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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CADA ROCA COM SEU FUSO…

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ESTRANHO TEMPO...

 

Para comentar o momento de confinamento que vivemos, sob a ameaça do Covid-19, Filomena Molder invoca Pierre Hadot (1922-2010) e o seu livro “Não te esqueças de viver” (Relógio d’Água, 2019), no ponto em que nos apresenta um conjunto de exercícios espirituais, que devem ser lembrados:
(1) Ter atenção ao presente (a coisa mais difícil, num tempo em que a ansiedade e o medo imperam, gerando simplificações e ilusões);
(2) Distanciar-se, inventar um pequeno intervalo entre mim e a minha vida, deixando cair o imediato;
(3) Alargar o ponto de vista, evitar a parcialidade satisfeita;
(4) Imaginar a leveza, isto é, exercitar a esperança. (cf. Público, 29.3.2020).

Mas que significam afinal estes exercícios? Perante esta interrupção, temos de ter consciência que devemos redescobrir o essencial. Num momento avesso à reflexão e à adequada utilização do tempo, há oportunidades novas para distinguir o fundamental e o acessório. Subitamente, percebemos que há muito ruído que nos perturba. Como afirma Walter Osswald: “Fechado o capítulo da pandemia seria irresponsável fazer tábua rasa do sofrimento, dor e prejuízo para retomarmos os velhos hábitos, a anemia social, o individualismo exacerbado, a tentação do domínio total das forças da natureza, o cientismo acrítico”…

 

Eis o que está em causa. Se uma grave crise económica se prenuncia, tal deve-se a termos uma sociedade com pés de barro. Não tirámos as lições certas da crise de 2008. E não compreendemos o que Marina Mazzucato nos afirma no seu livro “O Valor de Tudo – Fazer e Tirar na Economia Global” (Temas e Debates, 2019). “A História mostra que a inovação resulta de um enorme esforço coletivo, não é obra de um pequeno grupo de homens brancos na Califórnia. Há que ter em mente este facto se queremos resolver os grandes problemas mundiais”. Daí a importância das políticas públicas, como catalisadores de energias e da capacidade inovadora da sociedade. Acreditar cegamente no mercado, significa deixarmos que a lógica do ganho fácil prevaleça sobre a criação de valor. Veja-se como os egoísmos emergem, em lugar de se cuidar do desenvolvimento e de uma economia que defenda as pessoas. Quando na União Europeia falta solidariedade, prevalece a lógica fragmentária, cujos efeitos são mais dramáticos no contexto desta pandemia. Como afirmou há pouco Jacques Delors, consciência moral da Europa, se não houver partilha de responsabilidades, a União destrói-se e põe em causa a paz e o desenvolvimento. O Papa Francisco diz-nos que a economia mata…

 

José Gil alerta: “este confinamento não é um lazer. Mesmo que haja quem consiga transformar este tempo em tempo de ócio, coletivamente isso é impossível. O tumulto e a catástrofe que desabam sobre o nosso país e sobre o mundo todos os dias não podem deixar de nos angustiar. No entanto, além do que a transformação da vida quotidiana traz de novo ao indivíduo – que muitas vezes descobre uma vida nova (mas nunca sossegada e livre) – está a formar-se um outro espaço de comunicação entre as pessoas. Trocam-se e-mails, poemas, mensagens mais pessoais e próximas, textos, frases nunca anteriormente possíveis. Isto implica uma ação – que se revela necessária, às vezes, no fechamento em que estamos. Este espaço coletivo de comunicação (que não é um espaço público ou de opinião pública) vai desenvolver-se e, talvez, modificar um pouco as relações entre as pessoas”… (Público, cit.). Mas os filósofos não são detentores da sabedoria universal, não têm respostas, tendo, porém, o dever de ajudar a pensar. Se há dilemas dramáticos postos aos profissionais de saúde, que estão na linha da frente, temos de encontrar espaços de ação para os cidadãos comuns que podem ajudar. Já ficando em casa, podemos romper o ciclo infernal da transmissão do vírus. 

 

Ainda Filomena Molder lembra Hermann Broch a dizer que todo o esforço humano está em transformar o medo da morte em gesto de dar forma à vida… E o povo diz que não devemos morrer de véspera. Importa combater e resistir, e assim podemos vencer a pandemia e prevenimos os piores efeitos da recessão económica anunciada. Somos chamados a combater a ilusão e a mentira. Mas como preservamos a liberdade e a responsabilidade? Lembremo-nos de Montaigne ou de Espinosa, de Pascal ou de Wittgenstein… “A vida é um bem, não é um facto”, dizia Fernando Gil. E à pergunta de Santo Agostinho: - pode o homem ser feliz e ser mortal? - responde Clarice Lispector – “amar a vida mortal, isso é a felicidade”. Eis, por que razão devemos aproveitar este momento para fazermos da cultura e da aprendizagem, do exemplo e da experiência marcas que compreendam a importância da diversidade e da nossa relação com os outros. Precisamos de ter a coragem de dizer a verdade e de a assumir plenamente. Como recusar a ilusão, num tempo de fake news e de limitação da liberdade e da democracia? “Se os erros lógicos forem identificados instantaneamente ou as motivações de quem fala compreendidas graças ao desmontar dos argumentos, torna-se mais fácil uma resposta rápida e eficiente”. – como nos ensina Eugénia Cheng em “A Arte da Lógica num mundo ilógico” (Temas e Debates, 2019). Por isso a educação e o primado da aprendizagem distinguem a civilização da barbárie. Em vez de berrar mais alto ou de dizer que somos estúpidos por discordar de alguém, devemos usar a lógica, pondo as pessoas de sobreaviso quanto às simplificações grotescas… A pandemia deixará lições? A recessão económica revelará a repetição dos erros passados? Como tomamos consciência da destruição do Planeta e do meio ambiente? Como compreender o papel das políticas públicas na mobilização da sociedade e na criação de valor? As incertezas podem ensinar-nos a lidar melhor com os problemas, desde que a vontade e entreajuda ocupem o lugar do egoísmo. Não viveremos, como Jorge Calado perguntava (Expresso, 28.3.20), uma reação da natureza ao desequilíbrio ecológico imposto pela ganância da humanidade?

 

 

A VIDA DOS LIVROS

De 30 de março a 5 de abril de 2020

 

A história do “Jornal do Fundão” no mundo da cultura e da comunicação, graças à vontade de António Paulouro, merece uma referência especial, sobretudo no momento em que sai a lume a edição fac-similada do suplemento “& etc…” – magazine de Artes, Letras e do Espetáculo, que teve como artífice e animador Vítor Silva Tavares (Jornal do Fundão – Canto Redondo).

