quer livro sobre a imortalidade fica sempre inacabado. Alguns dirão que a vivem no virtual da fé, mas tal imortalidade apenas é outra forma da esperança. Então, como poderemos aproximar-nos dela? Talvez ousasse dizer que tive a impressão de a ter observado quase todos os dias, num período da minha vida em que, debruçada sobre o microscópio, analisava células cancerosas de pacientes feridos de leucemia. Tinha debaixo dos olhos uma proliferação exuberante de células imortais, e tinha o poder de as propagar em cultura, para manter a sua imortalidade fora do corpo humano, de as fazer viajar, parcelas de eternidade num tubo de ensaio, para que servissem, sendo modelos privilegiados, objetivos de investigação do ciclo celular, da apoptose, da sobrevivência ... Esse fascínio por formas de vida imortal levou-me a pesquisar, ao microscópio como na literatura científica, as origens e potencialidades da imortalidade biológica. Sem nunca ter chegado a descobrir-lhe todos os mecanismos, tal investigação tem um ponto em comum com o seu objeto: é infinita...
Esta obra que, na sua edição original, acima referida, tem apenas cerca de 170 páginas, está escrita de forma escorreita, assim facilitando e estimulando a sua leitura, muito embora pressuponha, da parte do leitor, alguma informação pertinente e noções básicas acerca de problemáticas que se estendem de doutrinas, crenças e mitos sobre a questão da humanidade face à morte até às tentativas históricas e contemporâneas de contrariar o envelhecimento e vencer a morte, para não se mencionar algum elementar conhecimento de variadas e raras formas de vida vegetal e animal ou, ainda, de análises e experimentações em busca, não já do "humano aumentado ou alongado", mas do "pós-humano e do transumano". Aqui surgem os ensaios de manipulação genética e clonagem, de gestão algorítmica da beleza e da saúde, de numerização do cérebro, de inteligência artificial...
Afinal, este universo novo de investigação não será, enquanto atitude de seres humanos, muito diferente da primitiva epopeia de Gilgamesh, nem de tantas outras fezadas na descoberta da imortalidade, incluindo a longa história da alquimia. Como se essa indelével ânsia de encontrar outra dimensão da vida humana fosse também o motivo do furto e consumo do fruto da árvore genética do conhecimento, da queda de Ícaro ou da falta de Sísifo que lhe valeu aquele castigo que Homero assim regista na Odisseia (tradução de Frederico Lourenço):
Vi Sísifo a sofrer grandes tormentos,
tentando levantar cm as mãos uma pedra monstruosa.
Esforçando-se para a empurrar com as mãos e os pés,
conseguia levá-la até ao cume do monte, mas quando ia
a chegar ao cume mais alto, o peso fazia-a regredir,
e rolava para a planície a pedra sem vergonha.
Ele esforçava-se de novo para a empurrar, dos seus membros
escorria o suor, e poeira da sua cabeça se elevava.
Esta visão de Sísifo no Hades é, afinal, a do inferno que o absurdo é, ao ponto de nele caber o próprio esforço do ser humano. A dado passo do seu Le Mythe de Sisyphe, Albert Camus escreve - e respigo estas citações para que nos ajudem à reflexão adveniente desta carta - que os homens também segregam desumanidade... E diz mais:
Chego enfim à morte e ao sentimento que dela temos. Sobre tal ponto já tudo foi dito e parece-me decente evitarmos o patético. Todavia, nunca nos espantaremos bastante com o facto de toda a gente viver "como se ninguém soubesse". É que, na realidade não há experiência da morte. Em sentido próprio só se experimenta o que foi vivido e tornado consciente. No caso presente, só é possível falar-se da experiência da morte dos outros.
São inúmeros os exemplos da tentação de longevidade, e de imortalidade, na literatura universal, desde o Graal e lendas de elixires da juventude ao Fausto de Goethe. O que a presente corrente de pensamento transumanista reflete vai, todavia, para além de tudo isso: From chance to choice (da contingência à opção), eis o lema de quem pensa que, graças aos progressos das novas biotecnologias, a espécie humana deveria extrair-se do determinismo da sua programação genética para realizar façanhas fabulosas em matéria de inteligência e longevidade, ultrapassar os seus limites biológicos e sublimar as suas capacidades intelectuais e fisiológicas... ...O ser humano deverá libertar-se da dependência da injustiça da natureza para decidir do seu futuro e, permanentemente conectado a um computador, deverá libertar-se da servidão do seu corpo, graças à inteligência artificial...