 

 

 UMA HISTÓRIA INESQUECÍVEL
De 1967 a 1971, com 26 números publicados, teve lugar a publicação de páginas memoráveis, cuja recordação merece a nossa homenagem. E é preciso recordar, antes de tudo, que, pouco antes dessa iniciativa, o “Jornal do Fundão” fora punido pela Censura com a suspensão de 6 longos meses, em virtude da publicação de um texto de Alexandre Pinheiro Torres sobre o Prémio atribuído em 1965 pela Sociedade Portuguesa de Escritores, entretanto extinta, a Luandino Vieira, preso no Tarrafal, pelo seu romance Luuanda. Em 1967, estava-se, assim, no final do consulado de Salazar, e na ressaca dessa severa punição, que envolveu a submissão de textos, fotografias e publicidade do jornal aos serviços de censura de Lisboa. Sob o impulso de José Cardoso Pires, o entusiasmo de António Paulouro e a concretização de Vítor Silva Tavares, o nascimento deste suplemento cultural situou-se no domínio do necessário improvável. E o jornalista costumava recordar a “trepidante adesão do Paulouro”, que “mais parecia uma criança toda virada à travessura do que um circunspecto adulto que somava ser o diretor de um jornal respeitável, sem dúvida o mais vertical e atuante de toda a imprensa dita ‘regional’, para apoucar”. Os riscos eram óbvios, mas o sabor do desafio valeria tudo. Com a inteligência necessária, a aventura começou com os necessários cuidados, não “com neorrealistas suspeitos”, mas com o venerável Professor Hernâni Cidade (“com muita honra”) no número 1, a falar de Raul Brandão. Assim, “não começou logo em velocidade de cruzeiro. Começa só aí ao quarto ou quinto número. Dentro daquela tática do Cardoso Pires que era: ao quarto ou ao quinto…, até para a censura não poder começar a cortar indistintamente porque já podia constituir algum escândalo. Tinha de se aguentar em crescendo, não mostrar logo o jogo”. Afinal, a independência era o que estava em causa – numa corrente que envolvia a contracultura, abrangendo, com saudável pluralismo, as diferenças democráticas. Mais tarde, segundo o próprio testemunho de Silva Tavares viriam os inevitáveis cortes, em que a censura obrigava a recompor tudo, mas com artificiosa colocação pela equipa de marcas subtis nos lugares do texto em falta. E a imagem de umas tesouras dava muito jeito… Nuno Júdice fala de um “duplo inconformismo”: “o primeiro em relação à Ditadura, embora outras revistas e suplementos literários também o fizessem, dentro das limitações censórias da época. O & etc… caracterizava-se por olhar também para fora do nosso universo e trazer o que de mais inovador e vanguardista se fazia nesse final da década de 1960; - o segundo, em relação a um certo conformismo estético da chamada cultura de oposição que decorria da submissão a uma linguagem condicionada pelos chavões ideológicos de uma esquerda ortodoxa que não permitia expressões de rutura, e quando elas surgiam eram marginalizadas”… Assim, “& etc…” ganhou uma marca que corresponde ao espírito do tempo, mas também ao anúncio de novos tempos. Ao folhearmos a publicação, sentimos que a evolução veio a confirmar os valores em que a equipa apostou.

 

ANTÓNIO PAULOURO E VÍTOR SILVA TAVARES
Depois desse encontro histórico com António Paulouro, Vítor Silva Tavares passou a ser passageiro regular da automotora da Covilhã, entre “gentes, cestos, galinhas, hortaliças”, tantas vezes sob a invernia dura da Cova da Beira, sendo acolhido a desoras na redação do jornal por umas vitualhas deixadas pelo diretor, um bife e um ovo a cavalo, pão e talvez meia garrafa de vinho, para aquecer a alma fatigada do jornalista… Até um dia em que os talheres foram esquecidos para drama e angústia do denodado artífice da escrita. Como Emanuel Cameira recordou na sessão da Fundação Calouste Gulbenkian (que outro local poderia adequar-se a este marco cultural?), pode falar-se de uma “revolução estética”: “Encontra-se aqui enquadramento favorável para explicar, por exemplo, a revolução do romance, protagonizada por José Cardoso Pires, tentando ir além do neorrealismo, mas depois também por gente mais distanciada como Almeida Faria, Nuno Bragança, Maria Velho da Costa (mais distanciada do neorrealismo como opção estética, mas não de uma resistência política, evidenciada de outras formas – recordo o caso de Carlos de Oliveira, exemplo de um neorrealismo não panfletário, realizado pela erosão da escrita)”. Silva Tavares vinha do círculo da editora Ulisseia e com ele vieram Rocha de Sousa, na área das artes visuais, Liberto Cruz na literatura, Romeu Correia no teatro, além de Virgílio Martinho e Luiz Pacheco. Júlio Moreira, um dos nomes mais presentes no suplemento, fala-nos da ideia de “fazer a revolução dentro”, de “poder transmitir às pessoas determinados pontos de vista culturais que correspondiam, de facto, a uma cultura do nosso tempo”. Havia, de facto, uma renovação em curso, nos meios culturais e artísticos. A democracia preparava-se, até pelo contacto com o que vinha de além-fronteiras, e isto já desde as revistas “Almanaque” (1959) e “O Tempo e o Modo” (1963).

 

UMA GRANDE DIVERSIDADE
A diversidade era significativa. As polémicas não se evitavam. E os horizontes apresentados eram bem diversos: José Régio, Maria Teresa Horta, José-Augusto França, José Blanc de Portugal, José Sesinando Palla e Carmo, Herberto Helder, António Ramos Rosa, Pedro Oom, Alexandre O’Neill, Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro, Ruben A… Os jovens Eduardo Prado Coelho (sobre o estruturalismo), Jorge Silva Melo (em depoimento breve) e José Pacheco Pereira (sobre literatura de viagem) estão presentes. Vasco Granja traz a Banda Desenhada e o cinema de animação. Nelson de Matos recorda o trabalho a que a pequena equipa era chamada: “recolhíamos as colaborações de várias áreas e de vários colaboradores e organizávamos o número de modo que tivesse algum interesse sem que os textos se relacionassem necessariamente uns com os outros”. Daí a vivacidade que o leitor inevitavelmente sentia… Era a lógica inconformista em vários sentidos. Assim, no poema de Ruy Belo “Nada consta”, fica dito: “quando as coisas se erguem contra o homem / se eriçam agressivas contra ele / nem ao poeta basta o parapeito das palavras”… O certo é que a vida de “& etc…” foi atribulada. Os 26 números foram publicados ao longo de 4 anos, verificando-se uma interrupção longa no último ano. Depois, a sigla teve uma vida própria, a partir de 1973 com uma revista com o mesmo título, mas sem reticências, que publicou 25 números, e Vítor Silva Tavares fez uma editora a que dedicou o resto da vida… Mas a história regista um magazine inesquecível, em luta corpo a corpo com a censura, num tempo em que os jornais se faziam a chumbo e em que era necessário muitas vezes reinventar quase tudo…    

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença 

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Yasushi Inoue (1906-1991) do século  terá sido um dos mais populares romancistas japoneses do século XX, conhecido sobretudo pelas suas novelas históricas, muitas delas situadas nos tempos atribulados da reunificação do Japão nos anos de 1500/600. Em O Mestre do Chá (ou, no original, Honkaku Bo Ibun, isto é, O Diário de Honkaku Bo), debruça-se sobre o mistério do suicídio ritual de Mestre Rikyu, em obediência ao Taiko Toyotomi Hideyoshi. Na minha leitura de hoje, aí redescobri o poema que se afixara à vista dos participantes numa cerimónia do chá que Rikyu celebrara por ocasião da despedida para o exílio de outra personagem, uma tal condenada pelo Taiko. Traduzo:

 

               As folhas abandonam os ramos,
               o fim do Outono é frio e puro.
               Neste instante, os laureados
               saem do mosteiro zen:
               Parti para onde quiserdes
               e se descobrirdes um lugar deserto
               voltai depressa
               para nos confiardes
               o fundo do vosso coração.

 

   Por estes dias receosos de obscuro medo - que, afinal de contas, quiçá mais não sejam do que a recusa de vivermos com reconhecimento consciente de dúvidas, interrogações e temores, que nos vão povoando a tenebrosa, vaga e silente inconsciência em que teimamos justificar as distrações e drogas com que procuramos afastar fantasmas - sabe-me bem meditar nesses cinco versos que nos incitam a partir para onde quisermos e a confiar a outros, quando encontrarmos um lugar deserto, o fundo do nosso coração...

 

   Qualquer deserto tem, para nós, sobretudo uma existência imaginária, é a utopia  da nossa solidão. Esta - tê-lo hás também tu descoberto, Princesa de mim - será sempre, para qualquer um, mais um sentimento de si do que a sua própria condição.

 

   Muitas vezes, nestes dias de quarentena, dou comigo a pensarsentir como a ascese mística vai conduzindo quem a pratica à intimidade da presença do solitário absoluto, daquele cujo nome é Eu, o Eu sou Quem sou. Mestre Eckhart diz que Deus é - com exclusão de todo o não-ser, de qualquer carência. E tal como o mouro Avicena, diz ainda que Deus não tem outra essência para além da sua existência. É, pois, uma presença pura, essa a que se dá o nome de Ser. E imagina-o como uma efervescência, a esse Ser infinito que em si mesmo se move, fervura borbulhante ou parturiente, sempre fervente em si, e que em si se liquefaz e entra em ebulição: bullitio sive parturitio...   ...fervens...   ...in se fervens et in se ipso  et in se ipsum liquescens et bulliens...  

 

   Nestes dias em que vejo menos gente, converso menos, sinto-me, como tantos outros, tentado a comprazer-me no meu isolamento, como se encerrar-me fosse decisão minha e subitamente me tornasse senhor do meu ser em relação, como naquela canção do dentista cansado da amante e da família e sonha poder existir só em si, por si e para si: I, Me and Myself... E quiçá gostaria de me esquecer dessa pura presença do Ser Absoluto e sem carência, do Quem é tudo em todos.

 

Mas eis que essa presença ferve sempre, em mim e nos outros, lembra-me que só o encontro da relatividade de cada um de nós nos poderá, como quem abraça, conduzir ao Ser.

 

   E assim me pensossinto mais próximo de todos esses profissionais de saúde, de limpeza e higiene, de produção e distribuição de bens essenciais, de segurança e transporte, de organização e logística - que nos vão permitindo usufruir de um descanso relativo, que certamente lhes é negado pela necessidade e dever de serem, nestas horas difíceis, a parte de nós que está alerta e funcional.

 

   Assim se me torna claro o pensarsentir a alteridade, não como estranha, mas antes como minha, nossa de cada um. Diz bem frei Bento Domingues, no Público do passado domingo, dia 22, que a ética samaritana, sem qualquer invocação religiosa, obriga-nos a todos, ontem e hoje. O que significa que ninguém está dispensado de procurar aprender a descobrir novos modos de responder à pergunta fundamental da condição humana: em que posso e como posso ajudar? O pregador dominicano será, penso eu, uma das poucas vozes genuinamente evangélicas da Igreja portuguesa, cuja nomenclatura clerical continua com forte propensão a privilegiar a prática de rituais com fezadas milagrosas e a discursar em jeito meloso, banalizador e pretensiosamente poético, sobre benefícios "espirituais" de ensimesmamentos religiosos.

 

   Leio frei Bento: Este período de quarentena - a quaresma inesperada - não pode servir para criar em nós uma religião intimista, uma mística de olhos fechados para as carências múltiplas das pessoas, sobretudo das mais sofredoras e isoladas.

 

Na verdade, não nos devemos esquecer de que o período difícil que atravessamos será, quando confrontado com situações similares noutras épocas da história humana, menos aflitivo e angustiante. Desde já, não porque haja termo próximo ou cura imediata à vista, mas por que os meios técnicos e logísticos nos permitem e facultam, apesar do imprescindível isolamento, condições de proximidade, contacto e assistência, muito melhores. [Imaginemos ainda o que poderá acontecer nos casos de propagação da pandemia por áreas do mundo habitado em que as infraestruturas, a disponibilidade e acessibilidade de cuidados, não possam agora ser tão bem asseguradas].

 

   Saibamos pois aproveitar as graças de que beneficiamos por via dos aparelhos técnicos ao nosso dispor para sermos a presença do próximo junto dos que estão mais sós e abandonados. E que desses contactos, por telefone, "sms" ou correio eletrónico, nasça também uma consciência nova da nossa humanidade comum, que Quem fará fervilhar em novas ideias e iniciativas pela desejável justiça e paz do nosso mundo novo. Concordas, Princesa?

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

O CENTENÁRIO DO TEATRO DAS LARANJEIRAS

 

Evocamos hoje o centenário do início do projeto de um Teatro palaciano, ainda que deslocado dos Paços Reais, o que de certo modo constituía alguma alternativa na época. Referimos o Teatro chamado das Laranjeiras, cuja atividade alternativa não impediu certas épocas de relevância cultural, para lá da qualidade arquitetónica inerente. O que ainda hoje pode como tal ser constatado, não obstante as alterações sucessivas da sua irregular atividade como sala de espetáculos.

 

Como já tivemos ocasião de escrever, o Teatro situa-se junto ao Palácio das Laranjeiras e ao Jardim Zoológico de Lisboa, ao qual esteve ligado. E o projeto inicial data de 1820, portanto há exatamente um século: o que não significa que nessa data tenha começado a construção.

 

Nessa data, João Pedro Quintela, Conde de Farrobo, então com 19 anos, filho do concessionário do Real Theatro de São Carlos que viria a dirigir de 1838 a 1840, toma a iniciativa de projetar a ideia de construção de um teatro privado. Não se perdeu o projeto, que se concretiza a partir de 1825, data em que o inaugurou com uma ópera de compositor já então marcante, até pelo nome.

 

Trata-se de Mercadante. E o então denominado Real Teatro de São Carlos foi pois inaugurado com a ópera denominado “Il Castilio del Spiriti” de Mercadante.

 

 Mas como já tivemos ocasião de salientar, a propósito deste e de outros teatros, Farrobo teve o mérito de romper com a predominância na época do repertório operático italiano, então dominado em toda a Europa por Rossini e Donizetti, isto sem de modo algum questionar o talento e a qualidade desta produção então ainda moderna: mas de qualquer forma, o Teatro das Laranjeiras estreou em Portugal obras e óperas de compositores franceses, designadamente de Auber, o que na época e ainda hoje é assinalável.

 

Aliás, registe-se que Farrobo, discípulo de João Domingos Bomtempo, viria a ser diretor do então Real Conservatório de Lisboa.

 

Em 1842, o Teatro das Laranjeiras beneficia de obras de restauro dirigidas por Francisco Lodi, e introduz-se o primeiro sistema de iluminação a gás.

 

E assim foi prosseguindo atividade irregular até que em 9 de setembro de 1862, sofreu um incêndio que o iria destruir: e Farrobo, então já a caminho da ruína, nunca o restaurou.


E só quando o Jardim Zoológico se instalou nos Jardins do Palácio, por iniciativa de Henrique Burnay que para tal os cedeu, o teatro viria, anos mais tarde, a ser restaurado.

 

Mas importa aqui evocar ainda a relevância que, na sua época o Teatro das Laranjeiras alcança. E a esse propósito, pode citar-se precisamente a comparação, digamos assim, que Augusto M. Seabra estabelece precisamente entre o Teatro de São Carlos e o Teatro das Laranjeiras, no estudo intitulado precisamente “Ir a São Carlos”, teatro este “consagrado na memória da cidade”, escreve José Troni no prefácio (ed. CTT 1993).

 

Comparando os dois teatros no período da revolução liberal, diz então Augusto M. Seabra:

 

“Uma espécie de extensão restrita foi o Teatro das Laranjeiras, no novo Palácio de Farrobo, o próprio Conde participando nas representações ao lado de cantores contratados pelo S. Carlos em festas nas quais participou a própria família real”!...

 

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

44. CIÊNCIA, HUMANIDADES E HUMANISMO (I)

 

Há quem defenda que entre os intelectuais atuais os mais felizes são os cientistas, porque a ciência é poderosa e progressiva, não sendo posta em dúvida. 

 

O seu trabalho dá-lhes felicidade porque é reconhecido, não só pelos próprios, mas também pelo público em geral, mesmo quando não compreendido.

 

Contrapõe-se que o mesmo não sucede com os artistas e os homens das humanidades, sendo menos afortunados que os da ciência. 

 

Quando alguém, por exemplo, não compreende um quadro, um filme, um poema, um livro, conclui ser uma má pintura, má poesia, um mau cinema, uma má obra.

 

Mas quando alguém não compreende a teoria da relatividade conclui, com fundamento, que o seu conhecimento e cultura são insuficientes. 

 

Einstein, nesta perspetiva, será admirado e reconhecido por todos, enquanto muitos dos mais proclamados pintores, poetas, cineastas e escritores serão infelizes, esquecidos, desprezados, perseguidos, morrem à fome ou na miséria. 

 

A ser assim, pode pensar-se que apenas a ciência, e a tecnologia a ela associada, interessam à civilização e mundo atual.   

 

É curioso que George Steiner, um dos gurus mais aclamados das humanidades,  tenha elogiado e sacralizado o progresso científico e tecnológico, em fim de vida,  desqualificando as humanidades, ao afirmar:

 

“As ciências não conhecem a hipocrisia, não fazem bluff. Na ciência verdadeira há o certo e o errado, e quem faz batota é obrigado a sair do jogo. Pelo contrário, as chamadas ciência sociais” fazem bluff o tempo todo, estão cheias de mentira, de conversa fiada”.   

     

E acrescenta:  

 

“O progresso e a descoberta estão no interior da dinâmica da ciência. Tive algum treino científico e tentei compreender ao menos uma ínfima parte do que os cientistas fazem. É um mundo novo, intocado. Nas humanidades, mais de 90% daquilo com que lidamos está no passado. Os livros, a música, a reflexão, a arte. É como os ponteiros do relógio a caminharem em direções opostas. Estou tão feliz por presenciar isso” (entrevista ao semanário Expresso, edição 2327, de 03.06.2017).

 

Será assim?     

 

Houve tempos em que os intelectuais das humanidades eram tidos em alta estima, como na antiguidade grega, latina e Renascimento, ombreando com os cientistas, alguns  simultaneamente homens de ciência, artistas e humanistas, de que Leonardo de Vinci é  o magno exemplo, o que desmente, por si só, qualquer tentativa de divinização da ciência em desfavor da secundarização e mero bluff das humanidades, mesmo para quem entenda haver, de momento, um défice de pensamento crítico em todo o mundo.

 

27.03.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

Em Veneza, finalmente os peixes viram a luz do Sol, e nós os vemos, enfim, felizes, no final da sua desesperada espera.

As gôndolas leem agora tão bem o fundo dos canais que já não se perdem sozinhas.

 

Também há momentos em que o muito pouco ou o nada é tudo o que se pode fazer.

Também há momentos em que a poesia dos instantes tem um voo indecifrável.

Também há momentos em que se recorda o quanto a vida foi passada junto dos outros e não se registou a aventura.

Também há momentos em que o amor se iniciou como razão do viver, e tanto se gostou dele como da vida.

Também há momentos em que muito se ama sem que o digamos.

Também há momentos em que a terra nos escorre das mãos qual parcela de si a esvair-se para outro local.

Também há momentos em que os lares nos falaram da raiz da paz.

Também há momentos em que todos dormimos a mil quilómetros do essencial.

Também há momentos sem horários para as tempestades do não compreender.

Também há momentos em que as praias, suas espumas e as areias são a elegância do nosso trajar.

Também há momentos para o nosso choro de crianças escrever a nossa morada.

Também há momentos para decidir que não me casarei com um homem que não chora.

Também há momentos para te dizer e repetir sem fim, que contigo irei para qualquer mundo do mundo.

Também há momentos em que o momento se surpreendeu, ou não encontrasse no fundo de nós, o maravilhoso.

Também há momentos em que outros e os intelectuais já não veem o sorriso.

Também há momentos de melancolia no cerne da prodigiosa solidão.

Também há momentos em que nos escapa a vida depois da infância, bela, ou daquela que muito nos matou.

Também há momentos em que gostamos de nos perder e tanto desejamos depois que nos protejam como à rosa de Exupéry.

Também há momentos de frutos , tílias, passeios, camas alvas de doçuras, correios, beijos, ciúmes, felicidades infelizes, mãos de costureiras no peito, abrigos, arvores, pássaros e outros bichos, montanhas, pontes, abraços, despedidas, martírios, mortes que não souberam chegar no tempo das piedades, solidariedades, coragens e reencontros, traições, utopias, doenças, artes, civilizações, sobrancerias até nos destinos comuns, sacerdócios sem condição humana, arcanjos sedutores, algumas eternidades, aprenderes, ofícios , milagres, vaidades nas coisas pequenas e humildes nas muito grandes, orfandades Senhor!, e um olhar para  a cidade condenada, pois lá 

 

finalmente os peixes viram a luz do Sol, e nós os vemos, enfim, felizes, no final da sua desesperada espera.

As gôndolas leem agora tão bem o fundo dos canais que já não se perdem sozinhas.

 

Teresa Bracinha Vieira

ALBERT UDERZO (1927-2020)

 

 

Agradecemos ao nosso Amigo e consócio João Paulo P. Boléo, grande especialista da BD, este texto exclusivo.

 

Quando recebi de um amigo, na manhã de 24 de Março, a notícia da morte de Albert Uderzo, o meu primeiro comentário, a acompanhar a partilha da notícia, foi: «Esta é realmente uma notícia grande. Morreu Uderzo com um ataque cardíaco depois dos 90. É justo recordar que Goscinny foi bem menos feliz - morreu a fazer uma prova de esforço (!) por volta dos 50».

 

A carreira, colaboração, co-autoria, cumplicidade dos dois foi de tal maneira grande e marcante que ficaram indissociáveis. Não só, como sabe quem conhece minimamente as suas vastas obras, mas sobretudo - naturalmente - devido a Astérix.

 

Ao aceder ao "convite" do meu Amigo Guilherme d'Oliveira Martins, permitam-me algumas notas confessionais. Ao chegar lá a casa, no início dos Anos 60, pelo mão do meu irmão mais velho (o grande introdutor das histórias aos quadradinhos na família, com a cumplicidade do meu Pai), o primeiro livro do Astérix (Astérix le Gaulois), falámos nele a uma família belga amiga e naturalmente apreciadora de BD... e ainda não conheciam! Essa valiosa primeira edição acabaria por dar a volta à família, à rua, aos amigos... e desaparecer...

 

Sabemos (se e quando sabemos) que a autoria da banda desenhada, no caso frequente de um argumentista e um desenhador, tem as mais variadas nuances e contributos, desde o desenhador que recebe o guião "perfeito" e se "limita" a desenhá-lo (às vezes sem se verem!), até à intensa colaboração de ambos.

 

Sem pôr em causa o papel claro e fundamental de cada um, é evidente que havia ideias de ambos e uma intensa colaboração e cumplicidade entre Goscinny e Uderzo. Que já vinha de trás.

 

Hoje (penso no tempo em que também escrevi no Expresso artigos sobre estes autores, que não fui reler intencionalmente) é (mais) fácil recolher informação e reconstituir a obra de artistas como Goscinny (14/08/1926-05/11/1977, de origem polaca) e Uderzo (n. 25/04/1927, de origem italiana), convindo apenas sublinhar que Goscinny foi um genial argumentista com uma obra vastíssima e na sua maioria brilhante em paralelo e para lá da fecunda colaboração com Uderzo.

 

Mas hoje é Uderzo que justamente homenageamos. E assim como, por exemplo, Lucky Luke nasceu pela mão exclusiva de Morris mas foi com o talento de Goscinny que teve os melhores anos da sua vida, Uderzo também teve muitas obras e séries meritórias desde finais da Segunda Guerra Mundial, quando começou a sua carreira, mas Goscinny seria um companheiro decisivo. Embora não só.

 

O aspecto essencial a sublinhar, porém, aquilo que torna Uderzo um dos grandes nomes de toda a BD e dos artistas mais marcantes do nosso tempo é o seu excepcional jeito inato para o desenho desde pequeno, ele que até nasceu com seis dedos em cada mão (seria operado). E era daltónico.

 

Muito influenciado pelos desenhos animados de Walt Disney, revelou desde cedo um grande sentido do movimento e minuciosa expressividade, sendo também marcado pela pujante escola francesa de BD, nomeadamente Calvo, autor de La Bête est Morte, uma excepcional "versão" animalista da II Guerra Mundial.

 

As suas primeiras séries marcantes seriam Flamberge, Arys Buck, Belloy, etc., umas como autor completo, outras com argumentos de Charlier (que voltará a aparecer), e onde apuraria o seu estilo e criaria personagens que fariam parte da "arqueologia" dos seus sucessos maiores, bem como Jehan Pistolet e Luc Junior, primeiras colaborações com Goscinny, na década de 50, envidenciando nesta o seu talento para fundir o traço humorístico e o "realista".

 

Na segunda metade dos Anos 50, depois de um projecto inicial não totalmente conseguido, surgiria o grande "ensaio geral" antecessor de Astérix que seria Oumpah-pah, cinco histórias delirantes de 30 páginas com a amizade entre um índio e um caval(h)eiro francês, primeiro na revista "Tintin" (belga e francesa) e depois reunidas em álbum, o primeiro dos quais também seria muito lá de casa, com gags inesquecíveis, como o nome da figura que só tinha um dente...

 

E eis senão quando surge, em 1959, o projecto que irá revolucionar a História da BD, em especial  europeia: a revista "Pilote". E Goscinny e Uderzo farão parte dos fundadores, sendo o desenhador "pau para toda a obra" - evidenciando a importância da sua vasta e diversificada experiência, aqui só aflorada - que se vai manifestar especialmente em duas séries que mostram a sua versatilidade: Tanguy et Laverdure, com argumento do prolixo e importante Jean-Michel Charlier, em que mostra o seu talento "realista" e projecta a sua paixão pela aviação e pelas "máquinas" (também era um apaixonado por automóveis e condução), sem esquecer o toque de humor (em especial na figura de Laverdure); e, no registo que todos conhecem, Astérix.

 

A qualidade, relevância e influência de Astérix não precisam de ser sublinhadas, nem a importância que teve no processo de "dignificação" da BD na década de 1960, com o momento alto que foi o sucesso e impacto de Astérix et Cleópâtre (1963-1964, álbum em 1965), embora a BD não tenha atingido o estatuto no mundo da Arte que essa década anunciava e prenunciava, mas isso são outras histórias.

 

A Portugal, como Tintin, Astérix chegou cedo: na revista "Foguetão" (1961), de grande formato, um projecto efémero de Adolfo Simões Müller, em que Astérix surge a preto-e-branco ou a uma cor, tendo depois, como as outras séries (incluindo Michel Tanguy) que passar (com resumo!) para o "Cavaleiro Andante", na sua fase final.

 

Para uma primeira abordagem de Uderzo em Portugal sugiro: https://biblobd.blogspot.com/2018/10/albert-uderzo-ensaio-de-quadriculografia.html.

 

E Uderzo atinge aqui o cume do seu talento e da sua expressividade e fluência, a capacidade de transmitir sentimentos e emoções mesmo em personagens de costas, os gags visuais, uma inesgotável panóplia de recursos que é redundante sublinhar.

 

Não é a altura para uma reflexão mais aprofundada sobre Astérix, as múltiplas leituras de que foi objecto, sendo considerada tanto uma série progressista como conservadora, nem sobre os seus muitos méritos, os anacronismos, o humor de repetição intra-aldeia, as personagens pitorescas, os gags linguístico-visuais, etc., etc., nem sobre a sua incontornável presença na cultura contemporânea.

 

Uma coisa é certa. Uderzo também fez parte da concepção e não apenas da ilustração, mas como argumentista não é Goscinny, e se o primeiro álbum depois da morte deste (Le grand fossé, 1980) ainda tinha a força da dupla, ela foi-se diluindo, até Uderzo deixar de desenhar - a operação aos dedos deixara marcas...

 

Sobre os "apócrifos", com argumento de Jean-Yves Ferri e desenhos de Didier Conrad, de que saiu recentemente o quarto, não levem a mal que não me pronuncie, preferindo ir, com muito gosto, revisitar a série quando era feita por Goscinny e Uderzo, de que me permito, do fundo da memória, destacar Astérix et les Goths, A. Gladiateur, A. et Cléopâtre, A. chez les Bretons, A. légionnaire (o meu preferido), La Zizanie, Le domaine des Dieux... 

 

João P. Boléo

CORONAVÍRUS COVID-19: SAÚDE, CIÊNCIA, RELIGIÃO, UM RETIRO

 

Ao contrário do que normalmente se pensa, não controlamos totalmente a nossa vida. Uma pequena prova disso está neste texto: eu tinha prometido continuar a crónica da semana passada, mas solicitaram-me um texto urgente sobre o coronavírus covid-19, adiando o prometido para mais tarde. E é o que vou tentar, com alguns apontamentos.

 

1. Para nós, vivendo na normalidade, tudo nos parece claro e evidente. Só quando perdemos algo ou estamos na ameaça de perdê-lo é que damos pela sua importância, que pode ser decisiva, essencial.

 

É o que acontece com a saúde. Haverá bem maior, mais importante do que a saúde? Reparo que em todas as línguas que conheço, quando as pessoas se encontram ou, sobretudo, se reencontram, se cumprimentam perguntando pela saúde: “Como estás?, Como vais?, Como tens passado?” E, na despedida: “Passa bem, cuida de ti e dos teus. Passai bem”. E “saudamo-nos” (saudar: vem do latim: salutem dare, dar saúde, desejar saúde) e temos “saudades”, com o mesmo étimo, e escrevemos a alguém, terminando: “Saudades”.

 

Vale!”: esta era a saudação romana, com o sentido de “passa bem”, e, por outra via, reencontramos de novo a saúde. É de “vale” que vem “valor e valores”. E qual é o valor da saúde?  Valor essencial, porque com saúde vamos para a vida e com esforço faremos algo, conquistaremos a nossa vida e a nossa realização com outros. Porque a saúde não é só física, implica também uma dimensão psicológica (se não me der bem comigo, sinto-me mal, sem saúde), a relação com o outro, dar-se bem com o outro (se eu só de ver alguém com quem não posso fico doente, é prova   de que não estou com boa saúde), uma boa relação com a natureza, uma relação boa com a transcendência...

 

E quando caímos doentes? Procuramos a ajuda de um clínico (palavra que vem do grego: klinein, com o sentido de inclinar-se para e sobre alguém que precisa de ajuda) ou junto de um médico (quem diria que moderação, meditação e medicina têm a mesma etimologia: mederi — a raiz é med: pensar, medir, julgar, tratar um doente —, que significa cuidar de, tratar, medicar, curar?) e vamos para uma clínica ou para um hospital, palavra que vem do latim: hospes, hospitis, com o significado de hóspede.

 

Agora que chegou esta calamidade global que estamos a viver, apercebemo-nos, de forma intensa e tenebrosa, do valor da saúde e, por outro lado, da nossa interdependência, positiva e negativa: somos iguais, podemos infectar-nos uns aos outros, temos de cuidar uns dos outros, apoiar-nos mutuamente de todos os modos, porque apenas colaborando todos, cada um à sua maneira e segundo as suas competências e possibilidades, venceremos esta guerra.

 

2. Quando era ainda muito jovem, esta estória bem conhecida impressionou-me em extremo. Mais ou menos assim: Havia um sábio modesto que ofereceu a um rei um tabuleiro de xadrez. O rei ficou tão exaltado que lhe pediu que dissesse como podia recompensá-lo. Perante a insistência do rei, o sábio apenas pediu que lhe desse 1 grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro e que fosse duplicando os grãos até concluir as 64 casas: 1 pela primeira, 2 pela segunda, 4 pela terceira, 8 pela quarta, 16 pela quinta e assim sucessivamente: 32, 64, 128, 256, 512, 1024... O rei achou o pedido modesto e os servos começaram a trazer sacos de trigo e, lentamente, os matemáticos do reino foram concluindo que o número era tão colossal que não havia trigo suficiente, mesmo socorrendo-se dos celeiros de reserva, para satisfazer o pedido.

 

Serve esta lenda para trazer um pouco de luz ao modo como o covid-19 estava e está a contaminar as populações do mundo inteiro. E era urgentíssimo tomar medidas drásticas para conter o pior. E foi o que fizeram e estão a fazer os governos, também o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o governo português, em colaboração de uns com os outros. É preciso ceder bens menores a favor do bem maior, a saúde e a vida. Sacrificamo-nos todos, com o sentido do bem comum. Sem alarmismos, mas com racionalidade e urgência.

 

E, entre nós, mesmo admitindo que houve e há medidas que chegaram e chegam tarde — e é sempre melhor, como diz a sabedoria ancestral, prevenir do que  remediar —, as coisas vão funcionando razoavelmente. As pessoas são prudentes, o pessoal sanitário trabalha incansavelmente e por vezes até com falta de meios — faço minhas as palavras do Papa Francisco aos médicos, enfermeiros, voluntários: “admiro-vos, ensinam-me como comprometer-me e agradeço-vos o testemunho; muitos não são crentes, outros são agnósticos ou levam uma vida de fé à sua maneira, mas no testemunho... vês a sua capacidade de ‘jogar’ a vida pelo outro, mesmo que entre eles haja mortos” —, o pessoal sanitário, sim, mas também todos quantos realizam o necessário para que a vida continue: há supermercados, há luz, há água, há farmácias, há transportes, há bombas de gasolina, há correio, há bancos, há teletrabalho, há bombeiros, há jornais, há notícias, há aulas online, há governo, há polícia... Ponho-me a pensar: é em circunstâncias como estas, quando há restrições, que a gente toma consciência do que é preciso e de quanta gente é necessária para que um país funcione, e os países, e o mundo humano todo... Normalmente, damos tudo por evidente.

 

Naturalmente, os cientistas investigam arduamente para encontrar uma vacina que estanque esta dor, esta tristeza e noite... Mas lá está a incerteza: Quando é que ela aparecerá? E quanto tempo vai durar esta calamidade até que possamos reencontrar-nos todos, vivos, numa  exaltação exultante, que ainda não tem nome? E a crise económica e social brutal a caminho?

 

3. Entretanto..., a vida, com todas as suas restrições e limitações, continua.

 

E a religião e a Igreja? Não se pode esquecer como Jesus se manifestou sempre preocupado, atento e cuidadoso com a saúde de todos e como curava. Assim, a favor da saúde e do bem comum, a Igreja, como não podia deixar de ser, suspendeu a celebração comunitária pública das Missas. Também no Vaticano, cujas praças estão desertas. E é em streaming que se vai celebrando e comunicando.

 

Que pode fazer mais? Vai depender também da imaginação criadora. O Papa Francisco já disse que, na falta de padres, os fiéis (a linguagem atraiçoa-nos sempre: cá está, como se os padres não fossem fiéis!...) se confessem “directamente” a Deus. E, numa entrevista ao La Stampa, procurou dar ânimo e esperança e, confiando que desta “guerra” da pandemia sairá uma sociedade melhor, pediu: “Não tenham medo!”. “Estamos todos a sofrer. Só poderemos sair desta situação juntos, como Humanidade inteira. Temos que pensar que será um pouco como depois de uma guerra. Já não estará ‘o outro’, mas, sim, estaremos ‘nós’”. A Penitenciária Apostólica decretou a “absolvição colectiva” para todos os doentes de coronavírus, os seus cuidadores e o pessoal sanitário. E eu pergunto: Se não fosse o carreirismo e o clericalismo em que os católicos foram formados, não poderiam as famílias, agora confinadas em casa, celebrar validamente a Eucaristia? “Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, eu estarei lá, no meio deles”, disse Jesus. E não é a família uma “Igreja doméstica”, como sempre se  afirmou, sobretudo no princípio do cristianismo?

 

É tarefa primeira da Igreja continuar a dar ânimo, esperança e confiança. Fé quer dizer isso: confiança. As paróquias deveriam pensar num atendimento telefónico, para escutar, consolar, dar ânimo... É preciso advertir que a solidão também mata. Agora, que até os funerais têm de ser reduzidos e rápidos, é missão pastoral dos seus agentes mais próximos a promessa e o compromisso de, quando tiverem passado estes tempos de incerteza e de trevas, se dar a possibilidade de um serviço fúnebre comunitário no qual as pessoas possam relembrar os seus mortos e despedir-se deles, desabafando, chorando juntos lágrimas de saudade uns com os outros, já sem a angústia tenebrosa do contágio...

 

Rezar? Claro. Francisco deu o exemplo, num gesto simbólico de fé e de solidariedade com todos: foi em peregrinação à igreja de São Marcelo em Roma, e é impressionante aquela imagem dele, sozinho, distanciado dos outros, numa rua praticamente deserta, para, diante do Crucifixo milagroso, pedir solidariamente por todos.

 

Milagres no sentido estrito, o que significa uma intervenção de Deus para suspender as leis da natureza, não há, porque isso implica ateísmo, já que supõe que Deus está fora do mundo e, de vez em quando, e a favor de uns e não de outros, vem dentro. Ora, Deus está sempre infinitamente presente à sua criação e a todos nós.  Por isso, só creio nos milagres do amor, o que significa que somos remetidos por Deus, como concriadores, para tudo fazermos, cuidando de nós, dos outros, da natureza e dEle em nós.  Mas podemos e devemos rezar a pedir a nós para termos essa força de cuidar. E também temos o direito de rezar, falando com Deus, desabafando, fazendo-lhe perguntas, protestando com Ele (a Bíblia diz que Deus louvou Job porque lhe fez perguntas e protestou com Ele porque estamos arrasados pela dor e, aparentemente, Ele não faz nada), confiando...

 

4. E no “retiro” forçado, no confinamento da casa? Finalmente temos tempo para o essencial. Andamos habitualmente tão longe de nós, à superfície, perdendo-nos numa “agitação paralisante e numa paralisia agitante”, para utilizar a expressão do célebre bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes. Encontramos agora tempo para estar connosco, para um novo reencontro de cada um, de cada uma consigo, indo ao mais fundo de nós e lá deparar com o Mistério, o Sagrado, e com o milagre de ser e de existir. Tempo para pensar nas perguntas essenciais. Não pertence também à sabedoria do viver aprender a conviver saudavelmente com a morte? O que é que verdadeiramente vale? O que é que esperamos? O quê ou quem nos espera?

 

Confinados e com carências, tomamos consciência de que, afinal, podemos viver com menos. O que é que mais falta nos faz? Não nos definimos pelo ter, mas pelo ser. Ah! E pensávamos ser omnipotentes e chegou um vírus invisível que nos apavora e nos pode matar, e percebemos então que precisamos da humildade como verdade. Ah! E somos iguais, pela negativa e pela positiva, como já ficou dito: podemos contagiar-nos uns aos outros — todos: presidentes, embaixadores, doutores, celebridades, gente anónima, analfabetos, ministros, bispos, ricos, pobres (estes, apesar de tudo, mais, porque têm menos possibilidades, por exemplo, como se resguardam os sem-abrigo?) estamos expostos — e também só todos juntos nos poderemos salvar, nestes tempos plúmbeos e de noite. E há uma só Humanidade, num mundo global: este coronavírus corre pelo mundo todo e percebemos que é imprescindível a solidariedade universal, se quisermos ter futuro. Agora e quando tiver passado este tempo angustiante de temores, incertezas e um imenso sofrimento físico e moral.

 

E damo-nos conta também de que, afinal, numa sociedade individualista e egoísta, que tanto exalta e celebra o Eu, agora que temos de viver afastados, confinados, sem abraços nem beijos nem manifestações de afecto, nem festas, sentimos a falta que os outros nos fazem.

 

Temos tempo para a família. Agora, evidentemente, sem esquecer os amigos, poderemos entender melhor a força e o apoio da família. Mas, com as  crianças em espaços limitados e num tempo que se alonga sem novidades outras, será necessário fazer apelo à inventividade criativa. É preciso superar o tédio do mesmo e aprender a paciência, lembrando aquela palavra de Jesus: “com a vossa paciência salvareis as vossas vidas”. Será também necessário pedir ajuda para que, com o stress, a violência doméstica se não agrave. Disse anteontem a Marta Reis, do jornal i, Constantino Sakellarides, especialista em saúde pública: “A primeira regra é não embirrarmos uns com os outros”.

 

5. Para terminar, não posso deixar de agradecer tantas provas de amizade e cuidado comigo, vindas de tantas partes e de tantos amigos e nomeadamente de antigos alunos. Desejo a todos, a todas, de coração, saúde. E salvação. A palavra latina salus está na base de saúde e também de salvação.

 

E lembro os versos famosos de Friedrich Hölderlin, cujo 250.º aniversário do nascimento se celebrou anteontem, Sexta-Feira, 20 de Março: “Wo Gefahr ist, Da/ wächst das Rettende auch”: Onde está o perigo, aí cresce e aumenta também o que salva.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 22 MAR 2020

AVÉ-MARIA CHEIA DE GRAÇA

 

Tenho na mão a Correspondência, Jorge de Sena /joão Sarmento Pimentel, que acabei agora de publicar. Estava a ler a carta que Sena escreveu ao seu amigo capitão, relatando o que se passara na sessão nas Belas Artes, em frente à Cinemateca, em 69, na primeira visita que Sena fez a Portugal depois do exílio.

 

E lembrei-me que João Bénard da Costa, meu director para todo o sempre, esteve lá e já me tinha contado. E depois lembrei-me da sessão que, do outro lado da rua, vivemos juntos quando exibimos Je Vous Salue Marie. Conto-a agora como julgo que João Bénard aprovaria ouvi-la contar.

 

O caldo entornou-se. O jovem católico virou-se para o chefe de polícia e disse-lhe em tom de desgarrada: “Gostava que fizessem isso à sua mãe?” Ó meu amigo, palavras não eram ditas e já o até então polidíssimo agente lhe enfiava uma gravata que, vi eu, fez o ar dos pulmões do jovem bater no tecto da sala.

 

Tossia ele, tossia toda a velha sala da Cinemateca. Exibia-se, 1985, “Je Vous Salue Marie” de Godard, então inédito em Portugal por miúfa dos distribuidores.

 

Krus Abecassis, lendário presidente da Câmara, prometera escaqueirar tudo se a Cinemateca se atrevesse. Fomos perguntar ao João Bénard, que era quem mandava em nós, se nos atrevíamos. O João foi claro: “Nessas coisas sou uma senhora séria. Ora, como sabem, senhora séria não tem ouvidos.”

 

Preparámo-nos para o combate. Se de algum lado estava, a Graça estava do nosso lado. João Bénard era de um catolicismo doce que lhe impregnou o olhar e a escrita toda a vida, logo a ele que, tanto mudando, em nada de essencial algum dia mudou. Sentíamo-nos, por isso, legitimados para passar um filme que mostrava o desejo de gravidez e o bendito ventre cujo fruto talvez fosse Jesus.

 

Éramos democratas, mas não éramos parvos: armou-se um dispositivo de Aljubarrota. Vigilância da PSP e dois dos nossos projeccionistas, tipos que combinavam volume de boxeur com altura de defesa-central, a filtrar entradas no magnífico portão da rua. Vendiam-se dois bilhetes por pessoa, o que frustrou as encantadoras virgens que quiseram comprar a lotação do cinema.

 

A sala era um ovo cheio. Gente no chão e no ar uma excitação misto de primeira comunhão e noite de núpcias. Fez-se escuro: a volúpia das imagens aflorou a tela e os jovens católicos pularam em avé-marias e salvé-rainhas, subindo ao palco a esbracejar contra as sombras blasfemas.

 

As luzes reacenderam-se iluminando um belo e poético caos. Enquanto nós gritávamos aos jovens Savonarolas  que Je Vous Salue Marie era a apologia da Imaculada Conceição, um filme sobre o mistério da mulher que, entre tormento e dúvida, aceita uma violenta graça e sobre o homem, José, que se torce de ciúmes, mas por amor confia, os velhos cine-clubistas, com algum saudoso comunismo, apontavam à polícia os insurrectos: “É aquele… e aquele”. Era um mundo às avessas: velhos esquerdistas ajudavam a polícia e um miúdo, com vozinha de copo de leite, gritava-lhes: “Pides.” 

 

Num arroubo místico, um dos rapazes desmaiou. Ajoelhou-se ao lado dele uma menina de calças de xadrez. Era bonita e parecia que, segurando-lhe a mão, rezava. Com vontade de rezar com ela, ainda pensei: “Vês, meu anjo, como ser virgem é estar disponível!”

 

Saberia ela que, assim, na sua ajoelhada angústia, rimava com a imagem de Myriam Roussel no filme apóstata de Godard e repetia, prosaica e séculos depois, o poético mistério mariano?

 

Manuel S. Fonseca

A VIDA DOS LIVROS

De 23 a 29 de março de 2020

 

A «Lírica» de Luís de Camões é imortal. O Dia Mundial da Poesia deste ano não pôde ser assinalado como habitualmente. Estava prevista a celebração com a poesia de Amália. O nosso texto de hoje invoca Camões e lembra essa homenagem devida. «Lianor» é o belo mote de que partimos.

 

 

«VOLTAS» IMORTAIS…
«Descalça vai para a fonte / Lianor pela verdura; / Vai formosa, e não segura. / Leva na cabeça o pote, / O testo nas mãos de prata, / Cinta de fina, escarlata, / Sainho de chamalote: / Traz a vasquinha de cote, / Mais branca que a neve pura; / Vai formosa, e não segura, / Descobre a touca, a garganta, / Cabelos de ouro entrançado, / Fita de cor de encarnado, / Tão linda que o Mundo espanta: / Chove nela graça tanta, / Que dá graça à formosura; / Vai formosa, e não segura!». Trata-se de uma das célebres voltas que Camões nos deixou com a melhor arte da palavra – como em “Verdes são os campos / De cor de limão; / Assi são os olhos / Do meu coração” ou como, em tom jocoso: “Perdigão perdeu a pena / Não há mal que lhe não venha”… E às vezes quase nos esquecemos de que “testo” é uma vasilha, “chamalote” um tecido de lã e seda e “vasquinha de cote” um “casaquinho justo usado no dia-a-dia”… A língua é-nos familiar e Camões nosso contemporâneo. Amália teve o génio de trazer para os dias de hoje uma poesia que nos aproxima das raízes sem perdermos a sua clara compreensão… Mas não esquecemos como Alain Oulman compreendeu, melhor que ninguém como um texto do século XVI estava bem vivo. E quem melhor do que Amália para dar as suas voltinhas, àquilo que o poeta no íntimo quis imprimir de originalidade e força às suas palavras amorosas. E Camões foi ligado naturalmente ao Cancioneiro Geral, a David Mourão-Ferreira, a Alexandre O’Neill ou a Pedro Homem de Melo. O melhor fundo lírico juntou o seu sentido a uma voz inconfundível que afirmou e fortaleceu o Fado, fazendo-o encontrar as suas múltiplas raízes de arte e movimento, de lembrança e desejo, numa palavra, refundando-o.

 

UM CÉLEBRE DISCURSO
Camilo Pessanha lembrou num célebre discurso proferido no dia 10 de junho de 1924 o debate sobre “a questão de se Camões residiu ou não em Macau, se esteve ou não preso no tronco da cidade, se ali desempenhou ou pôde ter desempenhado as apagadas funções de provedor dos defuntos e ausentes. A polémica há de decerto renascer mais animada algum dia e provável é que o problema venha a decidir-se finalmente pela negativa. É a sorte de todas as tradições consagradas. A crítica histórica, a história-ciência, positiva e experimental, vem sendo tábua rasa de quanto é anedótico e pessoal das atitudes esculturais, dos gestos dramáticos, das frases eloquentemente concisas, em que tradições lentamente evoluídas haviam definido, em termos quase sempre de inexcedível beleza, um carácter, um acontecimento ou uma época. (…) Mas discussões são essas de carácter puramente académico, só interessando a investigação. Se as tradições estão bem arreigadas e vivas não será a demonstração de sua inexatidão histórica que as poderá destruir. É que não foi nas dissertações dos sábios que elas germinaram e medraram, nem é delas, mas do sentimento popular, que tiram a seiva. (…) A vitalidade das tradições lendárias ou quase lendárias depende essencialmente de dois requisitos. É necessário que o objeto a que se referem se imponha na sua grandeza à admiração contemplativa de todos os tempos. É-o igualmente que a própria tradição nos diversos fatores que a constituem, seja adequada a esse objeto. (…) É a Gruta de Camões com o seu cenário irremediavelmente mesquinho (…) esse lugar, sobre todos prestigioso, dedicado ao culto de Camões que é também o culto da Pátria. Culto e prestígio que não podem extinguir-se enquanto houver portugueses; e enquanto não se extinguem há de ser verdade intuitiva, superior a todas as investigações históricas, que o maior génio da raça lusitana sofreu, amou, meditou, em Macau, aqui tendo composto em grande parte o seu poema imortal e que o local predileto aos devaneios do seu espírito solitário era essa colina então erma sobre o porto interior, junto das penhas com aparência de dólmen em cujo vão foi colocado há anos o seu busto, de proporções reduzidas, fundido em bronze». Numa palavra, Camilo Pessanha vem-nos dizer, que independentemente de qualquer confirmação histórica, Camões está naquele lugar pela força da sua memória, muito superior em importância a qualquer justificação formal. O mesmo se diga da presença do poeta em toda a extensão das manifestações das culturas da língua portuguesa. E diga-se que aqui o plural é propositado, uma vez que como símbolo da língua e do seu culto, Camões se afirma como elo indiscutível de uma realidade que é partilhada universalmente e que se projeta no futuro como expressão de diversos povos e culturas, numa lógica de emancipação que só o futuro poderá fazer compreender.

 

O CASO DE CONSTÂNCIA
Quando nos referimos a Constância, a antiga Punhete, estamos também a falar de Camões, de uma memória que não pode confundir-se com qualquer exclusivismo ou demonstração histórica, mas sim de uma partilha natural e exigente relativamente a uma importância histórica que nos remete para o patriotismo prospetivo que tem a ver com a ligação ao que nos define e afirma culturalmente. Mais do que orgulho, trata-se de pertença; mais do que ambição, é memória. A língua-pátria ama-se como é, pelo que faz em nós, definindo-nos como somos, sem tentação de ir além desse afeto, como nos nacionalismos. E Camões é um símbolo, e como todos os símbolos, é o que une (ao contrário do diábolo, que divide). E neste ponto não esqueço o entusiamo militante de Manuela de Azevedo sobre a Casa-Memória de Camões de Constância. Por isso, faz sentido lembrar o discurso de Camilo Pessanha. De facto, é de memória que falamos na aceção mais fecunda e rica. Por isso, lembramos Amália Rodrigues e Alain Oulman, e todos os poetas que ombrearam com Camões. A memória viva, matéria-prima do património cultural, obriga a encontrarmos todas as referências relevantes, reais ou míticas, relativamente às culturas da língua. Lianor, poderemos encontra-la no mais improvável e inesperado dos lugares, como Camões, o seu genial retratista. E deixem que fale da ligação íntima entre arte, memória, e educação. Quando lemos os nossos poetas, quando sentimos a musicalidade das suas palavras, quando transmitimos às novas gerações, nas escolas, o conhecimento das palavras e a sua sabedoria, estamos a realizar a mais rica cidadania, comunicando do melhor modo a força do espírito. Essa mesma força que torna viva a presença dos nossos maiores.   

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

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