Tal melhoramento do ser humano vai ultrapassando as fronteiras naturais - dizem os seus prosélitos - graças à convergência das biotecnologias NBIC, isto é, à sinergia entre as nanotecnologias (N), a biologia (B), a informática (I) e as ciências cognitivas (C). Tal conceito foi articulado pela primeira vez em 2002, nos EUA, num relatório da National Science Foundation que desenha um leque das principais tecnologias referidas : as nano, reunindo técnicas a nível atómico e molecular ; as bio, incluindo a engenharia genética, com anúncio de fabricação dos primeiros clones humanos ; a informática, que comporta eletrónica, telecomunicações, robótica e inteligência artificial ; e, finalmente, as cognitivas, cujo último objetivo será a perfeita compreensão do funcionamento do cérebro humano. [Com tua licença, Princesa de mim, abro e logo fecho aqui um parêntese, precisamente para incluir uma interrogação: será que o cérebro humano é tão somente um órgão calculador, computador, amputado dessa misteriosa função que tanto gosto de chamar "pensarsentir"? E será que a presente pretensão a substituir-se a ciência enquanto descoberta ou conhecimento novo, por reorientação da própria natureza das coisas (da rerum natura, como diria o ateu Lucrécio) não é mais pretensiosa do que científica? Evidentemente que, por sermos humanos, somos, como disse Ortega y Gasset, trânsfugas da natureza, e desde sempre nos interrogámos sobre ela. Como sua própria consciência, sobre ela e nós mesmos inquirimos...]
Este último ponto traz-me à memória uma citação que a professora Merle-Béral faz de António Damásio (entre outras, todas elas, salvo erro, respigadas na Estranha Ordem das Coisas, obra de que já em carta te falei): A inteligência artificial pode simular os sentimentos, não pode duplica-los. Os organismos artificiais não têm vida. O espírito humano não é feito de cérebro apenas.
Sabes tão bem como eu, Princesa de mim, como todos os dias contemplo a visão evangélica da morte. Nestes últimos tempos, quiçá com mais forte pensarsentir, já que vou acompanhando a última travessia de tantos amigos que partem. Para tua e minha reflexão, ocorrem-me alguns trechos de uma entrevista de Emmanuel Levinas a Christian Chabanis (Le Philosophe et la Mort: la mort, un terme ou un commencement? - Fayard, Paris, 1982) que traduzo:
A morte é o mais desconhecido dos desconhecidos. É mesmo mais desconhecida do que qualquer desconhecido. Parece-me - sejam quais forem as posteriores reações de outros filósofos e do próprio público - que a morte é, antes do mais, o nada do saber. Não estou a dizer que ela nada é, pois que ela também é a plenitude da questão. Mas, antes de mais, ela é não se sabe...
... para nós que assistimos à morte de outro homem, nunca saberemos o que ela significa para o próprio morto. Nem sequer sabemos se será legítima a fórmula: para o próprio morto. Mas para o sobrevivo, há na morte de outrem o seu desaparecimento, e a extrema solidão desse desaparecimento. Penso que o Humano consiste precisamente em abrir-se à morte do outro, em preocupar-se com a morte dele. O que acabo de dizer pode parecer pensamento piedoso, mas estou persuadido de que, acerca da morte do meu próximo se manifesta aquilo a que chamava a humanidade do homem.
Para terminar esta carta com um toque propositado de focalização sobre realidades circunstantes, num mundo em que a cultura reinante tudo vai apagando para dar espaço a fantasias e sonhos de apropriação, riqueza individual, dominação e conquista, quero só lembrar-te, Princesa de mim, a ação, cada vez mais cartelizada, de grupos económicos e financeiros que sustentam o surto comercial e lucrativo das novas esperanças, bem como o papel que desempenham, necessariamente, no agravamento das desigualdades sociais : a morte, ou a sua fatalidade, já não iguala ninguém, antes se vai tornando em mais um sinal contrário à condenação do rico que Abraão desiludiu no sonho em que lhe pedia autorizá-lo a avisar e prevenir os seus próximos sobre que tratamento deveriam dar aos pobres... Mas deixo le dernier mot a Hélène Merle-Béral:
O futuro é cada vez mais inimaginável e imprevisível, com potencialidades infinitas. Para o homem deste dealbar do século XXI, é desmesurada a alternativa do pior e do melhor. Sucedem-se as imagens, sobrepõem-se, contradizem-se.
Bem real é a ameaça do apocalipse, da destruição do nosso planeta, de que, há décadas, nos vão avisando os ecologistas, tal como a do desmoronamento da nossa civilização socio-industrial, que predizem os adeptos dessa nova ciência que é a colapsologia.
Nos nossos piores fantasmas surge sempre, incontornável, o espectro de um corpo virtual, com um cérebro reduzido a dados numéricos não controlados, o homem tornado máquina (e espera-se que esta sempre possa desligar-se...).
Mas o triunfo do humano está ao nosso alcance: venceu a velhice e a morte, graças aos fabulosos progressos das biotecnologias que continua a controlar. Soube preservar os sentimentos, o desejo, o amor, o maravilhamento, a liberdade de escolha. Pode atacar novos desafios e progredir na sua própria aventura.
É agora que tudo está em jogo.
Pessoalmente, também gosto de ser otimista. Por isso pensossinto e faço votos por que as novas tecnologias, para lá de nos aperfeiçoarem conhecimentos e ações, sejam cada vez mais expostas à reflexão e consciência do inestimável bem que é o comum, com solidariedade e justiça. E com humildade, muita humildade, também, pois esta é a atitude fundamental para enfrentarmos o absurdo. Apocalipse, para mim, continua a ter o seu significado etimológico de revelação, descoberta. Nunca de cataclismo, de destruição do que também somos feitos.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira